29 de fev. de 2012

A defunta lésbica que acabou com o romance das caveiras

Ilustração: Frede Tizzot
Texto: Luiz Andrioli, Alvarenga e Ranchinho






Eram duas caveiras que se amavam. E à meia noite, na ladeira do Largo da Ordem, se encontravam. E juras de amor então trocavam. Abraçadas as duas em riba das pedras frias, a Caveira apaixonada dizia que de tesão por ele vivia; e o Caveiro falava que de desejo pela outra morria.
Mas um dia chegou de pé junto, uma gordinha nova no Cemitério Municipal. Cabeleireira, trabalhava na André de Barros, ao lado do Terminal do Guadalupe. Cortava cabelos das crentes que vendiam as madeixas para fazer perucas.  A cada comissão que ganhava, corria até a distribuidora de doces para comprar uma bandeja de teta de nega. Comia os doces de noite em casa. Em um sábado exagerou. Mandou pra dentro de suas fartas carnes ainda mais duas porções de corações de abóbora doce e uns oito sorvetinhos de maria-mole. “Teve uma doce despedida”, disse o pastor no discurso à beira do caixão.
Poucos sabiam que a Gordinha guardava em baixo da cama uma coleção de postais com fotos antigas de modelos nuas.  Pela noite, deitada, ela se masturbava com os retratos espalhados sobre a colcha de patchwork. Na boca ainda o gosto açucarado da tarde.
Morta, passeando pelos corredores do Cemitério Municipal, a gordinha topou com a foto da caveira em um mausoléu. Foi paixão à primeira vista. Estava ali o sentido da sua morte recém- assumida. Era sábado, o carnaval estava próximo e ao fundo era possível de se ouvir o arranhar de algumas cuícas nos botecos do São Francisco. O coração da gordinha até sambaria, não tivesse morto. “Mas os mortos também amam”, pensou. Embalada por este novo sentimento, procurou sua lápide para deitar. Tinha decidido que procuraria a caveira-metade já no domingo.
A gordinha passou a primeira noite olhando a Lua nova que brindava o cemitério. Chegou ao êxtase sentindo o corpo sem a vida que conhecia, mas cheio de uma nova energia despertada pela paixão. Gozou com um novo doce na boca: a imagem da Caveira.
Acordou tarde. Saiu pelo portão do Cemitério com a certeza de que voltaria de braços dados com sua nova paixão. Andou até o Largo da Ordem e encontrou uma festa já nas ruas próximas. Seguiu no ritmo do bloco.  Uma multidão descia a ladeira a partir da Sociedade Garibaldi. Uma festa de pré-carnaval que, a bem da verdade, pouco interessava para a gordinha. Ela sambava junto com o ritmo desajeitado dos curitibanos apenas para procurar seu amor. Girava o corpo, curtia a malevolência, jogava seu olhar por todos os cantos procurando a dona da foto da lápide que vira na noite anterior.
De cima do trio elétrico, o vocalista puxou animado um “ó quanto riso, ó quanta alegria. Mais de mil palhaços no salão...”. Foi quando a gordinha falecida encontrou a Caveira. Ela estava abraçada ao Caveiro, trocando suas juras de amor. Por um momento a recém-falecida apaixonada pensou em desistir. Mas logo se fez de faceirinha na frente do casal. Puxou para seus pés toda a sensualidade dos seus sonhos doces e sambou. Como se fosse um roteiro desenhado, a Caveira percebeu o apelo e soltou do abraço até então imortal. A Caveira se encantara pelo samba fresquinho de quem acabara de morrer.
Toda a multidão de foliões descia o Largo da Ordem sem perceber o amor que acabara de nascer para a imortalidade. A mais nova encantada seguiu na cadência daquela defunta ainda cheirando vida atrás do trio elétrico. O Caveiro abandonado sentiu um aperto grande no vazio do seu peito onde no passado ficava o coração. Sem que o vendedor de coco percebesse, tomou o facão que estava em cima do isopor e cravou no vazio de suas vísceras. Morreu pela segunda e última vez. Foi por amor. Foi por desejo.  Só por causa daquela ingrata Caveira que trocou ele por uma defunta lésbica.
A gordinha e a Caveira ficaram para trás da multidão e do trio elétrico. Elas se beijaram em tom funébre. Ao longe uma coruja cantava alegre e batendo as asas pedia bis.

Frede Marés Tizzot
Formado em História e Direito, abandonou o mundo acadêmico para fundar a Editora e Livraria Arte e Letra, onde trabalha como ilustrador, capista, diagramador, editor, revisor, tradutor...

Luiz Andrioli
Publica crônicas, matérias e contos no site: luizandrioli.com

28 de fev. de 2012

O Sonho de Cabeza

Arte: Dolores Garcia
Texto: Florestano Boaventura


Álvar Nuñez Cabeza de Vaca não foi o primeiro conquistador a descobrir as “Cataratas do Iguaçu”, e sim, o primeiro europeu a contemplá-las. Segundo dizem, isto ocorreu em um sonho.
Entorpecido pelas ervas misteriosas dos índios Avavares, que povoavam as encostas do Rio Paraguai, Cabeza de Vaca vislumbrou em estado completamente alucinante as imensas quedas paranaenses. Conjecturou que neste sonho uma bela mulher chamada Naipi fugia com seu amante mortal Tarobá em uma canoa em direção à garganta do Diabo, e então caíam.
As alucinações vieram logo após a pajelança. No ritual, o pajé e seu convidado beberam uma espécie de bebida afrodisíaca, chamada tafiá, evocaram espíritos de ancestrais e de animais da floresta, enquanto índias dançaram nuas ao redor deles – o grupo de quatro homens que o acompanhavam. Elas usavam máscaras de criaturas assustadoras – pelo menos para aquele maço de heróis abrutalhados, afeitos apenas com as inocentes máscaras do Carnaval espanhol.
Álvar suou a febre dos deuses Avavares.
Suas veias eram um emaranhado de rios de sangue, de sua boca brotaram serpentes.
As imagens surgiram turvas e nebulosas, porém muito vívidas, segundo constam os escritos biográficos de Alonso del Castillo, companheiro que possuía um digno dom para a escrita – assim como Álvar, e ficou naquela noite, graças aos deuses, abstêmio da tafiá. Ele foi ouvinte dos devaneios de Cabeza quando o amigo saltou da rede tal qual uma onça, regurgitando vocábulos, seres e mapas.
Assim esta história chegou a mim. E tantas e tantas fogueiras magnânimas lamberam sem mastigar as páginas roídas destes relatos...
Mas Álvar, que já havia enfrentando o monstro da Malária e fez até morto-vivo renascer na “ilha do Mau Fado”, não se deixou abater por uma mera febre e no outro dia, logo cedo, ao lado de seus quatro fiéis compartes, partiu em direção ao cerne da floresta. Estava disposto em encontrar as tais quedas monstruosas que calharam sobre sua rede durante a noite.
Era preciso subjugar as divindades líquidas. Enfrentar o destino que lhe foi imposto.
A trilha era um tapete de vagalumes amassados ainda acesos.
No caminho, pediu para que del Castillo lesse os escritos da noite passada.
Os cinco homens foram então guiados por aquelas palavras. Versos dementes, gerados da vigília febril. Mapa de tafiá.
Até que então a Garganta do Diabo se acendeu para eles.
Das cachoeiras colossais, abriu-se um rasgo no verde. O mundo desabou em milhares de litros d´água.
Era difícil respirar. As cataratas sugavam as palavras para dentro delas.
Insetos incríveis volteavam as gotas.
Lagartos pré-históricos espreitavam entre arbustos.
E Cabeza de Vaca só não foi o primeiro conquistador a descobrir a Cataratas do Iguaçu porque esta expedição também só ocorreu em um sonho. 

