Ilustração: Hafaell Pereira
A primeira vítima chamava-se Teresa. Seis meses depois foi
encontrado o corpo da segunda vítima: Amanda. O terceiro homicídio aconteceu
três meses depois. Dessa vez a vítima era um homem: Leonardo. Todos os três
foram mortos da mesma maneira: asfixiados, a cabeça dentro de um saco plástico,
a boca costurada com linha de náilon, o corpo nu inteiro riscado de estilete.
Apesar disso, observando retrospectivamente, só há pouco tempo ficou evidente
que Teresa, Amanda e Leonardo foram vítima do mesmo assassino. Do mesmo
sociopata selvagem maníaco demoníaco filho da puta que asfixiou os outros.
A lei viaja de carroça, o crime viaja de avião. Dezenas de
corpos continuam sendo encontrados em variado estado de putrefação. No começo
os corpos eram encontrados na mesma cidade, agora estão aparecendo em cidades
diferentes. Demorou muito para o sistema cruzar todos os dados. Também demorou
muito pra que os homicídios fossem atribuídos à mesma pessoa. Levou mais tempo
ainda pra que o departamento de criminalística determinasse a data exata de
cada morte.
Fiz várias cópias da lista com o nome das vítimas
confirmadas do nosso serial killer: todas asfixiadas, a cabeça dentro de um
saco plástico, a boca costurada com linha de náilon, o corpo nu inteiro riscado
de estilete. São centenas de nomes organizados em ordem cronológica. Passo
horas anotando todo tipo de detalhe ao lado de cada nome. Procuro um padrão.
Que característica comum ligaria essas pessoas? Verifico a data de nascimento,
a etnia, a orientação sexual, a religião, o grau de escolaridade, o perfil
político. Nada coincide, nada desenha uma constelação reconhecível. Tento o
signo do zodíaco, a cor dos olhos, o tipo sangüíneo, o peso, a altura, os
hábitos domésticos. Nada. São pessoas muito diferentes, com características
muito diferentes.
Paro de anotar bobagens ao lado de cada nome e fico
brincando com a caneta. Só de bobeira, quase cochilando. Inicio uma linha
vermelha ao lado da inicial do primeiro nome — T — e vou descendo. Paro na
oitava inicial — U —, passo por baixo dela e começo a subir. Fecho o contorno.
Levo um choque. Seguro firme a lista e leio o começo da mensagem.
Os primeiros nomes da lista são Teresa, Amanda, Leonardo,
Vicente, Eduardo, Zulmira, Estevão, Ulisses, Tânia, Antônia, Marcos, Beatriz,
Edgar, Mônica, Jair, Abelardo, Estela, Susana, Telma, Edna, Joana, Adão,
Madalena, Odete, Rosana, Tales e Olga. Eu acrescento uma vírgula e um ponto, e
a mensagem formada pelas iniciais agora é bastante clara: “Talvez eu também já
esteja morto, não sei.” Chamo os outros agentes e juntos trabalhamos na lista
toda. Pouco depois, separando a inicial das setecentos e setenta e três vítimas
e reunindo todas numa folha à parte, temos um longo desabafo:
Talvez eu também já esteja morto, não sei. Vejo vozes,
escuto cores, sinto o cheiro do pensamento das pessoas. Não gosto de conversar,
sou surdo-mudo pra tagarelice. Não bebo, não fumo. Não faço sexo. Gosto apenas
de andar na praia. Ou no parque. Ou na avenida. Mas não gosto do cheiro do pensamento
das pessoas. O oceano não pensa, a floresta não pensa. Apenas vivem a vida. As
pessoas pensam demais e o cheiro é insuportável. Pensam demais e os pensamentos
fazem a maior bagunça. Tudo fora do lugar. As pessoas só param de pensar quando
morrem. Gosto dos mortos. Não tagarelam, não dão conselhos. Não pensam. Não
fazem bagunça, tudo fica onde está, tudo no devido lugar. O mortos apenas vivem
a vida. Não gostam de conversar, a pessoa morre e fica surda-muda pra
tagarelice. Não bebe, não fuma. Não faz sexo. Seus pensamentos não me incomodam
na praia ou no parque ou na avenida. Porque não há pensamentos. Os mortos são
meus melhores amigos. Talvez eu também já esteja morto, não sei.
Enquanto isso, novos cadáveres continuam aparecendo nos
lugares mais remotos. Homens e mulheres. Jovens e velhos. Ricos e pobres. Novas
vítimas, novas iniciais. Ninguém no departamento costuma ir à igreja. Para o
inferno a religião. Mas agora todos nós estamos rezando, orando muito, em
silêncio, pra que o assassino não esteja escrevendo, sei lá, um romance de mil
páginas.
Luiz Bras
Nasceu em 1968, em Cobra Norato, MS. Sempre morou no terceiro planeta do sistema solar. É de leão e, no horóscopo chinês, cavalo. Na infância ouvia vozes misteriosas que lhe contavam histórias secretas. Adora filmes de animação, histórias em quadrinhos e gatos. Acredita em telepatia e universos paralelos.
Já publicou diversos livros, entre eles a coletânea de contos Paraíso líquido, a coletânea de crônicas Muitas peles, os romances juvenis Sonho, sombras e super-heróis e Babel Hotel e, em parceria com Tereza Yamashita, os infantis A menina vermelha, A última guerra e Dias incríveis.
Mantém uma página mensal no jornal Rascunho, de Curitiba, intitulada Ruído Branco. Também mantém o blogue Cobra Norato: luizbras.wordpress.com
Já publicou diversos livros, entre eles a coletânea de contos Paraíso líquido, a coletânea de crônicas Muitas peles, os romances juvenis Sonho, sombras e super-heróis e Babel Hotel e, em parceria com Tereza Yamashita, os infantis A menina vermelha, A última guerra e Dias incríveis.
Mantém uma página mensal no jornal Rascunho, de Curitiba, intitulada Ruído Branco. Também mantém o blogue Cobra Norato: luizbras.wordpress.com
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