Ilustração: Isabele Linhares
2012
Entre o palco e a
janela, ele. De cima para baixo, seus olhos. Respira. A proeminência laríngea,
lentamente. A garganta seca. Abre uma gaveta, retira um espelho e um pino.
Sobre o espelho, despeja o conteúdo do pino. Com um cartão, ele faz do pó uma fileira
organizada. Engole em seco. Usa um canudo cortado para inalar. Funga
ruidosamente, apertando uma das narinas. Pra lá do palco, o garoto falando. Não
ouve.
Ele respira fundo.
A barriga infla/desinfla. Estrala os dedos unindo as duas mãos. Um dos bonecos
está pronto, sob o tablado de madeira que compõe o palco. Tira o cinto, arria
as calças até os tornozelos e senta-se em uma cadeira em frente ao tablado.
Retira da gaveta uma seringa, uma ampola e pequenos pedaços de tecido. A
seringa fere o bico da ampola. Enquanto o líquido sobe, sua cabeça ergue-se
junto. A boca aberta. Poucos miligramas. Segura o pênis com a mão esquerda e,
com a direita, penetra a injeção lentamente no corpo cavernoso. Nem uma gota de
sangue.
Os pedaços de
tecido revelam-se indumentárias permeadas por fios. Ele amarra os fios em um
pedaço de madeira em forma de cruz. O pênis começa a enrijecer-se até alcançar
o máximo de sua capacidade. Da mesa, ele pega um jogo de lápis especiais para
maquiagem. Sua cabeça pende de um lado a outro, suavemente. Seus olhos
estreitam-se enquanto maneja os lápis. Empurra a cadeira para frente, ajeitando
os membros inferiores por baixo do tablado. Traz o pênis ao palco através de um
orifício circular presente no lado direito do tablado. Por fim, coloca a
indumentária, escondendo a glande com a cabeça de uma lagarta feliz. Murmura
baixo:
“Você está velho,
Pai Joaquim, disse o jovem,
E seu cabelo está
ficando branquinho,
Mas você ainda
planta bananeira,
Você acha, que na
sua idade, isso está certo?”3
Manipula os
fios. Sua cabeça balança de cima para baixo. Ele solta a cortina que separa seu
tronco do palco. O segundo boneco está
pronto.
O palco ocupa um
amplo espaço, limitado em distâncias equidistantes à esquerda e à direita das
paredes laterais do quarto. É ligeiramente elevado em relação ao chão. Todo
feito de madeira polida. Ele mesmo fez. Uma cortina preta cobre a extensão do
espaço em que se desenrola a ação. A cortina é puxada para cima, por uma mão
que surge e some, rapidamente, de/por cima do palco.
- Até que enfim! –
o garoto está sentado em uma cadeira de plástico branca. Pernas magras,
ossudas. Os joelhos estão colados e as tíbias balançam. A bermuda ergue-se
quase até o meio das coxas.
A primeira
marionete é um boneco articulado, usado geralmente como material de desenho. A
lagarta está dormindo. O boneco aproxima-se sorrateiramente, pé-ante-
-pé, em cadência. A cabeça sem rosto
vira-se. A lagarta está dormindo. Que tal acordarmos ela?
- Ah, que bobo! – o
garoto levanta os braços e os deixa cair.
O
boneco estremece. Mas a lagarta ergue-se, em todo seu esplendor, curvada para
trás. Possui bracinhos ao longo de todo o corpo. É azul. As rugosidades de seu
corpo quase somem quando está completamente esticada. Sua voz é poderosa e
retumbante: Quem vem lá que me acorda, a esta hora, em meu domínio, eu,
Poderosa Lagarta de Onã?
O
garoto franze o cenho.
Passam-se
alguns segundos. O boneco, antes curvado e sem vida, levanta e vira apenas a
cabeça. Murmura. Ei, ele está falando com você! Não deixe a lagarta brava,
garoto, por favor!
O
menino inclina o tronco para trás. Arregala os olhos. O espetáculo dura cerca
de quarenta minutos.
A
lagarta está inerte. Seu tamanho e esplendor sumiram, suas glórias são finitas.
Puniram ela. Bateram nela, tiraram-lhe toda a vida e todo o vigor. A lagarta
prezava a Beleza. Esse foi seu único pecado.
- Eu não vi ninguém bater nela! – brada o garoto.