Florestano Boaventura
Editor da revista pulp Lodo: revistalodo.blogspot.com

27 de fev. de 2012

O bloco da meia-noite

Arte: Isabele Linhares
Texto: Daniel Russell Ribas



Era o ano de estreia do bloco. Poderia ser apenas mais um entre as dezenas de aglomerações festivas ilegais que brotavam das ruas da cidade a cada carnaval, como as latas de cerveja esmagadas e a urina onipresentes. Ao contrário da maioria, saía do cemitério, na terça-feira, à meia-noite. Depois, dava uma volta no quarteirão e retornava à concentração.
Achamos tão estranho que era imperdível. Que tipo de mulher teria por lá? Nunca tinha "pegado" uma gótica antes. Devia ter alguma gostosinha. Mas, novamente, a gente falou Vamú lá, que vai rolá! e fomos. Àquela altura, tínhamos uma média de cinco a seis blocos por dia, duas mulheres por bloco de ficação, três para ralação séria; às vezes apenas cada um com sua garota, em outras, dividindo entre a gente.
A concentração ficava quase na entrada da cidade, perto da zona portuária. O ar pesava em maresia e podridão. A mistura da poluição das águas com a imundície daquela parte negligenciada do município, ainda mais evidente pelos efeitos legados por foliões relapsos, torna a atmosfera sufocante. Mas não era só isso. Havia mais um odor no ar. Fino, delicado, porém determinante. Era dez para meia-noite. O bloco, em breve, sairia e arrastaria a todos em ritmo de batida e pecado.
Porra, se lembra onde estacionou o carro? Não vejo nada nesta merda, tá escuro pra caralhooooo! Amanhã, cedinho, é Cordão, no Centro! Uhú, dormir é para os fracos! O bloco já saiu do cemitério?! Porra, mal passou de meia-noite! Se liga, tá logo ali, tou ouvindo a bateria!
Os quatros jovens correram, trôpegos pelo cansaço e embriaguez seguidas durante o feriado. Como o bloco estava entrando na esquina, alcançaram-no sem problemas. As ruas estavam desertas e um breu dominava o ambiente. Se não fosse a música alegre, alguém poderia confundir aquela passeata como algo mais obscuro e sinistro. Eles chegam pulando, abraçados e exibindo disposição para festejar.
Não é que o maluco não tava mentindo? Tem mulher nessa porra! Mulher boa! Só não tou vendo ambulante. Foda-se, trouxemos gummy pra encher a cara de geral aqui! Se você fosse sincera! Ôôô!
Os amigos estavam com um objetivo claro em mente: sexo. Conheceram um rapaz em um outro bloco, que os alertara para a estreia do Bloco da Meia-Noite. Após o estranhamento inicial, perguntaram se mulheres estariam. Cara, garanto: vai ter de tudo.
Pra chegar em mulher, tem que ser direto. Em bloco, não pode perder tempo, cara. Perdeu, playboy, já era, parte pra outra. Mulher não falta. A gente foi lá sem muita expectativa, mas a mulherada nos deu a maior moral! Um pôs o braço em volta da morena, e foi! Outro chegou, cantou a marchinha no ouvido e terminou na boca. O cara veio com uma cantada podre, a garota riu e, no final, tavam os dois rindo juntos, abraçados. Eu também me dei bem, uma lourinha que não parecia ser daqui.
O bloco deu a volta no quarteirão. Seguiu sua trajetória sem intervenções problemáticas. Nada de vendedores interrompendo a passagem, moradores reclamando do barulho ou briga no meio. Aos beijos, tudo isto pouco importava aos amigos. O tempo para eles estava acabando e eles pretendiam aproveitar ao máximo. Afinal, já era quarta-feira de cinzas!
Cara, nem notei quando entramos no cemitério! O bloco tava tocando e as garotas na maior disposição e a gente sem conhecer porra nenhuma daquele buraco onde tinha se enfiado. "Vamos pra dentro?" "Só se for agora!", resposta geral. À medida que a música se distanciava, maior era o calor. "Muito quente, não tá a fim de tirar essa blusinha?" Nessa hora, não tem frescura. Pegamos as piranhas no chão mesmo! Chão, chão, chão! Podia ouvir os colegas gozando alto. "AAAHHH!" É que digo: quanto mais longe da cidade, melhor pra pegar mulher. Aqui, não tem frescura pra dar, não!
Quando o último dos amigos finalizou a relação sexual, ele percebeu o sangue. Por um instante, pensou que tivesse rompido o hímen da jovem. Mas uma gota caiu em seu pênis, de cima para baixo. Depois, outra. E outra. A mulher permanecia na mesma posição, sem mexer. Deitada de barriga para baixo no mármore, a cabeça escondida pelas trevas. De onde vinha o sangue? Ele cutuca a jovem, que não responde. Após mais algumas tentativas frustradas, o garoto a puxa pela perna até que todo o seu corpo, dos pés ao pescoço cortado, ficasse visível ao luar. Antes que pudesse gritar, sentiu a pedra pontiaguda abrir caminho entre sua coluna cervical, coração e peito, descansando assim que chegara ao outro lado. Desabou e notou a cabeça de companheira também no chão.
A cabeça sorria.
Enquanto o gosto doce de álcool e sangue inundava sua garganta, poderia jurar que via um desfile de corpos nus e mutilados abrirem as alas do cemitério. Uma das garotas, a morena, pulava, nua, em direção ao grupo. A cada movimento para cima, vermes caíam de seu cabelo cheio de terra. Ela segurava o que parecia ser um braço humano mastigado, parte já no osso. Seria do...
O bloco de assombrações comemorava o último dia da festa da carne antes de retornar ao inferno. Bebida, música e muito churrasquinho até a aurora. Afinal, já era quarta-feira de cinzas!

