Ilustração: André Ducci
- Vão se fuder! “Olha aí, freguesia, é o carro do sonho que está passando...”. Minha
cabeça latejava. Exagerei na última noite. “É o sonho bem fresquinho...” Parece
que meu coração resolveu mudar de lugar e agora está pulsando na minha testa.
“Sonhos de nata, creme, doce de leite, chocolate, goiaba, é o sonho,
freguesia!” Cambada de filho da puta esses caras do carro do sonho! Que direito
eles têm de me acordar desse jeito? Cheguei até a sonhar com essa repetição na
minha cuca. Sonhos dentro de um sonho. Putz, essa piada foi péssima! Eu devo
estar muito mal mesmo...
- Atende aí, caralho! Estava ligando para o Fonseca, um amigo policial. Sempre que eu
precisava de informações da polícia, eu ligava para o Fonseca. Toda vez, ele
queria alguma coisa diferente em troca. O sem-vergonha se utilizava do meu bom
gosto para comprar presentes para as amantes dele. Sem-vergonha, filho duma
puta (eu tô de muito mau-humor hoje), eram sempre garotas universitárias que
dançavam à noite. Não eram exatamente prostitutas, eram apenas “modelos”. Ele
encontrava essas meninas nas boates da cidade e as impressionava dando
presentes bonitos, elegantes, de muito bom gosto. Presentes que eu comprava. Cortejava as meninas
durante um mês, comia num motel qualquer e depois sumia, partia para a próxima,
dizia que era casado... Bom, ele era casado. Desta vez, o preço pelas
informações não era um relógio, uma bolsa, um perfume, uma calcinha ou uma jóia
(até jóia eu já tive que comprar!). Desta vez, ele queria gravatas para ele.
- Não se levante!, disse eu para o Fonseca. Eu não ia..., disse o Fonseca para mim. Nos
encontramos sempre no Sal Grosso, um bar no Largo da Ordem. A mesa azeitada do
Fonseca já indicava que ele havia bebido duas cervejas e comido uma porção de
batatas bem fritas. Me inspecionando por cima dos seus óculos escuros
(cafonas), continuou: “Tá elegante, hein, sujeito? Fora essa cara de ressaca, o
amigo está muito bem vestido. Trouxe as gravatas?” “Trouxe, vamos direto ao
assunto e eu não sou seu amigo.” “Nossa, mas o cara dormiu com a bunda
descoberta hoje!” “Desculpa, eu ando bebendo muito desde o carnaval... Não é
com você. Pra quê você quer essas gravatas afinal de contas? Resolveu mudar de
time?” “Que é isso, rapaz? Essa gravatas são para mim mesmo. A Salete, minha
companheira (Argh! eu odeio quando alguém chama a mulher de companheira!) está
meio contrariada comigo. Ela não diz nada, mas eu senti que a chama da paixão
está esfriando. (Argh, chama da paixão, não...) Então, resolvi dar uma
incrementada no “visu” (“Visu”?!? Esse cara tá de brincadeira comigo...)
“Sei...”, eu disse, “e o que você tem para me dizer sobre a Naomi Sueli?”
“Porra, gostosa, hein, rapaz? Judiação um rabo daquele gelado em cima duma mesa
de autópsia... Mas é isso aí, aquele necrotério sempre tem uma boazuda lá. É
impressionante como os caras ficam selvagens por causa de uma mulher bonita.”
- “Foco, Fonseca!” “Tá certo. Olha, foi estrangulamento mesmo. Tomou-lhe um soco na fuça
e depois o cara estrangulou ela.” “Alguma digital no apartamento do meu
cliente?” “Não, só dele e da mulher. Mas eles não estavam em casa, o vídeo da
segurança interna do edifício mostra os dois chegando um pouco depois do
assassino ir embora.” “Ele aparece no vídeo?” “Aparece de capuz. Entrou no
prédio com uma cópia das chaves, passou reto pelo porteiro e foi embora uns dez
minutos depois de chegar.” “Vocês já têm algum suspeito?” “Porra, mas eu tenho
que fazer o serviço inteiro pra você, cara?” “Tem ou não tem?”
