10 de abr. de 2012

Caixas

Texto: Thiago Tizzot
Ilustração: Dea Lellis




O chinelo arrastava no concreto e fazia um barulho familiar. Olhou para seus pés e viu o tecido, veludinho com listras verdes sobre um fundo bege. Lembrou-se do roupão, de mesmo tecido que ganhara de sua falecida esposa. Usou durante anos aquele roupão e o chinelo, depois que Efigênia se foi, um dia decidiu que faria o jantar sozinho, seria sua independência. Montou o pão, queijo e presunto, passou manteiga na frigideira e até hoje não sabe como o braço do roupão entrou em chamas. Agora sempre come lanches congelados. O chinelo persiste, arrastando no concreto da escada que leva a garagem.
Abriu a porta, pilhas de caixas de papelão, era difícil caminhar por entre elas. Sorriu diante da idéia de que aqueles quadrados de papelão embolorado e mal cheirosos, guardavam suas memórias, seus anseios, seu sofrimento. Ali estava o resultado de uma vida inteira de escrita. Garranchos que ele desferia contra as folhas desde a sua infância. Lentamente foi retirando as caixas, seus guardados como gostava de dizer, e colocando fora do caminho. Procurava por um texto específico, veio durante a sua insônia. Uma estorieta que escrevera há muito, recordava quase por completo, mas o final lhe escapou. Mais de semana que tentava lembrar, mas hoje tinha sido derrotado e decidira descer e enfrentar a tarefa. Estava a meio caminho, calhara de o dito manuscrito estar no fundo, longe da entrada. Encontrou uma caixa abarrotada de livros, Dickens, Flaubert, Cervantes, todos estragados. Devorados por traças. Guardou os tomos devorados com delicadeza. Anotou no pequeno bloco que sempre levava no bolso para comprar algum veneno para resolver esta situação.
Avistou a caixa, não tinha nada escrito, nenhuma marca, era igual a todas as outras. Mas ele tinha certeza que o texto estava no seu interior. O cheiro de bolor agredia seu nariz e era até difícil respirar. Os braços já estavam cansados e sentia os pés suados dentro do chinelo. Sentou para retomar o fôlego. Sentiu a unha cumprida sobre a pele peluda enquanto coçava a barriga. Reparou que muitas caixas estavam carcomidas, furadas, roídas pelas malditas traças. Praticamente vazias.
Pegou o lenço para limpar o suor da testa. De repente sentiu os chinelos vibrarem, as pilhas rangeram e por um segundo imaginou as caixas o soterrando. Morto por suas memórias, tinha um quê de poesia. Mas não escrevia poesias, os versos eram um labirinto do qual nunca encontrava a saída. O chão tremia, precisava sair dali. Era um terremoto. Quem poderia prever, um terremoto no Mercês! Tentou caminhar, mas a bagunça era enorme. Duas pilhas caíram a sua frente. Papéis roídos, esburacados e carcomidos se espalharam para todo lado
O bicho era enorme. Surgiu por trás do entulho, a cabeça era achatada e cheia de pequenas, antenas, seria isso? Moviam se como o bigode de alguém que fala demais. A boca era somente um buraco, um vazio que se contraia a todo instante. Era imensa, muito maior que ele que tinha aquele corpo que lembra um barril. A coisa atacou, pulou sobre ele e o chão tremeu. Foi arremessado para trás, caiu sobre as caixas e bateu a cabeça, perdeu os chinelos. Tentou se levantar, mas seus pés já estavam sendo sugados pela enorme traça.
Riu, um riso alto, desesperado.
- Maldita, matou Dickens, Flaubert, Cervantes. Matou a todos e agora veio me pegar – gritava freneticamente – pois que seja. Já devorou minhas memórias, que devore minha carne!
Lentamente seu corpo era engolido pela boca, aquela enorme boca, não lutava deixava que o bicho se alimentasse. Sentia que sua carne era molhada por um suco pegajoso, queimava, esfacelava-se, mas logo depois não sentia nada. Os pés, as pernas, a barriga. Tudo se desfazia no ventre do bicho que se banqueteava com seu corpo.
Anos depois, quando abriram a porta da garagem nada mais existia. Tudo que encontraram foi um par de chinelos. De veludinho com listras verdes sobre um fundo bege.

Thiago Tizzot
Autor dos livros "O Segredo da Guerra" e "A Ira dos Dragões e outros contos", pai da Lili e Basilisco.

Dea Lellis

Seus trabalhos podem ser visualizados no site: www.flickr.com/metalpreto

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