Isabele Linhares
Seu portfolio online: isabelelinhares.daportfolio.com

Daniel Russell Ribas
Foi criado no Rio de Janeiro. É formado em Jornalismo pela PUC - Rio. Fez roteiros, matérias e contos. Ele participa do grupo "Clube da Leitura" no sebo Baratos da Ribeiro, no Rio de Janeiro (www.baratosdaribeiro.com.br/clubedaleitura), é editor da Editora Oito e meio (www.oitoemeio.com.br) e escreve um blog desatualizado (dribas2.blogspot.com). Também participou da antologias "Clube da Leitura, modo de usar, vol. 1" e "Caneta Lente Pincel" (ed. Flanêur) e escreveu para o catálogo da mostra "David Lynch - o lado obscuro da alma". Recentemente, organizou com Flávia Iriarte a coletânea "A Polêmica Vida do Amor" (ed. Oito e meio). 

26 de fev. de 2012

dor sem sombras

fotos : MARCO NOVACK
texto: LUIZ FELIPE LEPREVOST
estrelando: UYARA TORRENTE
maquiagem e cabelo : ANDREA TRISTÃO
figurino : FLOR DE VEDETE
arte: MARJA CALAFANGE
assistência : DAY BERNARDINI






acordo
num cemitério
todos os que somem um dia estiveram aqui
que horas são?
o sol reponde
é a rodoviária ali do outro lado da rua?
estou assim: de maiô
às cinco da tarde
confirmo agora com um homem que passa levando um skate
enojado, ele me responde enojado
em que cidade estou, moço?
o homem já não me escuta
caminha rápido, digo, para um homem que manca
e o céu não querendo ser cinza nem azul

com dez mil leões no cabelo, a dor sem sombras

acordo acordo
fedor de álcool e suor
vem do grupo de pessoas dormindo ao meu lado
a minha bolsa
não é travesseiro não, vadia
tiro debaixo de sua cabeça com cuidado
a calçada vai

acordo
são tantas garrafas que mal posso contar
ardem
meus olhos, lesmas no sal
pego a bolsa ou não?
é minha, deve ser

acho que caminho
chego numa avenida
é a

a dor sem sombras e sua lã sem derme



escuto um rádio
e o locutor
vem da portaria do prédio azul
detesto futebol
sensação angustiante que a narração dentro do final da tarde é dentro
da cidade vazia
conheço bem este desamparo
e o nome que lhe dei

caminho, nem sei se avanço

a bolsa
ah
quem sabe encontro meu celular
devo ter um, todos tem
abro ou não a bolsa?
se não for minha
meto a mão no fundo: uma faca


caminho
não reparo se acordada
preciso ir para casa
minhas virilhas doem
e os peitos
estou ferida
este barulho no asfalto
onde moro?
meus pés são cascos

pude lamber sua cara
mergulhar na claridade dos raios solares de álcool

agora lembro
é
com a faca limpei peixes ontem
onde foi quando?
no jantar, isso
estava preparado, o jantar
um peixe falou comigo você é melhor cuspindo fogo
agora não lembro mais

ah
já sei quem sou

e o peixe? nada



sou uma desistência um acidente, sou um deserto

e o peixe o peixe o peixe é

a minha verdade não estou nem aí

já sei
o peixe falou como se as facas não fossem os
peixes mais macios a carne sabe engolir

oito quadras conto na avenida
uma se abre para a outra e a outra
e aqui estou reconhecendo este lugar
a placa é explícita: Café do Teatro

uma festa a fantasia
por isso estou vestida assim
claro
quando foi ontem?
foi ontem







o peixe estava comigo
tinha mais alguém
quem?
e o peixe pergunte à sua cidade, ela pode dizer

preciso ir
minha casa
reze
preciso dela
por aqui?
vou
subo a rua ou não?
faz sol
nesta rua não
a tarde tem a cor dos paralelepípedos
eu conheço você, rua
reze, a rua diz sarcasticamente
já fomos apresentadas
temos vícios parecido
já andei por você que
que alegria que tristeza
que alívio que merda fui fazer
você
você é a fumaça

subo
som de batuques
sei que subo
na direção da música

a dor sem sombras, em quem me farto?


chego
sei que chego
é uma espécie de fonte de fogo
centenas, talvez milhares de pessoas
a roupa colorida
o baile de máscaras
homem que é mulher que é homem
que bom que veio
eu rio um pouco envergonhada
vocês devem estar me confundindo com alguém

sei que chego sei
as pessoas comemoram a minha presença
de onde me conhecem?
quem vai cantar no trio-elétrico?
tirem uma foto minha
olham para mim como eu fosse
alguma coisa que tivessem tirado do nariz
quem diria, hein, de enfermeira a


eu sei cantar, eu sei fazer
acho que sei
todo mundo sabe
talvez
mas
será?

lagarta e códigos de vozes em choque

avisto alguém que conheço
sim, não
penso conhecer
não estou convencida
certeza, é ele
não nos vemos desde
é ele?
o próprio

encosta na minha carne doendo
mania que o coração tem de falar comigo
uma voz no tempo
prédios sobre a face da Terra não existiam e roxo
queria dizer adoro, sou fanático

e eu
lambe minha teta
a esquerda
sim
conheci um poeta
acho que dormi tempo demais dentro de seus poemas
e o bicho roxo encanta-me ó frase que indaga, dá-me
a exasperação da saudade de nós naqueles que amamos
e eu
conheci cada lágrima é uma lâmina que eu choro um poeta
e o nojento roxo não tem o menor constrangimento, é abundância
e eu
conheci um poeta quem não conheceu?

