Ilustração: Isabele Linhares
1994
Existem, no
Condomínio Saint Pierre, diversos meninos. Púberes. A complacência e submissão
emocional/intelectual de que precisam é notória. Alguns mais velhos, mais
“experientes”, outros mais novos. Mas não faz diferença. O que conta é a
distinção entre cada um. A diferença de criação, de mentalidade, de
sensibilidade. E, principalmente, de maturidade. Mas todos ávidos.
Ali
está o garoto que perdeu o pai cedo: sua sede por uma figura heroica, de
autoridade, para que deposite suas inseguranças. Acolá este moleque que apanha
em casa do irmão mais velho, homem da casa depois da mãe viúva: ele está
babando para descobrir do homem de mais envergadura a polpa de sua vingança. O
maior deles sedutoramente desespera-se pelo reconhecimento, apenas para não
perder o respeito perante os menores. E outros, ainda, uma encenação bastante
previsível. Os corpos têm a textura macia da androginia característica da
puberdade, ao mesmo tempo que a promessa de uma virilidade contida - bundas
salientes e fortes, falos tímidos sob pentelhos ralos. Quando explode, ainda é
culpada, frágil e desorientada. A tensão entre a fragilidade e a fúria do
desejo é a Beleza.
Eles
estão aí, nesta sala miúda. Duas caixas de som estão tocando as primeiras notas
de “Time”, do Pink Floyd. Eles querem
vê-lo tocar bateria. Querem ver junto com a música. “Beleza é aquilo que
desespera”1. A reação se uma
revista pornográfica fosse jogada no meio deles seria a mesma. A possibilidade
de “venerar” algo lhes reforça a
identidade, independente do motivo. Excitam-se com a crença de que estão no
controle. Regozijam-se com mãos hábeis. Mas ainda são ingênuos. Não sabem que
mãos hábeis não sabem ser hábeis consigo. Estão aliciando uma ilusão. Sempre a
tensão. “Como pastor, apascentará o seu rebanho;
entre os seus braços recolherá os cordeirinhos e os levará no seio.”2
Foi
uma boa época a do Condomínio Saint Pierre.
2012
Um
fino feixe de luz, vindo pela curta brecha da cortina, atravessa a sala.
Ilumina os dois corpos. Ele está com os braços lânguidos, ortodoxamente ao lado
do corpo. Os ombros permanecem curvados. Boca entreaberta. Os olhos não piscam.
O garoto está à sua frente. Encarando-o, ainda com a cabeça levantada e uma
mecha de cabelo caída sobre as sobrancelhas. Eles permanecem assim por alguns
segundos.
O
menino pisca algumas vezes. Arregala bem os olhos e arruma a mecha.
-
Não está muito escuro aqui?
O
homem acompanha com o rosto o arrastar dos pequenos pés explorando o novo
ambiente. A boca ainda entreaberta.
-
Lá em casa a mãe nunca deixa nenhuma cortina fechada. Pode dar mofo.
-
É por causa do sol. – ele diz, voltando o olhar para a janela. O corpo
permanece languente, de frente para a porta.
-
Eu sei que é por causa do sol. – o garoto eleva mais ainda o queixo, contraindo
o orbicular da boca. - Apartamento que não pega sol não é bom. Tem que pegar
sol de todos os lados.
O
homem esboça um sorriso. Move o corpo, finalmente, os braços voltam a ganhar
vida e os ombros ficam eretos. Ele caminha pela sala.
-
Você parece ser um garoto bem esperto.
-
Eu sei.
O
homem gargalha. Em uma distância frágil de tempo, o garoto observa-lhe a reação,
prócero tenso, mas logo sorri também. Seus olhos voltam-se para as mãos do
homem.
-
Por que suas mãos são assim?
Ao
toque, o homem tem um pequeno ataque de languidez, logo recuperado. Afasta-se.
Vira-se de costas para o garoto e recomeça a andar pela sala, em torno do sofá,
até a janela e de volta para o centro do recinto.
-
Você sabia, garoto, que o nome deste edifício que não pega sol direito é
Tijucas?
O
garoto faz um bico e gira a cabeça molemente, de um lado a outro. A mecha de
cabelo volta a cair sobre a testa.
-
O Tijucas foi construído sobre um pântano...um pântano assombrado. – O homem
curva-se e suas mãos abrem-se, como garras. Os olhos estão abertos no limite
muscular permitido. – Este prédio, garoto, é cheio de fantasmas. Fantasmas das
pessoas que morreram no pântano.
O
garoto infla as bochechas e olha para a fresta de luz vinda através da cortina.
O homem posiciona-se à sua frente, interrompendo o fluxo de claridade. Sua
fisionomia assume uma careta de escárnio, um meio-sorriso esticando-se de um
zigoma a outro.
-
Dizem até que às vezes você pode ver o espírito de uma mulher vestida de
vermelho andando.., – seu rosto aproxima-se do garoto. Pode sentir seu hálito.
Lembra-
-lhe talco. Por um momento, hesita, admirando a forma de seu crânio. - ...pelos corredores deste andar mesmo. – Vira o rosto e arregala um dos olhos, enquanto o outro permanece semicerrado. Abre a boca, em espera.
-lhe talco. Por um momento, hesita, admirando a forma de seu crânio. - ...pelos corredores deste andar mesmo. – Vira o rosto e arregala um dos olhos, enquanto o outro permanece semicerrado. Abre a boca, em espera.
-
Eu não tenho medo destas coisas.
O
homem fecha a boca. Bruscamente ergue o corpo e a cabeça cai pra trás. Os
braços retornam à languidez e os ombros caem. O sorriso some de sua expressão.
-
Você gosta de bonecos, garoto?
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