Ilustração: Haydee Uekubo
Não
hoje.
Quem diria que duas palavrinhas tão
simples pudessem ter tanto significado?
Certamente, não minha vizinha. O
pássaro. O abutre. O alvo.
O que ocorre é que, praticamente
todos os dias, luto com alguns fantasmas. Os meus fantasmas.
Alguns podem chamar tais fantasmas
de consciência. Aquela vozinha solitária que fica na sua cabeça discursando
surdamente sobre o certo e o errado, o bem e o mal, blá-blá-blá.
Eu? Eu não tenho isso. Não é contra
o certo e o errado que eu luto. É só contra o certo. Com o que julgam que é
certo. Sou um defensor da democracia, por assim dizer, porque a maior parte das
pessoas acredita que o certo é não matar. Matar é pecado. É uma transgressão. É
cruel. Então, não mato.
Mas os fantasmas? Esses diabinhos
me aparecem nitidamente todos os dias, todas as noites (ah, especialmente nas
noites!) e ficam me atormentando. Sussurram incansavelmente em meus tímpanos: seja você, seja você, seja você, e eis
que eu fecho os olhos e respondo não
hoje, não hoje, não hoje.
Na boa, não tenho culpa de ser
assim. De ser quem sou. É o diabo do meu cérebro que não me permite sentir
remorso. Sou capaz de agredir qualquer pessoa, exceto uma: eu. Não consigo me
culpar. Até gostaria. Gostaria de experimentar a sensação da culpa de prejudicar
alguém. De interferir em uma vida. Mas não dá, não sou eu, para mim não é o certo.
Sou o pacato vizinho do 42-B. O bom
moço. O cordial cavalheiro que nunca se incomoda em esperar os vizinhos para
dividir o elevador comigo. Espero, sim. Abro a porta. Sorrio. Sorrio e me
pergunto quantos filhos da mãe iguais a mim existem no mundo. Cínicos.
Dissimulados. Os melhores atores do mundo jamais merecedores de um prêmio. Quanta
injustiça.
Em minha defesa (não que eu precise
me defender, já que escrevo estas linhas unicamente para os meus fantasmas e
demais pessoas que sei que não existem, e se você está lendo isso, é provável
que você não exista), nunca “prejudiquei” ninguém aqui do prédio. Não, não é
sábio levar a caça para o local que você dorme.
Mas claro, como nada é perfeito,
tem o pássaro. Minha vizinha de porta, uma velha que mora sozinha e passa a
maior parte do dia debruçada na janela deste quarto andar. Da janela do quarto,
eu a vejo. Vejo sua cara horrenda de tédio e reflito sobre o tremendo favor que
eu faria a ela se...Bom, vocês entendem.
A cara da velha é arroxeada,
esquelética, o nariz fino e pontudo, a velha me lembra um pássaro solitário
quando se debruça na janela. E se ela não está na janela, está no telefone
falando com sua voz alta e irritante. Eu escuto tudo. Escuto a televisão dela
também, em um volume ensurdecedor.
Daí os fantasmas me aparecem (é,
vocês mesmos) e me motivam a saciar minha fome, minha sede incompreensível.
Fico me revirando na cama e faço o possível para ficar preso a ela. Privo-me da
única coisa que me dá certo prazer, em prol da sociedade perfeita. Que não é
perfeita.
Sou o vizinho do 42-B, que é
querido por todos. Sou um clichê ambulante. Um predador que não pode caçar por
receio de ser preso. É, talvez eu sinta alegria com a liberdade. Que não é
liberdade. Que também não é perfeita.
Se tenho medo de fraquejar?
Adivinhem. Não seria a primeira vez, e sinceramente, acredito que vá acontecer.
Mais dia, menos dia, bato na porta da bruxa e peço uma xícara de açúcar ou qualquer
porra de desculpa cinematográfica do tipo. Quando o abutre me virar às costas,
entro no apartamento dela, tranco a porta e pronto: o jantar está servido. O
prato do dia é um pássaro entediado, com um rosto que você olha e sabe que
nunca foi bom.
Mas não hoje. Sou um bom ator. Um
grande ator. Finjo que sinto empatia e que tirar a vida de uma pessoa é
inconcebível, sobretudo a de uma pobre velhinha que mora sozinha e passa horas
e mais horas debruçada na janela, olhando para o vazio. Somente eu enxergo o
vazio que há dentro de sua alma. E como eu desejo livrar essa alma.
Mas
não hoje.
Libertar essa alma deste mundo de
hipocrisia em que vivemos. Mais, dia, menos dia, os fantasmas me arrastam até a
porta da velha, dou uma batidinha de leve, ela abre, dou meu melhor sorriso e
suplico por um pouco de açúcar. Quem negaria? Eu sou um amor!
Mas não hoje.
Nasceu em 1.982, na capital de São Paulo. Mudou com a família para Curitiba ainda na infância e começou a escrever peças de teatro em 2.004. No período de seis anos, escreveu mais de cinquenta peças teatrais que foram apresentadas por diversas companhias de teatro em vários estados. Ganhou prêmios de melhor texto conferidos pela Cena Hum (Academia de Artes Cênicas) e também pela Fundação Cultural de Curitiba.
Tem contos publicados em jornais e revistas e posta textos semanalmente em blog´s e sites, tais como tracasemcedilha.blogspot.com ; acontececuritiba.com.br.
Recentemente, ganhou o concurso literário promovido pelo evento Risadaria (1º bienal do humor realizada no país), tendo seu conto exposto no mural da Bienal de São Paulo. Está lançando seu 1° livro "Dores crônicas que nem te conto". Atualmente cursa jornalismo.
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