aceno
é ele mesmo no meio dos foliões
estranho, esta palavra não era para estar aqui
ah
ele vem na minha direção
está tão perto
vou encostar nele com a minha mão
não o alcanço
ele continua se aproximando
me sorri
abro a bolsa sem dar para o ato
ele está tão longe
abro abro abro, sei o que estou fazendo
mas não hoje, hoje não, meu Deus, o quê?
estou tão desesperada, por que fiz isso comigo?
enfio a mão na bolsa, aperto com minha garra a faca
sou dela como o osso é do cachorro
ah, querido, desculpe estar te conhecendo agora
você sabe como nunca que me destruí

ah
nos beijamos, olhos fechados
os lábios da faca



abro os olhos
além de mim
não pode ser um cemitério
ninguém no Largo
é inverno
meu maiô... rasgado
chove
tenho um peixe morto na mão

o vento é o rascante gemido de uma cuíca

marco novack
publica suas imagens no site: http://www.marconovack.com.br

lf leprevost 
publica seus contos em http://www.notasparaumlivrobonito.blogspot.com

25 de fev. de 2012

Alalaô

Ilustração: Yan Copelli
Texto: Thiago Tizzot







Entregou o desenho para a mãe, as palmas da mão suadas pela ansiedade. Seria seu primeiro carnaval longe dos pais. Tinham combinado que levariam o guri até o clube e iriam embora buscando só quando a tarde terminasse para irem até a casa da vó comer uma fatia de bolo de cenoura com cobertura de chocolate. Sempre que lembrava da vó, sentia aquele cheiro de coisa guardada muito tempo no armário. Até os bombons na casa dela tinham este cheiro, não importava, o guri os comia e lambuzava os dedos mesmo assim.
A mão pegou o papel e ficou olhando sem muito interesse.
- Ai meu Deus que coisa feia essa cabeça. Pra que usar isso? Não prefere uma fantasia do batman? – disse sem tirar os olhos da televisão, novela. – Acho que consigo costurar a roupa até amanhã, talvez não tenha o tecido de bolinha, mas não faz diferença. Sua irmã tem uma boneca quebrada, se você realmente quer usar isso podemos pegar a cabeça dela.
- Não precisa, mamãe. A cabeça já tenho.
O guri levantou a cabeça do seu Ari, o porteiro. Os olhos estavam esbugalhados, a língua para fora, o pescoço estraçalhado e o sangue pingava ritmadamente no chão. Como o tamborim daquela marchinha, seria alalaô mais que calor?

Thiago Tizzot
Autor dos livros "O Segredo da Guerra" e "A Ira dos Dragões e outros contos", pai da Lili e Basilisco.

Yan copelli
Seus trabalhos podem ser visualizados no site: yancopelli.com

24 de fev. de 2012

Gringos no Carnaval

Ilustração: Hafaell Pereira
Texto: Eduardo Capistrano


— E aí, tão gostando?
— Bom, bom! — mas o “b” soava mais como “p”.
Gringos. Insistiam que não, mas era impossível acreditar. Os três grandalhões, roliços e branquíssimos se não fossem as caras vermelhas de tanto álcool, tinham passado pelas portas do boteco lá pelas 2 da manhã de plena segunda-feira de Carnaval e não saíram mais. Estavam tão cheios de gadgets e quinquilharias que os malandros do lugar ficaram maravilhados de ainda terem os braços e as pernas. Pois se havia algum lugar seguro para gringos, era a quilômetros dali.
Os gringos chegaram tirando fotos. Um deles ouvia marchinhas com fones de ouvido no último volume. Logo os cordiais convivas “pediram pra segurar” a parafernália, trocando-as por garrafas de alegria e braços de morenas. Se notaram, nem se importaram. Se entregaram à bebida, ao samba e à sacanagem de tal maneira que conquistaram o povo do boteco. Um deles se enroscou com uma mulata de tal maneira que só foram o encontrar no dia seguinte. O que ficou sem os fones dançava sem parar, desengonçado mas como um possesso, resistindo na pista através das marchinhas, do samba, do pagode, do funk, de qualquer coisa que agitasse as paredes do boteco.
O último parecia querer beber o bar inteiro. Já tinham chegado torcendo os pés, mas esse estava enxugando as garrafas sem parecer ficar pior. Travou uma conversa profunda com o dono do boteco e outros no balcão do bar, daquelas sobre os mistérios mais obscuros da existência que só bêbados conseguem travar. Contou que estavam presos, que agora só queriam saber de se divertir, que não queriam voltar pra casa. O dono do boteco quis saber de onde vinham. O gringo disse algo e o povo sacana festejou.
“Eu disse Xoth e eles entenderam xota”, disse o gringo telepaticamente aos amigos, seguido de uma gargalhada.
“Acha prudente?”, respondeu mentalmente o que dançava, sem prejudicar as requebradas.
“Foda-se a prudência. Estamos livres! Sejamos livres!” O último ofegava até em pensamentos, enquanto trepava com a mulata num beco atrás do boteco.



Eduardo Capistrano
Nasceu em Curitiba, Paraná, no ano de 1980. Contista desde 2002, é autor de "Histórias Estranhas" (2007) e "A Quarta Dimensão" (2011).
Saiba mais em http://edcapistrano.blogspot.com


Hafaell Pereira
Conheça mais de seu trabalho em: flickr.com/photos/hafaell

23 de fev. de 2012

Dominó

Fotografia: Wanly de Marino
Texto: Rodriane DL



Minha mãe meteu o dominó pelo meu pescoço quando me pegou com a cara enfiada na tigela de macarrão frio. Não era nada com a comida, era com a geladeira novinha em folha e intocável. As meninas já lá fora com os olhos verde-veneza tapados e uma maquiagem que deixava qualquer cara com molho feliz. Sorri com o canto dos lábios sujos e escondidos. Pensei que eram bonitas aquelas poças de bolinhas coloridas que os confetes deixavam. Pensei em rasgar a fantasia das meninas. Pensei que o carnaval tinha começado e eu podia fazer qualquer coisa, mas minha mãe só pensa na geladeira nova.
Tem passado muito pensamento pela minha cabeça.
Pois um dia desses eu mato qualquer um e meto o dominó pelo meu pescoço.
Duvido que minha mãe me pegue.


