Ilustração: Zansky
Se pudéssemos falar sobre ela, colocaríamos nosso orgulho na
mesa de jantar e engoliríamos seco este sentimento, assistindo aos comerciais
de domingo, esperando o tempo passar como fazem as famílias de classe média do
meu bairro. Ela que consegue paralisar com o dedo indicador a cabeça dos homens
mais jovens, que embaça de esperança o olhar opaco dos mais velhos, agora atravessa
a rua afoita. Um cheiro amadeirado exala de sua axila. Dá para sentir daqui o
cheiro que nos atrai, que nos leva ao banheiro desesperados a prestar
homenagens. Ela caminha dançando a música de ninar mal amados. Olha para a mesa
a minha esquerda. Eles se conhecem? Um senhor de uns setenta anos. Corcunda e
claudicante. Ah, os tempos de farra na cruz machado agora uma aquarela manchada
de café. Seu bafo intoxica a jovem de vermelho, aquela pela qual engoliriamos
seco o nosso orgulho. Seu avô? Seu pai? O padrasto? Uma última aventura sexual
antes da uti, por que não? Ele me olha de fianco, e enfia a mão direita trêmula
por sob o vestido da vênus de sabor amadeirado. Olha como eu faço com esta criança, olha o que você poderia ter feito
com ela, olha como juntos formamos um quadro perfeito de ternura e desejo, um
maço de dinheiro escorre pela manga do paleto cor de cáqui. Uma prostituta,
então? Ela diz algo em seu ouvido, talvez evapore algum perfume hipotizante de
sua boca, um gás paralisante, fumaça de incenso, narcóticos debaixo da língua,
untando de delírio aquela saliva doce (pois imagino que sua saliva deva ser, no
mínimo, doce). Ela sorri; ele se encolhe. Ela olha pra mim e finge não me
reconhecer. Sua desenvoltura de atriz continua intacta. Nos conhecemos desde a
quinta série e seu cheiro não mudou um só tom. Aquele cheiro amadeirado, eu deixo você fazer aquele vai e vem lento,
lento me olhando, lento analizando o que não foi seu por tanto tempo, os uniformes escolares salpicando de azul a
minha visão nostálgica. As bundinhas desenhadas de helanca, deixando o vinco da
calcinha abrir as portas do imaginário das criaturas feitas de falta e
angústia. O sinal da escola é um som contínuo rasgando meus tímpanos moucos, elas percebem minha ereção, minha patética
ereção, e riem dos meus olhos brilhando um último desejo, carros buzinam
longe acompanhando, feito uma segunda voz, o sinal da escola. Ela joga o cabelo
pra trás, encenando um glamour calculado, uma classe de quinta categoria. Até
isto pega bem nela que se contorce como chama alta em minha mente. A menina que
se destacava nos corredores da escola pela cor morena, pela dentição perfeita,
pela simetria divina de sua face. Quanta saudade eu sentia. O velho entorna o
copo d’água. Sua. A camisa umedece aos poucos. Diz coisas em seu ouvido, uma
fábula, uma chance de mostrar algo de bom por dentro daquela carcaça enrugada.
Ela sorri ternamente. Chama o garçom e paga em dinheiro. Depois revira a bolsa,
me olha novamente agora de maneira detida, lembra
quando eu te deixava louco de tesão e de como seus testiculos doíam a medida
que seus olhos vasculhavam o meu corpo ainda adolescente? Uma pistola
brilha entre seus dedos delicados e compridos. Ela aponta para o velho. O velho
que agora já se tornara um íntimo cúmplice dos acontecimentos do juizo final.
Uma arma? Quais perigos guardam aquele corpo amadeirado? De quem afinal estamos
falando. E ele? Um cafetão, um velho cafetão, talvez. Minha vontade de conhecê-lo
tornara-se patológica. Quem provoca a ira da mulher da qual não deveríamos
falar? Ele gesticula desesperado, o que você está fazendo? Onde conseguiu esta
arma? Algumas pessoas aflitas, abandonam discretamente o café. Outras, saem
correndo, gritando as orações do final da missa. Ela sorri e cospe.
Amargamente. Eu continuo alí, na esperança de que ela retorne o seu cheiro
amadeirado em minha direção. Que ela me explique o porquê de tudo aquilo. Que
ela volte a ser o que sempre foi: a garota guardada nos finais que elaborei
para a minha existência – Eu te conheço? Por que você me olha assim? Ela agora
aponta a arma para o meu rosto. Eu me engasgo – responde! Ela encosta o cano frio
em minha testa. – Não. Não. Não. Desculpe se olhei pra você. Desculpe. Não me
mate. Não atire em mim. Ela guarda a arma na bolsa. Levanta-se e sai do local
como uma desconhecida. Alguém que se mistura na multidão, entre tantos cheiros irreconhecíveis.
Alexandre França
Nasceu em Curitiba em agosto de 1982. Escritor, diretor teatral e músico, o paranaense já gravou dois cd’s de canções próprias, A solidão não mata, dá a idéia (2006) e Música de Apartamento (2009) - este último contemplado pelo Prêmio Produção – Projeto Pixinguinha, da FUNARTE – , além de viajar o Brasil com sua música. Encenou, com a sua companhia de teatro, a Dezoito Zero Um, cinco das peças que escreveu, entre elas Mínimo Contato (2011) e Habitué (2010). No ano de 2010, ganhou o Troféu Gralha Azul na categoria revelação/direção pelo espetáculo Habitué (que foi indicado a quatro categorias, melhor texto, melhor ator, melhor atriz coadjuvante e revelação). Lançou dois livros de poemas, Mata-Borrão, Batom (2003) e De Doze em Doze Horas (2010), e possui também poemas publicados em revistas literárias, como a Oroboro e a eletrônica Máquina do Mundo. Atualmente, integra o Núcleo de Dramaturgia –SESI/ PR, sob supervisão do dramaturgo e diretor Roberto Alvim. O blog da companhia é o http://www.dezoitozeroum.blogspot.com
Zansky
Outros trabalhos: http://www.zansky.com.br
senti o cheiro amadeirado aqui...rsss.. abs!
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