Ilustração: Daniel Gonçalves
Texto: M.D. Amado
– Cara, eu não consigo... tô ferrado!
– Ainda tem tempo, relaxa.
– Como ainda tem tempo? Eu tenho que entregar esse texto hoje! – empurrou o notebook e jogou o corpo para trás, esticando ao máximo o encosto da cadeira.
– HOJE? – o copo de refrigerante quase caiu de sua mão.
– É, porra... hoje. Que parte do “hoje” você não entendeu? – voltou-se para o notebook e clicou novamente na imagem.
– Velho, e agora? Aqueles caras não brincam com essas coisas. O papo é sério e você, me desculpe, mas você é perfeito idiota. Aceitar um desafio desses... puf!
– Parecia simples... aliás, é muito simples. Só preciso pegar essa ilustração e criar um conto... como eu ia adivinhar que eu ia travar desse jeito? Não consigo escrever nada que preste, cara. Eu tô mesmo ferrado. Provavelmente vou ser o primeiro imbecil a receber a tal punição do grupo literário.
– Na boa? Se você não quiser ter a sua pele retirada com você ainda vivo, é melhor parar de conversar sozinho e tentar escrever pela vigésima vez...
...
Seria verdade que aquele clube de escritores tinha mesmo um pacto de morte? Em pleno século XXI, isso seria possível? Esse pensamento o acompanhava ao descer as escadas. Pelo amor de Deus, eu sou mesmo um trouxa. Claro que isso não passa de uma brincadeira dos caras. Deve ser uma espécie de batismo para quem entra no clube literário. E eles falam tão sério, que você nem percebe a sacanagem. Vou lá, pessoalmente. A essa hora devem estar reunidos na livraria.
E foi assim, falando sozinho em pensamento, que o nosso aspirante a escritor fechou a porta de casa e entrou no carro.
– Minha mãe do céu! – gritou logo após colocar a chave na ignição e olhar para o retrovisor interno. – Quem é você, moça? Quer me matar de susto?
– De susto?! Não... de susto não.
– Como?
– Nada... esqueça, mas se você realmente não quiser morrer, me entregue o texto.
– O quê? – ele não queria acreditar – Ah, entendi... ok, quem foi o engraçadinho que pegou a cópia da minha chave? Boa tentativa, moça. Levei um baita susto quando te vi, mas já saquei a brincadeira dos caras. Eles estão na livraria? Vamos até lá? – ligou o carro.
– Eu seria o seu prêmio – ela tirou o casaco, revelando um vestido verde transparente, de alças finas. Era possível ver os bicos dos seios, rijos... – mas você não cumpriu o combinado. Agora...
O barulho lá fora chamou a atenção da ruiva, que se virou para a janela. Olhou para um lado e para o outro. Viu o carro sendo cercado.
– Vai! – gritou – Arranca o carro. Corre! Vamos sair daqui... rápido!
– Olha aqui, chega tá b...
– Vai pagar pra ver? Olhe lá fora... não vê as sombras? Vai logo!
– O que é isso? Agora que eu saquei... a ilustração! Caralho! Os caras são muito bons mesmo. Estamos vivendo a cena da ilustr...
– Arranca, filho da puta! – esbravejou, deixando escapar um som gutural, mas que não foi percebido pelo rapaz.
E na dúvida...
O carro saiu em disparada até a esquina, mas logo desacelerou ao ver que não havia mais ninguém por perto. Algumas quadras depois, virou à esquerda e parou no final de uma rua sem saída.
– Devo admitir que eles fazem tudo com muito capricho. Tomara que eles me deem uma segunda chance pra tentar entrar no clube – olhou novamente para o retrovisor. A ruiva olhava para trás e ele percebeu algo amarrado no braço da garota. – Ei, você vai a alguma festa à fantasia?