Leia este e outros contos da Rodriane DL no blog: caramelosestragados.blogspot.com


22 de fev. de 2012

Entre Família

Ilustrações: Elis Marina B
Texto: Paco Steinberg

Nota: Caro leitor, o conto abaixo é um pouco extenso em relação aos demais que produzo. Fato é que se trata de um conto de família, e histórias de família sempre têm muito a contar. É bem aqui onde você continua ou desiste.




Para para essa porra caralho é aqui Meu tem certeza É sim porra tá me tirano Uma casa desse tamanho sem alarme Fica de boa a mina é firmeza trabalha aqui faz uma cara e outra ela sabe que se atrasar a função tá fudida Quanto cê combinou com ela Ela só quer um colar da velha que tá no quarto Já é Os quatro bandidos respiram no vidro quente do Monza 87 Verão é de foder calor do caralho Coé maluco se liga na situação Cadê a família Foram num baile de Carnaval lá no Curitibano Bando de prebói do carai O muro da casa escolhida com tanta pertinácia rasgava o coração do Jardim Los Angeles com pedras cinzas imensas e sujas Sobre o muro antigo não havia cerca elétrica nem placa de aviso nem mato com espinho nada nada nada Partiu pra correria É nóis Representa Os quatro saltam do carro mas uma das portas emperra Peraí a minha correntinha da Nossa Senhora do Perpétuo Socorro ficou ali cara abre a porta pra mim tirar Vacilão do caralho se liga na responsa É vamo tá atrasando a porra toda deixa essa merda aí Não posso Ói mano o processo é ligeiro e o baguio é loco tá ligado fica aqui fora então e se aparecer um cana cê dá um toque na gente valeu Não vai dormir caralho Se liga véi parceria Então partiu Os três homens dão a volta na quadra em busca de câmeras de segurança todavia não encontraram nada que parecesse perigoso A casa ocupava metade de uma quadra inteira e mergulhava na penumbra do bairro pois todos os postes ao redor da mansão estavam sem luz Porra véi cê é ligeiro hein deixou da hora pra gente entrar Como assim Os postes véi tu quebrou a porra toda Não fui eu cara Carai só os da casa que sinistro Ô seus merda vão ficar brincando de prefeitura aí que se foda o poste melhor pra nóis Olha ali daquele lado as pedra tão moleza de subir Já foi Os bandidos admirados pela facilidade em transpor a muralha estranharam a ergonomia com que seus chinelos encaixavam-se nos buracos como se cada cavidade tivesse sido construída com o intuito de uma escalada incólume ou de uma fuga rápida ou sabe-se lá o quê Já do outro lado os três homens encontram um jardim repleto de árvores floridas e frutíferas onde alguns morcegos alimentavam-se de frutas doces Ao fundo do jardim a mansão estava de portas e janelas abertas com algumas luzes acesas De dentro da casa soava uma marchinha de carnaval em volume alto “Se você fosse sincera ôôô Aurora...” Dois cachorros completamente negros de grande porte dormiam tranquilos em frente à porta de entrada Carai véi fudeu ói o naipe dos dog mano vai dar treta Vai amarelar cuzão ói lá os dog tão véi pra carai dá pra ver os pelo branco daqui Puta cara sei não hein Vai ficar nesse caô seu otário coé Vamo de uma vez porra Os três bandidos aproximam-se da porta vagarosamente Nossa véi nem meu vô deixa a casa com luz acesa e som ligado só otário acha que truta ainda cai nessa Ei a empregada não tá aqui Não ela disse que ia vazar antes da gente chegar Tá faz assim ó dois lá em cima e tu aqui embaixo valeu é papo reto deu treta rala peito e some cada um por si e que se foda O bandido que permaneceu na sala iniciou o roubo com obviedades tais como pratarias cristais e objetos de ouro Como não era sabido e nem ladrão há muito tempo um Stradivarius pendurado acima da lareira passou-lhe despercebido entre outras obras de arte que o rapaz julgou serem velhas ou feias demais O bandido virou-se para a porta com o intuito de levar o tapete Neste momento os dois cachorros em posição de guarda na porta observavam seus movimentos com semblantes serenos porém preocupantes

Véi os dog acordaro Cala a boca truta os vizinho vão escutar seu burro Tá com medim dos dog que mané Ah num enche o saco cês dois são foda O bandido continua seu trabalho mas por intuição ou cautela vira-se novamente para a porta e os cachorros vagarosamente entreolham-se como se combinassem algo ou trocassem informações e voltam a olhar o bandido Véi vou dar pipoco nesses dog sinistro do caralho Já falei pra calar a boca truta porra O bandido prepara-se para puxar a arma mas enche seus olhos com a luz de um porta-retratos dourado imenso onde uma foto comportada de família adornava a tampa de um piano negro alemão O bandido vai até o objeto mas percebendo sua intenção o cachorro macho emitiu um som maligno e gutural Grrrrrrrrrrrrrr O bandido vira-se e solta o objeto paralisado de medo do cachorro negro de raça indefinida e tamanho admirável O bandido encarando o cachorro resolve pegar um vaso que julga pelo seu medíocre conhecimento ser chinês porque rico sempre tem vaso chinês porém aquele era egípcio Ao encostar no vaso a cadela emitiu o mesmo som de seu companheiro Grrrrrrrrrrrr O bandido enfurecido virou-se gritando Seus féladaputa do carai O homem saca a arma e descarrega todas as balas nos dois cachorros que sem o menor sinal de ferimento permanecem na mesma posição de guarda Véi Véi desce aqui carai esses dog são filho do capeta to vazano sério Já falei pra calar a boca seu bebum filho de uma puta nunca mais te trago pra correria Os dois bandidos que ocupavam o andar superior descem as escadas com duas sacolas cheias ao encontro do terceiro amigo que apavorado escondia-se sob o sofá antigo no centro da sala Sai daí porra puta que o pariu você tá foda hoje Véi te juro desci bala nos dog e nada Ele chorava Um dois três tapas na cara Para meu para caralho você tem mira ruim tá bêbado e tá enchendo o saco nunca mais te trago simbora daqui porra E você se ligou na função Aham peguei um monte de baguio massa Tá Os três bandidos saem pela porta Os dois cachorros viram-se apenas para observá-los     
Quando os três bandidos alcançaram o fim do jardim um deles olhou para trás com escárnio e zombou do colega Viu otário ói lá os dog de boa deitado na porta Os três viram-se para olhar os cachorros e riem todos juntos inclusive o terceiro porém sua risada era nervosa e aflita Quando viraram para escalar o muro os dois cachorros fantasmagoricamente apareceram na frente deles Com apenas uma patada o cachorro macho arrancou o coração do primeiro bandido ainda pulsante com veias descontroladas espirrando sangue em seu outro colega que também com apenas uma patada da cadela teve toda sua coluna arrancada desde o pescoço até o cóccix O terceiro bandido já galgava a metade do muro quando os dois cachorros entreolharam-se com cumplicidade tal como se decidissem com quem ficaria a prenda de carnaval Pularam os dois e agarraram-no cada um em uma perna Chegando ao chão rasgaram-no ao meio pelas pernas e arrancaram-lhe os olhos com as unhas enquanto ele ainda admiravelmente emitia seus últimos gemidos O quarto bandido que estava no carro escutou os gritos medonhos e fugiu dado o tamanho do berro do terceiro larápio enquanto era esquartejado talvez da pior maneira possível Os cachorros esperaram que o bandido agonizasse lentamente até a morte e arrastaram os três corpos até um buraco no fundo do jardim onde já se encontrava o corpo de uma mulher moça vestindo um uniforme Enterraram os quatro com rapidez e facilidade lavaram as patas e os pelos no chafariz do jardim e voltaram à frente da casa onde dormiram até a chegada da família

