Ilustração: Isabele Linhares
2012
Um
pássaro desce pelo céu. Sua imagem some e aparece, por causa do sol. Lá
embaixo, na XV, velhos conversam sentados em bancos. Alguns comerciantes
anunciam seus produtos. Executivos tomam café em pé, em frente aos
estabelecimentos da Boca Maldita. Pessoas caminham.
O
pássaro sobrevoa o Edifício Tijucas. Passa rente a uma janela de um dos últimos
andares.
O
garoto vê o súbito movimento. Logo se desinteressa.
A
mãe sai do corredor para a sala, arrumando o avental. No centro da sala,
encostada na parede, uma TV. O garoto está de joelhos, sobre o sofá, encostado
ao vidro da janela.
-
Ei, filho, olha, tá passando aquele programa, o dos bonecos, não vai assistir?
O
menino vira o rosto para a TV. Não há tensão nos músculos da face. Talvez leve
contração no zigomático menor.
-
Não.
O
rosto vira-se para a janela.
A
mãe abre a porta de uma arca longa e pega duas travessas.
-
Ué, como assim “não”, por quê?
Sua
cabeça reta à janela. De costas para a mãe. Os cabelos, na parte traseira, com
pontas suavemente levantadas. Para além da janela, prédios e reflexo.
-
Eu não gosto mais.
1964
A lâmpada, pendurada
pelos fios, pende de um lado a outro. Sua luz é fraca. A cada lado que vai,
projeta sombras diferentes na parede de placas de madeira.
Ele
está com a cabeça baixa, ombros caídos e mãos repousadas ao lado do corpo. As
mãos formam duas conchas voltadas para trás.
O
pai deposita o galão de cinco litros no chão. Usa um casaco puído.
-
Por que você fez isto?
Os
olhos do menino abaixam. As sobrancelhas erguem.
-
Eu queria pegar os fios de agulha da mãe.
-
Pra quê?
-
Pra amarrar e fazer uns bonecos. Pra brincar.
O
pai olha para a mãe. Ela não pisca.
-
Você tem que aprender, garoto, a não fazer merda.
O
pai infla as bochechas, cerrando os dentes. Suas mãos dirigem-se ao cinto.
Tira-o de uma presilha. Olha para a mãe. Ela franze os olhos.
-
Muito bem, garoto, ouça-me bem. – solta a mão do cinto, tira a camisa para
fora. Ajeita a calça. Curva-se para o menino.
-
Você não pode mais fazer estas coisas. Tá vendo aquele alçapão ali?
Aponta
para além do garoto, no teto do corredor.
Ele
olha. Demora para erguer a cabeça. Volta ela para o pai.
-
O velho do saco está ali, dormindo. Ele se alimenta de arteirice de guris que
nem você. Toda vez que você faz algo errado, o sono dele fica mais e mais
fraco. Até que um dia, de tanto você aprontar, ele vai acordar. E você não ia
querer ver ele. O velho do saco tem toda a pele apodrecida. E o rosto, oh,
Senhor, eu nem sei do rosto dele.
-
O que ele faz com as crianças?
O
pai olha novamente para a mãe. A mãe olha para o garoto.
-
Ele te coloca em um saco e te leva embora para sempre.
Á
noite, deitado em sua cama, ele puxa a coberta até os queixos. Um fraco fio de
luz da lua corta a porta, em direção ao armário do quarto. Ele ouve ruídos no
teto. Estremece. Seus olhos fixam-se na porta. Lá fora, o vento assobia.
Silêncio. Ele ajeita a cabeça no travesseiro, ainda de olhos abertos.
E
esperou pelo dia que, fatalmente, a besta desceria do sótão e lhe tomaria em
seus braços, para todo o sempre.
Agradecimentos
a Adriano Boriani, Anderson Nery, Guilherme Giublin, Kaiser, Jackson Souza Reis,
Jorge Barbosa Filho, Fabiano Vianna, Luiz Felipe Leprevost, Maria Luísa
Carneiro Fumaneri (principalmente), Leonardo Burigo, Fábio Young Lopes, pelos
momentos em que tiveram de aguentar eu falando sobre este conto e o quanto ele estava
me deixando perturbado e blá blá blá, até o limite da xaropice. Thank you all,
motherfuckers!
Isabele Linhares
Seu portfolio online: isabelelinhares.daportfolio.com
Gostei desta participação do velho do saco no final. Não imaginaria um desfecho com essa citação. Me surpreendeu, muito bom!!
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