Ilustração: Francisco Gusso
Tudo o que você precisa é de uma
arma e de uma garota
“E então, qual de nós é
mais bonita?”.
E olham-se, as três.
Como se para mim fosse fácil assumir minha predileção por ela. É mais que
polidez. Tem certos momentos na vida de um homem, bem, tem certos momentos que
não é possível escolher entre Anna e Brigitte. Entre Brigitte e Jeannie. Entre
a monogamia ou a liberdade. Entre o amor e.
O cinema.
Café. Paris. Noite. Eu
de frente para Anna e Jeannie. Não apareço. O plano é simples, sem movimento.
Pires sujos de café sobre a mesa. Cinzas de cigarro. Anna com cabelo preso no
alto da cabeça, linda sob a luz amarela. Vestia azul? Verde? Nunca a ouvi
gargalhar. Xícaras, copos de água, papéis anotados. Anna.
Café. Paris. Mesma
noite. Jeannie vira-se para chamar a garçonete. Aquela nuca, o cabelo curto. Vestida
à la marinière, as omoplatas. Nunca
desejei tanto um par de ossos.
A porta do café se
abre. Todos voltam-se à Brigitte, linda, casaco de pele marrom, batendo a neve
do cabelo, louro, até os ombros. Entrega o casaco ao garçom. Olha para nossa
mesa, acena.
Senta-se. Eu, de frente
agora para as três mulheres mais importantes da minha vida.
“De que falavam,
meninos? Por favor, um café puro, querida.”
“Falávamos da beleza!”
“Ora, se por acaso é um
homem de falar de belezas...”
“Perguntávamos pra Jean-Luc
qual de nós é a mais bonita.”
“Jeannie, você sempre
provocando...”
“Não é mesmo, Anna, a
gente perguntou pra ele, mas não soube responder.”
“Sim. Mas já me cansei
dessa brincadeira.”
“Anna, mon amour, é só um jogo, sabe que sou só
teu.”
“A monogamia é coisa de
americanos!”
“Ah, Brigitte, Brigitte,
desde que leu Sartre passou a ter ideias deliciosas.”
“E então, querido
diretor, quem de nós é a mais bonita?”
“Já disse que cansei
disso. Não seja chata, Jeannie.”
O clima pesa. Anna me
olha fixamente. Sim, vamos embora querida, mas deixa eu terminar meu drink, meu
cigarro, é Paris e a noite... Mas não digo nada. Brigitte e Jeannie rindo
escondidas, sorriam molecas para os cavalheiros da mesa do lado. Cavalheiros, a
quem engano. Dois ou três senhores casados que sonharão com minhas garotas
durante o banho, sem qualquer elegância. O gordo da esquerda derruba molho na
camisa, que patético. Sim, querida, nós já vamos.
“Não sei porque está
aborrecida, chérie. Jean-Luc escolheu
você, é com você que dorme todas as noites, não achei que ficaria tão
ofendida.”
“Não insista, Brigitte,
Anna não está satisfeita em lustrar os sapatos do Godard!”
“O que disse? Repete,
sua putaine.”
Anna se joga sobre Jeannie. Ah, as mulheres.
Brigitte afasta-se da confusão, mas tropeça nas garotas e entra na briga
também. Ninguém reage à luta? Estaria delirando? Não, o garçom se desvia e olha
para o chão, evita o empecilho e sem derrubar sequer uma gota de café entrega o
pedido à mesa 22. Eu não reajo. Penso nos rótulos das garrafas de conhaque, na
neve lá de fora, o natal. Acendo outro cigarro. O lustre desse café sempre foi
este? Que horas são? Nove horas? Meia-noite? Por mim passam três garotas de
minissaia. Sou um canalha, devem ter 14 anos. Pedem milk-shakes, clichês. O
gordo da mesa da direita pede outro prato. Vulgar. Os rótulos das garrafas. O
espelho nas prateleiras. Mais um cigarro.
E as garotas? Ainda
brigam? Brigitte está ferida. Escorre um filete vermelho no canto da boca.
Chegam mais dois casais. Passam sobre Brigitte mas não reagem.
Encosto no balcão e
peço um conhaque. Jeannie agoniza, ao que parece. Pelo menos não gritam mais.
As garotas de minissaia acenam. Pedem cigarros.
Vou em direção a mesa
das garotas. Passo pela Jeannie, está mesmo bastante ferida. Parece grave.
E Anna, onde estará?
Acendo os cigarros para
as garotas. Uma. Duas.
“Anna, querida, onde
estava?”
Anna está com o vestido
manchado. Vinho e sangue, acho.
Três cigarros acesos.
Acendo o meu.
Anna me esfaqueia no
pescoço. O sangue jorra forte na mesa das garotas. Elas não percebem e acenam.
O filme de fato passa,
mas não há tempo de anotar. Teria sido uma boa vida. Acho.
Vanessa Rodrigues
O blog dela é o vanrodrigues.wordpress.com
Francisco Gusso
Seus trabalhos podem ser visualizados no site http://franciscogussoarts.blogspot.com
Como um vaudeville...ou uma farsa burlesca...o quadro está aí. Manchado de sangue, rs. Bjo, Vane.
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