Ilustração: Daniel Gonçalves
Texto: Luiz Bras
Eu imaginei a máscara e ela apareceu. A máscara de telepatia. Eu faço muito isso: imagino e as coisas aparecem. Papai não gosta que eu faça isso. Ele diz que é imoral, abominável. Mas não consigo evitar. Muitas vezes isso acontece sem eu perceber. Eu estava deitado na cama, olhando o teto, entediado. Então pensei em muitas penas. Quando percebi que estava pensando em penas, fiquei sem saber o que fazer com elas. Um cocar? Talvez uma minissaia? Brinquei um pouco com as penas sem perceber direito o que estava fazendo, sem sequer perceber que estava entediado. Uma máscara. As penas se juntaram, surgiu um nariz aquilino de górgona, um sorriso cheio de dentes afiados de esfinge e dois buracos para os olhos. Papai não vai gostar nada disso, eu pensei. Atrás da máscara apareceu uma cabeça. Embaixo da cabeça apareceram um tronco, dois braços e duas pernas. Um francês nu. A máscara de telepatia pertencia a ele. Com ela o francês era capaz de ouvir o pensamento das pessoas. Eu não queria que ele ouvisse meus pensamentos, então pensei noutra máscara. Surgiram mais penas. Pensei numa máscara capaz de inibir a primeira. Pensei numa chinesa de peitos pequenos usando essa máscara. Pronto, agora meus pensamentos estavam protegidos. Enquanto a chinesa contratelepata estivesse perto do francês telepata, nada aconteceria.
Meu quarto é pequeno. Não dá pra esconder um casal mascarado por muito tempo. Cedo ou tarde meu pai vai descobrir. Detesto seus gritos: pare, meu filho, pare de mentalizar seres imaginários dentro de casa. Eu tento, papai, juro que eu tento, mas não consigo controlar, é mais forte do que minha vontade. Às vezes ele gagueja de raiva, outras vezes chora. Meu pai é atormentado por um desespero constrangido sempre que algo insólito surge em casa. Ele não gosta de parecer antiquado ou intransigente. Percebo a luta interna, o espírito conservador brigando com o espírito liberal. Noto sua vontade envergonhada de ser um homem não da Idade Média, mas do século 21. No final o medo do desconhecido sempre vence. Meu pai sucumbe. É horrível. Preciso esconder o casal mascarado antes que meu pai chegue do trabalho.
Ordeno ao francês telepata e à chinesa contratelepata que entrem no pôster pendurado na parede. Os dois estranham a ordem. Rápido, eu grito (estou aprendendo com meu pai a gritar). O francês telepata tenta escutar meus pensamentos, ele quer compreender meu plano. A chinesa contratelepata anula essa tentativa. Resignado, o casal entra no pôster: uma reprodução de A torre de Babel, de Brueghel. Eu sigo os dois através do portal. É na torre que eu hospedo todos os meus mascarados. A família está crescendo. Começou com uma vidente russa e um contravidente argentino. Então vieram o ilusionista alemão e a contrailusionista angolana. Depois vieram a controladora indiana e o contracontrolador australiano. Depois vieram outras nacionalidades, outras máscaras, outras habilidades: ficar invisível, viajar no tempo, mover objetos sem tocar neles, atravessar paredes, ressuscitar os mortos, provocar tempestades, mover-se mais rápido do que o som, transformar-se em qualquer coisa… É claro que para cada habilidade eu imaginei uma contra-habilidade. Não podia deixar esses maníacos à solta. Eles têm desejos e necessidades, mas não posso libertar ninguém. Meu pai logo descobriria e então, meu amigo, seria um perereco.
“Que merda é esta?!”
Cacete, esqueci o portal aberto. Meu pai entra na torre e encontra os mascarados. A gritaria começa. Meu filho, que meeeeeerda é esta?! Mastigo uma resposta fraca. Titubeio. O rosto de meu pai vira uma carranca possessa, desgovernada. Quase não consigo distinguir das muitas máscaras ao nosso redor. Meu pai se atira sobre os casais, penas voam. A torre treme, lágrimas inundam minha visão, o medo turva o cenário. Abaixo a cabeça. Pra não ouvir mais nada eu deixo minha atenção fugir, mergulhar na piscina mais funda. O blablablá vira um eco vazio e distante. Não tem jeito. Eu preciso me livrar de minhas criações. Não dá pra ficar ouvindo sermão dia sim dia não. O blablablá é potente, ele acaba chegando onde eu estou, no fundo mais fundo da piscina, do oceano. Tapo os ouvidos com as mãos. O blablablá atravessa a carne, invade meu crânio. A cabeça ainda baixa, vejo a máscara de telepatia caída aos meus pés, meio estragada. Eu preciso resolver isso. Eu preciso me livrar senão de todas as minhas criações, ao menos de uma. Justamente da mais amada. Da mais histérica: meu pai.
Daniel Gonçalves
Radicado em Curitiba, casado e pai de três filhos. Teve toda sua vida permeada pela paixão à literatura, artes visuais e música. Atual editor da revista LODO e co-editor da revista LAMA, seus trabalhos podem ser visualizados no site www.danielgoncalves.art.br . Paralelamente aos trabalhos artísticos, desenvolve projetos de arquitetura e design.
Luiz Bras
Nasceu em 1968, em Cobra Norato, MS. Sempre morou no terceiro planeta do sistema solar. É de leão e, no horóscopo chinês, cavalo. Na infância ouvia vozes misteriosas que lhe contavam histórias secretas. Adora filmes de animação, histórias em quadrinhos e gatos. Acredita em telepatia e universos paralelos.
Já publicou diversos livros, entre eles a coletânea de contos Paraíso líquido, a coletânea de crônicas Muitas peles, os romances juvenis Sonho, sombras e super-heróis e Babel Hotel e, em parceria com Tereza Yamashita, os infantis A menina vermelha, A última guerra e Dias incríveis.
Mantém uma página mensal no jornal Rascunho, de Curitiba, intitulada Ruído Branco. Também mantém o blogue Cobra Norato: luizbras.wordpress.com
Já publicou diversos livros, entre eles a coletânea de contos Paraíso líquido, a coletânea de crônicas Muitas peles, os romances juvenis Sonho, sombras e super-heróis e Babel Hotel e, em parceria com Tereza Yamashita, os infantis A menina vermelha, A última guerra e Dias incríveis.
Mantém uma página mensal no jornal Rascunho, de Curitiba, intitulada Ruído Branco. Também mantém o blogue Cobra Norato: luizbras.wordpress.com
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