Quando a família atravessou o portão com o carro o pai que estava de janela aberta parou O homem saiu de dentro do carro farejou o ar e arqueou as sobrancelhas Tem sangue aqui fiquem no jardim tem algo errado O homem anda até à porta da casa põe a mão sobre o dorso do cachorro macho e pergunta ao animal Pai está tudo bem por aqui É filho a gente teve uns contratempos A cadela resmunga Filho foram uns garotos sabe ladrãozinho só mas querido olha acabei engolindo um pedacinho de um deles você tem um antiácido lá dentro estou com uma azia Querida venha cá cuidar da mamãe entrem em casa e vão dormir Vocês dois se machucaram está tudo bem Sim sim tudo tranquilo Tranquilo papai é Lua Nova o que deu em vocês Ah esses remédios pra pressão são fortes né me deixa todo embananado quando vi já tava virado lobisomem Mas cadê o Luís Henrique



Papai papai O filho menor surge correndo de quatro pelo jardim com um fêmur na boca Olha o que eu achei Tira isso da boca moleque bandido tem doença mas que merda a gente sai pra uma festinha no Curitibano e dá nisso deixa isso aí na grama e sobe lavar essa boca menino Calma filho eu e sua mãe já resolvemos tudo Ah papai sério olha quanto sangue no jardim no muro caramba o que a gente vai falar pra Donizete quando ela aparecer de manhã pra limpar a casa É na verdade filho acho que a gente vai ter que contratar outra empregada Ah não acredito mas não é possível não dá pra confiar em mais ninguém

O avô e o pai permanecem silenciosos observando o jardim e os vestígios do recente e insuspeitável crime Papai será que os vizinhos ouviram alguma coisa Filho a gente está no Jardim Los Angeles aqui ninguém tá interessado a não ser no próprio umbigo É tem razão Filho deixa eu te falar O que pai Você acredita que um deles teve a audácia de me encher de bala no peito sem eu ter feito nada Sério papai Pois é pra você ver  Sabe pai...odeio gente que maltrata animal.

Agradecimentos: para Daniel Sérgio e Elis Buquera pela pesquisa e ideias mirabolantes respectivamente.  


Paco Steinberg 
Nasceu em 1979. Bacharel em Letras pela UFPR, tradutora, crítica de arte, bicho urbano. Gosta de fumaça, solidão, polêmica, observar humanos e piadas infames. Sua cor preferida é o sangue. Tem medo de aranha, de escuro e de gente muito feliz. Autora dos livros Persona (2003), Vem Cá que Eu te Conto (2009) e Jack & Bob (2010). Inspiração: rodas de conversa no café com muitas risadas e sustos. Método de escrita: atrás da porta.
Seu quarto: omundopolemicodapaco.blogspot.com
Seu escritório pulp dump anticult: estacaoliteratura.blogspot.com
Troca figurinhas com escritores tupis todo dia 19 em: www.manufatura.blogspot.com


21 de fev. de 2012

Rádio relógio

Texto: Mel Ferreira
Foto e Pós: Eli Firmeza
Estrelando: MAÍRA LOUR
Maquiagem: Ana Bellenzier e Fabrício
Figurino: Dayane Bernardini


Mesmo que você estivesse livre de todos os pesadelos
Se teus olhos fechados, abrissem a alma para um sonho
Ainda que você fosse calmo, e não sofresse, cardíaco, de um suspense tão grave, a ponto de seus pés se atirarem, automáticos, em peito alheio
Ainda que você nomeasse todas as coisas. E as fizesse existir para o dicionário – embora não para os homens
Se você fosse Zeus e tua voz ecoasse no vento, até ensurdecer os ouvidos menos e mais atentos
Ou se você cantasse com asma uma música de agonia quase insuportável
Ainda que você morresse e depois disso descobrisse o segredo mais íntimo das tuas calças, ou encontrasse aquela moeda da sorte que você perdeu aos 8 anos
Ainda que você soprasse nos ouvidos da pessoa amada, música hipnótica, e a encontrasse nos braços afoitos e aflitos e arrepiados que você carrega todos os dias
Ainda que você estivesse vivo
Mesmo que no meio da rotina cansada e do corpo suado, e do carro estragado e das prestações a pagar
Até, se você não estivesse tão solitário
Ainda assim, você não saberia o que é subir em uma laje e ser atacado por um zumbi (por exemplo)
Ainda assim, nada seria tão terrível quanto acordar todos os dias.  