– Eu já disse. Eu era o seu prêmio. Um dos babacas inventou que eu deveria fazer o papel de uma fada, ou um ser qualquer da floresta. Me deram esse projeto de fantasia, com essa coisa ridícula... – ela o encarou e sorriu – mas como eu tentava dizer quando eles chegaram, agora você vai ser o meu prêmio.
– Ora, ora... mas... – ele não terminou a frase. Ao acender a luz interna e olhar para trás, interrompeu o sorriso malicioso e percebeu a palidez da garota, que alguns minutos atrás, era a coisa mais linda que ele já tinha visto nos últimos meses. No entanto, ao encará-la de frente naquele momento, se viu diante de uma velha com o rosto completamente enrugado. No lugar dos olhos, cavidades escuras por onde escorria um líquido purulento e fétido. O corpo ainda mostrava uma juventude invejável, apesar das veias se destacarem sob a pele. Ela desceu a alça do vestido e deixou à mostra os seios perfeitos. Era só um artifício para distraí-lo...
...
“O laudo da autópsia do corpo encontrado no início da semana passada, dentro de um veículo estacionado na zona leste da cidade, foi divulgado hoje. Os peritos do Instituto Médico Legal afirmam ser de um homem de 25 anos, cujo nome, a família pediu para que não fosse divulgado. A identificação só foi possível graças aos documentos da vítima, encontrados no chão do veículo. O que mais chama a atenção, é que toda a pele do corpo do rapaz foi retirada, e segundo exames feitos pelos legistas, pode-se dizer com absoluta certeza, que o jovem ainda estava vivo quando a retiraram”.
O Detetive Linhares desligou a TV.
– Você não tem nada a ver com isso, não é, Florestano?
– Já me viu arrancando a pele de alguém, Linhares? Eu não faço isso... eu arrebento logo o peito ou o ventre, me delicio com as entranhas e acabo logo com a fatura. Não seria capaz de uma maldade dessas. Isso é muito cruel, cara.
– Mas você estava com eles ontem à noite.
– Sim, os idiotas daquele clube literário queriam dar um susto no rapaz. Só que os estúpidos chamaram a pessoa errada para servir de atriz. Quando me contaram da brincadeira e deram a descrição da garota, fomos correndo para tentar salvar o cara. Chegamos bem na hora e tentamos cercar o carro, mas ele arrancou cantando pneu e se mandou.
– Então você sabe quem fez isso... Quem... – o próprio Linhares se interrompeu, e erguendo os braços mudou o rumo da conversa. – Ora, a quem eu quero enganar? Você não vai me dizer, não é Florestano?
O lobisomem do Uberaba apenas sorriu.
– Por que não foram atrás deles? – perguntou Linhares, enquanto se dirigia até a cozinha.
– Nós fomos, mas a vadia sabe como despistar o meu faro. A filha da puta me enganou direitinho. Fomos parar num puteiro.
– E tudo isso por causa de um desenho?
– Ilustração, Linhares... ilustração. Não se fala desenho. Quer ofender a classe?
– Que seja... é muita estupidez.
– Aliás, eu peguei uma cópia... – apontou para a mesa de centro, onde estava um papel com uma grande ilustração colorida. – Não quer tentar?
– Tentar o quê? – Linhares tomou um gole de café.
– Sei que você gosta de escrever. Escreva algo inspirado na ilustra.
– Ah, vá...
– Eu te desafio... – Florestano piscou, levantou-se e saiu. Era noite de lua cheia. Quase hora da transformação.
Na esquina, passou por uma jovem ruiva de pele pálida e corpo perfeito.
Sorriu.
Daniel Gonçalves
Radicado em Curitiba, casado e pai de três filhos. Teve toda sua vida permeada pela paixão à literatura, artes visuais e música. Atual editor da revista LODO e co-editor da revista LAMA, seus trabalhos podem ser visualizados no site www.danielgoncalves.art.br . Paralelamente aos trabalhos artísticos, desenvolve projetos de arquitetura e design.
M.D.Amado
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