A
voz surge atrás do palco.
-
Bom, isso aconteceu depois. Eu não contei. Mas aqui está ela, veja. Venha dar
uma olhada de perto.
O
garoto levanta-se da cadeira e anda até o palco. O boneco articulado está caído
no lado direito do tablado.
-
Olhe. – os fios da lagarta erguem-se, balançam, mas ela está enrugada. Pende de
um lado a outro. – Viu? Pegue.
O
garoto estende a mão. Uma lufada de ar, vinda de cima, percorre seus dedos. No
momento em que sua mão engloba a lagarta.
-
Ele é um boneco bem mole!
-
Ele não é um boneco, meu rapaz. É uma lagarta.
-
Mas agora ela não fala mais! Você é que faz ela falar! Faz ela falar de novo. É
apenas um boneco sem vida!
Mais
uma lufada de ar atravessa os dedos do garoto. Ele olha para cima. Seus olhos
encontram-se.
-
Ela não quer falar. Esta lagarta está muito solitária. Puniram ela. Bateram
nela. Ninguém mais quis brincar com ela.
-
Por que ela foi punida, então?
Ele
funga. Seu maxilar cerra-se.
-
Isso não importa agora.
-
Ela morreu?
-
Oh, não. Ela só está triste e sem forças. Ela precisa que alguém faça carinho
nela. Tua mãe nunca te ensinou o que é carinho?
-
É claro que eu sei. É assim. – com as costas da mão, ele roça a lagarta,
suavemente. Ela estremece levemente.
-
Não, ela está muito triste... isso não bastará para que ela volte a falar com
você! Você tem de segura-la, firme, sacuda ela, para cima e para baixo. Sim!
Isso, desta maneira, veja como ela já está acordando!
O
garoto sorri.
-
Ah! Ah! Ah!
Um
pingo de suor cai sobre o tablado. A lufada de ar na mão do garoto torna-se
mais forte e frequente.
-
Fala! Fala!
Oh,
sim, garoto! Já posso sentir as forças voltarem! Faça mais forte! Eu voltarei!
A lagarta volta a ter seu tamanho normal. Seu corpo não está mais
enrugado. O garoto usa as duas mãos. Pra cima, pra baixo. Sorri. A ponta de sua
língua surge entre os lábios.
Você
me ajuda, garoto! Você está cheio de beleza, você me preenche!
- Ah! Ah! Ah!
As
lufadas de ar começam a fazer barulho.
Eu
estou viva. Eu estou viva, oh Deus... oh, Deus...
Mais pingos de suor caem sobre o tablado. O garoto olha para cima. O
rosto do homem está elevado. Os olhos estão fechados. A boca está aberta,
úmida, o lábio superior ligeiramente à frente do inferior. Algumas bolhas de
suor entre a boca e o nariz.
Estou viva, es... Ahh..ah..
-
Você está bem?
Sim,
es-, estou bem, continue, garoto,
continue!
O menino larga a lagarta. As mãos estão ainda dentro do palco.
-
Ei, moço, eu não quero mais brincar.
O
rosto elevado baixa os olhos. Ainda geme. Suas sobrancelhas assumem a forma de
um “v”. Abre os olhos. Seus lábios alongam-se. Seus dentes estão cerrados.
-
CONTINUE!
O
garoto recua. As íris azuis ligeiramente úmidas. Refletida na
pupila, uma sombra vaga contra alguma fonte de luz indistinguível. A esclera,
em intervalos irregulares, ora para a direita, ora para a esquerda,
rapidamente.
Suas
mãos estendem-se novamente para a lagarta.
Ahhhh, sim, sim, deus...você é poderosa, e o
inferno desabará sobre aquele que te enfrentar!
A expressão de
seus olhos, quando vista em conjunto, revela aguda tensão dos supercílios em
sentido inferior.
Os
gemidos intensificam-se.
Não
há elevação do sulco palpebral superior.
A
lagarta contorce-se. As mãos do menino estão encharcadas. O líquido escorre por
entre seus dedos.
A poderosa lagarta agradece, pois o
espetáculo da Beleza está vivo e continuará apreciado e vivo. E se retira.
O homem pega,
com uma das mãos, ambas do garoto, que as mantém esticadas. Em silêncio, ele
conduz o menino até o banheiro.
Lá, ele lava suas mãos.
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