Mel Ferreira
Publica outros contos e narrativas em seu blog: http://eternoseefemeros.wordpress.com 

Eli Firmeza
Filmes e trabalhos de direção e fotografia em: http://vimeo.com/elifirmeza 

20 de fev. de 2012

19 de fev. de 2012

Ó, quanta alegria...

Ilustração: Haydee Uekubo
Texto: Diego Fortes























-  Que coisa ridícula! Carnaval não me vai muito bem. É sempre assim. Essa alegria toda me põe no meu humor mais suicida, mas enfim... Lá estava eu no meio daquele salão de um importante e prestigiado clube social da cidade. A pegada desses bailes de carnaval de clubes é você permanecer o maior tempo possível na festa. Começo de festa é sempre bonitinho: as pessoas com o banho recém-tomado, cheirosas, alegres, a roupa impecável e sóbrias, principalmente. Lá pelas tantas, os sócios mais velhos - saudosos de seus antigos bailes em clubes - não resistem ao sono e se retiram. Aí, é que a coisa fica interessante. A “ala jovem” dos associados, já órfãos e com acesso à bebida, à música e a uns aos outros, fazem o inferno.

-  Aceita? Passou um garçom com uma bandeja de Black Label. Ah, vamos começar a noite, não é? - bobocamente disse a ele enquanto o gelo caía no copo. Fiquei com aquela risadinha boba na cara enquanto ele se afastava de mim, certamente, me desprezando. O que que eu estava fazendo? Já estava tentando me por num humor mais alegrinho só porque estava num baile de carnaval... Eu mesmo me desprezei naquele instante. Larga de ser bobo, Strike! Sempre penso nos garçons quando eu bebo. Deve ser duro não poder beber no trabalho. No meu ramo de atuação, beber faz parte do trabalho. Olhei para o bar (open bar!) e vi o que me aguardava aquela noite: as garrafas de uísque enfileiradas na prateleira atrás do bartender eram como lingotes de ouro em exposição para colonizadores lusitanos. Ouro e índias... Ê, carnaval! Que fossa...

-  Adeus! - ela me disse. Como adeus? Onde é que você está indo? E quem é que fala ‘adeus’? - eu disse. Tá vendo? É isso o que eu não aguento mais! Você me retrucando, me corrigindo, me censurando! - ela disse. É que ‘adeus’... Eu achei engraçado... quer dizer, engraçado não é a palavra ideal... - eu disse. Foda-se a palavra ideal, seu cretino! Eu tô indo embora e você acha engraçado eu dizer ‘adeus’? - ela disse. É que não foi a palavr... - eu tentei dizer, mas ela não deixou. - Não fala que não era a palavra ideal! E se não for a palavra ideal? E se eu quiser trocar todas as palavras? Hein? E se eu fizer minhas malas, te olhar na cara chorando como eu estou agora e te disser: “Cachimbo, Lucky!”, será que você não vai entender o que está se passando?!? - ela esbravejou. Houve um momento de grande vacilo antes de eu dizer alguma coisa, justo naquele momento crítico em que as palavras se amotinaram e estavam mordendo a minha bunda. As frases passavam na minha mente quase como numa prova de múltipla escolha e todas elas pareciam insuficientes ou equivocadas. Não sei se foi por falta ou excesso de palavras que eu perdi Melinda. A chave caiu da fechadura quando ela bateu a porta ao sair. Fui juntá-la do chão e já fiquei ali pelo chão mesmo.

-  Strike falando! - tão logo saía do hotel de Analu, liguei para meu cliente. Como a situação de detetives particulares não está das melhores, quando ligo para alguém, uso a estratégia do ‘toquezinho’: você liga, espera chamar uma ou duas vezes e fica esperando a pessoa retornar. Não é das coisas que eu mais orgulho em fazer, mas pelo menos não é tão deselegante quanto ligar a cobrar. Você me ligou... - ele disse, num  misto de pergunta e constatação. Sim, claro. Precisamos nos encontrar, tenho informações sobre as pessoas que estão lhe chantageando - adiantei. Hoje eu não posso, rapaz. Tenho um baile do clube pra ir - me disse com certa preguiça na voz. Não faz mal, eu posso lhe encontrar lá mesmo. Deixe um convite no meu nome na portaria e eu prometo ser bem discreto. - disse eu aparentando urgência, quando, na verdade, me interessava o baile. Não gosto de carnaval, mas open bar é open bar!

-  “Alalaôôô...” Mas que calor do caralho! São tempos difíceis esses de verão. Há que se ser muito criativo para se manter elegante nesses dias abafados. Não abro mão do terno nem da gravata. A solução está na escolha de cores mais claras - o que nem sempre combina com a minha constituição pálida, mas fazer o quê? As senhoras e os senhores da sociedade curitibana estavam muito elegantes em suas roupas sociais e vestindo máscaras que combinavam com a cor da camisa dos homens ou dos vestidos das mulheres. A “ala jovem” estava como o diabo gosta. Não havia uma só garota sem o umbigo de fora - não que eu estivesse reclamando, obviamente. O uísque estava me esquentando ainda mais. Pequenas gotinhas de transpiração se acumulavam na borda de cima da minha máscara de pierrô tristonho e desciam pela falsa lágrima desenhada.

-  A pipa do vovô não sobe mais...” Uma atrás da outra, as marchinhas desfilavam pelo baile. As pessoas adoram ouvir as mesmas músicas, não é mesmo? Já no terceiro uísque, avistei meu cliente ao longe. Estava usando um chapéu-panamá como se isso fosse algum tipo de fantasia. Trazia a esposa que não poderia saber dos meus serviços para o marido dela, que estava sendo chantageado por uma gangue de lixeiros para não revelarem que ele havia contratado uma prostituta há algumas semanas. Fiz apenas um sinal indicando o bar.

-  Se você fosse sincera...” Seguinte: estamos lidando com algo um pouquinho maior do que imaginávamos. - alertei eu. O quê?!? - berrou ele. O barulho de marchinhas e pessoas falando era ensurdecedor. É uma gangue! - gritei eu. Uma gangue? - perguntou ele. É! Eles coletam provas contra as pessoas nos sacos de lixo! - expliquei eu. Lixo?!? - estarreceu ele. É! Lixo! Ainda não sei se a Naomi Sueli trabalha com eles ou não. - disse eu. Quem? - confundiu-se ele. A Naomi Sueli - repeti. Quem? - ele, ainda sem entender. A puta!!! - esclareci eu, no exato momento que a banda parou. O meu ‘puta’ gritado chamou a atenção de todos que estavam por perto.

