Fotografia e direção de arte: Eli Firmeza
Estrelando: Olívia D' Agnoluzzo e Carol Winter
Cheguei em frente ao prédio com as portas de
ferro pichadas com letras intraduzíveis.
Acionei o porteiro eletrônico.
Lembrei da cantora de blues nas manchetes.
Depois de anos de críticas a suas performances desleixadas, sua morte por
aparente overdose fez os jornais lembrarem de seus anos de ouro como diva da
música.
Ouvi sua voz abafada pelo porteiro eletrônico
com mal contato. Um zunido e a porta se abriu. Entrei no saguão. Fui até a frente
do elevador e pressionei o botão com o miolo erodido por todos os dedos que
décadas antes arranharam sua superfície.
Aquele escritor fez tantas obras que
determinaram o pensamento de uma geração de rebeldes. Agora estava caminhando
para livros de auto ajuda. Ninguém entendia. Ninguém mais lia. A auto ajuda
caiu por terra junto com seu corpo quando tombou do vigésimo sexto andar. A
polícia ainda investiga a possibilidade de suicídio. Ele não deixou nenhuma
nota. Por mim, cada um de seus últimos livros já era uma despedida. Suas
primeiras obras hoje são estudadas e cultuadas.
O elevador chega. Entro e procuro pelo quinto
andar. Depois de um solavanco, começo a subir.
Nos anos 50, a beleza daquela atriz estampava
cartazes e revistas de cinema. Suas pernas eram adoradas como deuses legítimos.
O whiskey e um vício por bolinhos de chocolate a transfiguraram. O laudo médico
decretou que ela havia se engasgado com um brigadeiro e não havia ninguém por
perto para ajudar. Havia. Agora sua beleza era eterna.
Chego no quinto andar e a porta do elevador faz
um barulho assustador. Vacilei em sair. Eu sempre vacilo em algum momento
quando faço isso. Não vou mais vacilar de agora em diante. Caminhei pelo
corredor de parede chapiscada até o apartamento 502. Toquei a campainha.
Não havia ninguém no halfpipe como ele. Seus
giros de 960º levavam o público ao delírio. Abandonou o skate e o trocou
por uma Bíblia. Pregava o amor de Jesus em troca de doações. Seu atropelamento
fará com que ele conheça Jesus com mais propriedade. Ninguém conseguiu anotar a
placa do carro que atravessou o corpo a 180Km/h.
Ele abre a porta. Eu estendo a pizza calabresa
com borda de cream cheese. Ainda nervoso, anuncio seu destino:
-
São
R$32,50.
Eu sei quem é ele. Tudo o que sei sobre cinema
devo a ele. Estico o pescoço e consigo ver prêmios sobre uma prateleira. Palma
de Ouro, Globo de Ouro, Oscar, Kikito! A poeira cobria todo o brilho das
estatuetas. Em uma parede, recortes de jornal emoldurados mostram fotos de
apertos de mão com presidentes, companhias de lindas pin ups, grupos de ícones
do século XX. Seu nome não é mais lembrado nem mesmo em círculos de acadêmicos.
Ele comerá a pizza. Em dois ou três dias, os vizinhos irão reclamar do cheiro.
A polícia arrombará essa porta sem dificuldade. Seu corpo será encontrado sob
moscas e vermes. Os jornalistas saberão. Seu nome será lembrado. Seus filmes
serão revistos. Sua obra será novamente cultuada.
Agora devo ligar para um certo vendedor de
planos de saúde. Um certo senhor grisalho que nos anos 80 foi reverenciado como
a maior revolução nas artes plásticas desde Warhol.
Minha missão é justa.
Paulo Biscaia Filho
Diretor da companhia de teatro: http://www.vigormortis.com.br
Eli Firmeza
Filmes e trabalhos de direção e fotografia em: http://vimeo.com/elifirmeza
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