20 de abr. de 2012

Calabresa com borda de cream cheese

Texto: Paulo Biscaia Filho
Fotografia e direção de arte: Eli Firmeza
Estrelando: Olívia D' Agnoluzzo e Carol Winter




Cheguei em frente ao prédio com as portas de ferro pichadas com letras intraduzíveis.
Acionei o porteiro eletrônico.

Lembrei da cantora de blues nas manchetes. Depois de anos de críticas a suas performances desleixadas, sua morte por aparente overdose fez os jornais lembrarem de seus anos de ouro como diva da música.

Ouvi sua voz abafada pelo porteiro eletrônico com mal contato. Um zunido e a porta se abriu. Entrei no saguão. Fui até a frente do elevador e pressionei o botão com o miolo erodido por todos os dedos que décadas antes arranharam sua superfície.

Aquele escritor fez tantas obras que determinaram o pensamento de uma geração de rebeldes. Agora estava caminhando para livros de auto ajuda. Ninguém entendia. Ninguém mais lia. A auto ajuda caiu por terra junto com seu corpo quando tombou do vigésimo sexto andar. A polícia ainda investiga a possibilidade de suicídio. Ele não deixou nenhuma nota. Por mim, cada um de seus últimos livros já era uma despedida. Suas primeiras obras hoje são estudadas e cultuadas.

O elevador chega. Entro e procuro pelo quinto andar. Depois de um solavanco, começo a subir.



Nos anos 50, a beleza daquela atriz estampava cartazes e revistas de cinema. Suas pernas eram adoradas como deuses legítimos. O whiskey e um vício por bolinhos de chocolate a transfiguraram. O laudo médico decretou que ela havia se engasgado com um brigadeiro e não havia ninguém por perto para ajudar. Havia. Agora sua beleza era eterna.

Chego no quinto andar e a porta do elevador faz um barulho assustador. Vacilei em sair. Eu sempre vacilo em algum momento quando faço isso. Não vou mais vacilar de agora em diante. Caminhei pelo corredor de parede chapiscada até o apartamento 502. Toquei a campainha.

Não havia ninguém no halfpipe como ele. Seus giros de 960º levavam o público ao delírio. Abandonou o skate e o trocou por uma Bíblia. Pregava o amor de Jesus em troca de doações. Seu atropelamento fará com que ele conheça Jesus com mais propriedade. Ninguém conseguiu anotar a placa do carro que atravessou o corpo a 180Km/h.

Ele abre a porta. Eu estendo a pizza calabresa com borda de cream cheese. Ainda nervoso, anuncio seu destino:
-  São R$32,50.


Eu sei quem é ele. Tudo o que sei sobre cinema devo a ele. Estico o pescoço e consigo ver prêmios sobre uma prateleira. Palma de Ouro, Globo de Ouro, Oscar, Kikito! A poeira cobria todo o brilho das estatuetas. Em uma parede, recortes de jornal emoldurados mostram fotos de apertos de mão com presidentes, companhias de lindas pin ups, grupos de ícones do século XX. Seu nome não é mais lembrado nem mesmo em círculos de acadêmicos. Ele comerá a pizza. Em dois ou três dias, os vizinhos irão reclamar do cheiro. A polícia arrombará essa porta sem dificuldade. Seu corpo será encontrado sob moscas e vermes. Os jornalistas saberão. Seu nome será lembrado. Seus filmes serão revistos. Sua obra será novamente cultuada.





Agora devo ligar para um certo vendedor de planos de saúde. Um certo senhor grisalho que nos anos 80 foi reverenciado como a maior revolução nas artes plásticas desde Warhol.

Minha missão é justa. 

Paulo Biscaia Filho
Diretor da companhia de teatro: http://www.vigormortis.com.br

Eli Firmeza
Filmes e trabalhos de direção e fotografia em: http://vimeo.com/elifirmeza 

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