-  O teu cabelo não nega, mulata...” Entre todos os olhos virados para nós naquele momento, identifiquei um par que me parecia familiar. Seria ela? Não consigo ver. Saiam da frente! Ela se afasta transtornada, mas é ela. É Naomi Sueli! A própria! Vestida de Chapeuzinho Vermelho. Meu cliente, entre confuso e assustado, sai de perto de mim e procura sua esposa na multidão. Eu vou atrás da puta. Muitas pessoas me acotovelando, alguns dos adolescente já dando os primeiros sinais de embriaguez, braços molhados manchavam meu paletó creme, confete e serpentina para todo lado. Era ela. Cadê? Dá pra dar uma licencinha? Vejo ela passando do outro do salão, não acredito que eu vou ter que passar por esse povo todo de novo... Com licença, com licença. Piso no pé de alguém. Desculpa. Tá meio apertadinho aqui, né? (eu de novo com o sorriso boboca, que merda) Cadê essa porra dessa puta?

-  Chiquita bacana lá da Martinica...” O que ela estaria fazendo aqui no clube? Será que ela está fugindo de mim? Como ela sabe como eu me pareço? Será que como a Analu, ela veio para me eliminar? Em meio às dúvidas, pisões e confete na boca, para, exatamente na minha frente, ela. Fica parada me olhando como um dia eu fiquei parado olhando para ela. Melinda. Pronunciei seu nome quase sem emitir som. Olá, Lucky. Tá tudo bem? - me sorriu. Muitas frases se enfileirando para serem escolhidas: “Tá tudo bem? Que pergunta é essa? Sabia que eu durmo mal até hoje com saudades suas!” ou “Vá se fuder, sua cadela! Me abandona daquele jeito e agora vem com sorrisinho? Suma da minha frente!” ou “Agora sim! Agora tá tudo bem porque você tá na minha frente e eu posso te abraçar. Eu te amo, Melinda! Me agarre e não me solte nunca mais!”, mas o que saiu mesmo foi: “Oi. Tudo bem? E você? Que surpresa!” Pois é, surpresa mesmo - disse ela. Você está aqui com alguém? - deixei escapar. Sim. Vim com umas amigas, nós combinamos de vir todas como personagens do Harry Potter - disse ela vestida de colegial com um cachecol colorido enrolado no pescoço, nada que atrapalhasse a vista do decote, é claro.

-  Nosso amor passou, eu sei. No princípio eu não quis acreditar. Chorei...” Lembro-me muito bem daquele decote. Aqueles seios generosos dos quais já fui devoto. Tava pensando em você esses tempos... - reticenciou Melinda. Ah, é? “Não tem um dia que passe que eu não penso em você!” - contive eu que só disse o ‘ah, é?’ mesmo. Você não quer sentar? A gente toma alguma coisa - convidou ela. Pode ser. Eu só preciso de um minuto, tudo bem? Tudo - sorriu como só ela sorri. Me desconcentrei completamente com Melinda e seu saudoso decote. Saí do salão em busca da Chapeuzinho e não encontrei mais nada. Se ela estava fugindo de mim, já deveria estar longe. Tanto melhor que eu voltasse para o salão, para Melinda e quem sabe para o decote. A “ala jovem” já começava a ousar desvairadamente em saídas fortuitas pelos jardins próximos ao grande salão de festas. Ao voltar, não encontrei Melinda. Pensei que talvez pudesse ter ido ao banheiro e esperei junto ao bar tomando outro uísque. Esperei... esperei... e nada... Estranho... Toca o telefone. É o cliente. Diz que eu tenho que ir até sua casa urgentemente.

-  Ei, você aí, me dá um dinheiro aí...” Chego na frente do prédio do cliente e dou um “toquezinho” no seu celular. Ele abre o portão da garagem e eu subo pela escada de emergência. O cliente abre a porta mais branco do que um fantasma. Ouço a voz da sua esposa. Sua esposa está aí? Está - diz ele. E o que eu digo se ela perguntar quem eu sou? A verdade. É um pouco tarde para eu manter a mentira - ele escancara a porta e aponta para o corpo nu de Naomi Sueli estirado no meio da sua sala-de-estar. Junto ao corpo, um bilhete de letrinhas recortadas de autoria da G.L.A.C. (Gangue dos Lixeiros Anônimos de Curitiba) dizendo que não estão de brincadeira e pedindo ainda mais dinheiro. Eu estou arruinado! Pra pagar o que eles querem, eu vou ter que vender tudo o que eu tenho, eu vou perder minha empresa, eu vou ter que fazer um empréstimo, minha reputação irá para o lixo, eu... Fui virando as costas e o deixei falando sozinho. Precisava me concentrar agora.

-  Chegou a turma do funil, todo mundo bebe, mas ninguém dorme no ponto...” Volto ainda para o clube. Volto e vejo os casais já se acabando nos jardins. Volto na esperança vazia de reencontrar Melinda e pela necessidade de tomar mais um drinque - vamos para aquele open bar! E agora, cavalheiro? Uísque escocês? Uísque americano? Vodka russa? - ofereceu o bartender. Me veja aí uma lapada, irmão! Que hoje eu quero ver se eu me esqueço!

Diego Fortes
É ator, escritor, tradutor e diretor. Nasceu em 1982. Bacharel em Comunicação Social, tem passagens pela Escola Técnica de Formação de Atores da Universidade Federal do Paraná, pelo Ateliê de Criação Teatral e entre diversos outros. Fundou A Armadilha - cia. de teatro em 2001, companhia pela qual montou os espetáculos Marias (2004), Café Andaluz (2005), Os Leões (2006), Bolacha Maria - um punhado de neve que restou da tempestade (2008) e Jornal da Guerra Contra os Taedos (2009). Em 2010, escreveu e dirigiu - com a colaboração da artista mineira Grace Passô - a peça Os Invisíveis, pela qual recebeu a segunda indicação à Melhor Direção do Troféu Gralha Azul. Mantém contato colaborativo com autores de outros países latinos.

Haydee Uekubo 
Outros trabalhos de ilustração e design: cargocollective.com/haydeeuekubo