29 de fev. de 2012

A defunta lésbica que acabou com o romance das caveiras

Ilustração: Frede Tizzot
Texto: Luiz Andrioli, Alvarenga e Ranchinho






Eram duas caveiras que se amavam. E à meia noite, na ladeira do Largo da Ordem, se encontravam. E juras de amor então trocavam. Abraçadas as duas em riba das pedras frias, a Caveira apaixonada dizia que de tesão por ele vivia; e o Caveiro falava que de desejo pela outra morria.
Mas um dia chegou de pé junto, uma gordinha nova no Cemitério Municipal. Cabeleireira, trabalhava na André de Barros, ao lado do Terminal do Guadalupe. Cortava cabelos das crentes que vendiam as madeixas para fazer perucas.  A cada comissão que ganhava, corria até a distribuidora de doces para comprar uma bandeja de teta de nega. Comia os doces de noite em casa. Em um sábado exagerou. Mandou pra dentro de suas fartas carnes ainda mais duas porções de corações de abóbora doce e uns oito sorvetinhos de maria-mole. “Teve uma doce despedida”, disse o pastor no discurso à beira do caixão.
Poucos sabiam que a Gordinha guardava em baixo da cama uma coleção de postais com fotos antigas de modelos nuas.  Pela noite, deitada, ela se masturbava com os retratos espalhados sobre a colcha de patchwork. Na boca ainda o gosto açucarado da tarde.
Morta, passeando pelos corredores do Cemitério Municipal, a gordinha topou com a foto da caveira em um mausoléu. Foi paixão à primeira vista. Estava ali o sentido da sua morte recém- assumida. Era sábado, o carnaval estava próximo e ao fundo era possível de se ouvir o arranhar de algumas cuícas nos botecos do São Francisco. O coração da gordinha até sambaria, não tivesse morto. “Mas os mortos também amam”, pensou. Embalada por este novo sentimento, procurou sua lápide para deitar. Tinha decidido que procuraria a caveira-metade já no domingo.
A gordinha passou a primeira noite olhando a Lua nova que brindava o cemitério. Chegou ao êxtase sentindo o corpo sem a vida que conhecia, mas cheio de uma nova energia despertada pela paixão. Gozou com um novo doce na boca: a imagem da Caveira.
Acordou tarde. Saiu pelo portão do Cemitério com a certeza de que voltaria de braços dados com sua nova paixão. Andou até o Largo da Ordem e encontrou uma festa já nas ruas próximas. Seguiu no ritmo do bloco.  Uma multidão descia a ladeira a partir da Sociedade Garibaldi. Uma festa de pré-carnaval que, a bem da verdade, pouco interessava para a gordinha. Ela sambava junto com o ritmo desajeitado dos curitibanos apenas para procurar seu amor. Girava o corpo, curtia a malevolência, jogava seu olhar por todos os cantos procurando a dona da foto da lápide que vira na noite anterior.
De cima do trio elétrico, o vocalista puxou animado um “ó quanto riso, ó quanta alegria. Mais de mil palhaços no salão...”. Foi quando a gordinha falecida encontrou a Caveira. Ela estava abraçada ao Caveiro, trocando suas juras de amor. Por um momento a recém-falecida apaixonada pensou em desistir. Mas logo se fez de faceirinha na frente do casal. Puxou para seus pés toda a sensualidade dos seus sonhos doces e sambou. Como se fosse um roteiro desenhado, a Caveira percebeu o apelo e soltou do abraço até então imortal. A Caveira se encantara pelo samba fresquinho de quem acabara de morrer.
Toda a multidão de foliões descia o Largo da Ordem sem perceber o amor que acabara de nascer para a imortalidade. A mais nova encantada seguiu na cadência daquela defunta ainda cheirando vida atrás do trio elétrico. O Caveiro abandonado sentiu um aperto grande no vazio do seu peito onde no passado ficava o coração. Sem que o vendedor de coco percebesse, tomou o facão que estava em cima do isopor e cravou no vazio de suas vísceras. Morreu pela segunda e última vez. Foi por amor. Foi por desejo.  Só por causa daquela ingrata Caveira que trocou ele por uma defunta lésbica.
A gordinha e a Caveira ficaram para trás da multidão e do trio elétrico. Elas se beijaram em tom funébre. Ao longe uma coruja cantava alegre e batendo as asas pedia bis.

Frede Marés Tizzot
Formado em História e Direito, abandonou o mundo acadêmico para fundar a Editora e Livraria Arte e Letra, onde trabalha como ilustrador, capista, diagramador, editor, revisor, tradutor...

Luiz Andrioli
Publica crônicas, matérias e contos no site: luizandrioli.com

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