- Tem um trocado aí, tio? Ai, Largo da Ordem... nossa
conversa é constantemente interrompida por pessoas pedindo dinheiro ou vendendo
pulseiras ou, pior, perguntando se você gosta de poesia! Poesia...
francamente... Hippies, góticos, bêbados e estudantes do ensino médio transitam
por este zoológico a céu aberto - um aglomerado de botecos emoldurados por duas
igrejas - acredite se quiser!
- E aí?!? Vocês têm um suspeito?, reforcei. Fonseca fez uma pausa, sentou mais
perto de mim e disse: Deixa eu te contar uma história, Lucky. Um ano atrás,
havia ali na Cruz Machado um time de meninos que vendiam pó pro povo que parava
com o carro ali e pros clientes das putas. Era um negócio organizado! Os caras
distribuíam a droga com muita eficiência, tinham fregueses fixos, longas horas
de serviço, pagavam o da polícia direitinho e a coisa só se expandia. Os caras
da polícia que tavam recebendo deles até fizeram vista grossa quando eles
começaram a traficar crack - eles pagavam bem e nunca atrasavam, chiar pra quê?
Começaram a marcar alguns territórios do Centro com o desenho de uma caveira
rachada feito com giz. Ficaram conhecidos como Os Esmaga-Crânios. Eles
começaram a se organizar em hierarquias e abaixo do chefe geral tinha um
gerente, um braço direito do cara, um tal de Miguel Pacotinho. Pois o tal do
Pacotinho resolveu passar o chefe pra trás. De leve. Só pra ver até onde ele
podia chegar. E depois de seis meses tapeando o chefe nas contas, começou a
organizar um motim pra ele assumir a coisa toda. O dinheiro que ele desviava do
chefe, ele redistribuía por toda a galera. Uns vinte e pouco neguinhos. Um dia,
o tal do chefe fez uma festa pra essa galera. Um churrascão com cerveja e pinga
numa chácara em Piraquara. Diz que o sujeito foi embebedando todo mundo e lá
pelas duas da manhã, quando os caras se afastavam do bando pra ir mijar no
mato, ele estrangulava um por um no escuro. Estrangulava ou esmagava os crânios
dos carinhas. Levou umas duas horas pra matar um por um. Deixou o Miguel
Pacotinho pro último. Mas matou todos, rapaz! E não usou uma arma! Tudo na mão!
Fudido esse cara!
- Caralho... Ele acabou com o bando inteiro? “Acabou. Pra não sobrar ninguém dos
traíras que tavam querendo acabar com ele. Deu um puta dum exemplo. Parece que
agora só trabalha sozinho. Só com morte encomendada. O pessoal lá dos lixeiros
deve ter contratado esse cara...” Levantei de supetão, o Fonseca me segurou:
“Ô! E as minhas gravatas?” Estão aqui. Três gravatas finíssimas pra ver se
aquele caso perdido de homem conseguiria reacender a chama da paixão com a Dona
Salete. “E o nome dele?”, indaguei, já de pé. “Juraci. Juraci Esmaga-Crânio.”
“Juraci?!? Mas Juraci é nome de mulher...” “Será? Não sei, acho que serve para
os dois...”
- Pois não? - atendi o interfone. Moro num conjunto residencial na periferia. Pois
é... O interfone é meio baixo e faz um chiado, mas eu reconheci aquela voz.
“Posso entrar?” Nem respondi, apenas apertei o botão e fiquei imaginando o
porquê daquela visita e como ela me encontrou. Chegou na porta e quando eu
abri, Melinda já foi entrando. “Olá, Lucky. Então é aqui que você mora
atualmente?” “Como é que você me encontrou?” Ela não me responde, apenas começa
a passear pelo apartamentinho (o passeio é breve, o trajeto é curto) e segura
as coisas que vê numa investigação tátil. “Você era mais asseado quando morava
comigo, Lucky... Quem vê um homem tão bem vestido como você não consegue
imaginar o chiqueiro em que você vive. Que falta que eu te faço...” “Onde você
foi no baile de carnaval? Você sumiu...” “Ah, eu precisei ir embora correndo.”
Melinda fica olhando para o relógio com certa frequência. Você está atrasada
para alguma coisa?, eu perguntei. “Não... Mania... Você não vai me oferecer
nada pra beber?” “Eu tenho uísque, vodka, vinho do porto e suco de maçã.” “Suco
de maçã?” “Eu procuro me manter saudável...” “Vinho do porto, por que não?”
- Opa!
- quando volto da cozinha com dois copos americanos com um dedo de vinho do
porto em cada um, encontro Melinda só de calcinha sentada no sofá da minha
sala. “Oi”, ela me diz. “Oi”, digo eu. “Será que você não quer se sentar aqui do meu
ladinho?” Tenho que tirar alguns livros empilhados do sofá. Tento, mas logo que
me aproximo, ela me puxa pela nuca e me deixa ajoelhado na frente dela. Um
devoto com o rosto na altura dos seus seios. Ah, que saudade daqueles polpudos
seios! Sigo as regras de etiqueta e beijo primeiro sua boca, os seios teriam
que esperar. Nos beijamos com força, com desespero, como se tivéssemos
sobrevivido a um desastre nuclear. No meio da saliva e pele quente, sinto uma
lágrima tocar minha boca. Melinda chora. “O que foi?”, pergunto eu com uma
candura contrastante ao meu ímpeto anterior. “Desculpa”, ela diz... “Desculpa?”
- Ugh!
- não consigo... respirar... Sinto mãos enormes como dois cachos de banana se
fechando contra o meu pescoço. Meu agressor era, sem dúvida nenhuma, o Juraci
Esmaga-Crânio. Melinda se levanta calmamente cobrindo os seios com a roupa
amassada. Juraci me espreme a goela e eu não consigo reagir porque ele está
atrás de mim. Tudo começa a ficar meio branco. Melinda deixa o apartamento
correndo descalça. Juraci não faz um
ruído - está me assassinando de forma muito profissional. Muita... tontura...
tento... levantar... (Uma pequena interrupção: sabe uma coisa que nem sempre os
estilistas escrevem nas revistas especializadas? Eu vou dizer: antes de comprar
um paletó, certifique-se que ele tem um bolso interno. Acreditem, é muito mais
útil do que vocês imaginam.) Levanto... paro de lutar com as mãos gigantes
desse brutamontes e alcanço uma navalha de dentro do bolso interno do paletó.
- Aaaaahhhh!!! Resolveu fazer barulho agora, filho da puta? A lâmina entra no olho
direito do Juraci como se eu cortasse gelatina. Não sei como eu tive tempo de
pensar nisso, mas me veio à cabeça “Um Cão Andaluz” do Buñuel e do Dalí... A
falta de oxigênio me pôs meio surrealista. Ele me larga. Caio no chão feito um
cadáver e só consigo ver ele saindo correndo do apartamento com a cara toda
ensanguentada. Deve ter achado que eu morri porque assim que eu caí no chão, eu
bati a cabeça e apaguei. Tum!
Diego Fortes
É ator, escritor, tradutor e diretor. Nasceu em 1982. Bacharel em Comunicação Social, tem passagens pela Escola Técnica de Formação de Atores da Universidade Federal do Paraná, pelo Ateliê de Criação Teatral e entre diversos outros. Fundou A Armadilha - cia. de teatro em 2001, companhia pela qual montou os espetáculos Marias (2004), Café Andaluz (2005), Os Leões (2006), Bolacha Maria - um punhado de neve que restou da tempestade (2008) e Jornal da Guerra Contra os Taedos (2009). Em 2010, escreveu e dirigiu - com a colaboração da artista mineira Grace Passô - a peça Os Invisíveis, pela qual recebeu a segunda indicação à Melhor Direção do Troféu Gralha Azul. Mantém contato colaborativo com autores de outros países latinos.
Muito bom, Di. Cada dia melhor! Beijo
ResponderExcluirAdoro seus textos, e a ilustra do Ducci tá mto boa tb...
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