19 de fev. de 2012

Ó, quanta alegria...

Ilustração: Haydee Uekubo
Texto: Diego Fortes























-  Que coisa ridícula! Carnaval não me vai muito bem. É sempre assim. Essa alegria toda me põe no meu humor mais suicida, mas enfim... Lá estava eu no meio daquele salão de um importante e prestigiado clube social da cidade. A pegada desses bailes de carnaval de clubes é você permanecer o maior tempo possível na festa. Começo de festa é sempre bonitinho: as pessoas com o banho recém-tomado, cheirosas, alegres, a roupa impecável e sóbrias, principalmente. Lá pelas tantas, os sócios mais velhos - saudosos de seus antigos bailes em clubes - não resistem ao sono e se retiram. Aí, é que a coisa fica interessante. A “ala jovem” dos associados, já órfãos e com acesso à bebida, à música e a uns aos outros, fazem o inferno.

-  Aceita? Passou um garçom com uma bandeja de Black Label. Ah, vamos começar a noite, não é? - bobocamente disse a ele enquanto o gelo caía no copo. Fiquei com aquela risadinha boba na cara enquanto ele se afastava de mim, certamente, me desprezando. O que que eu estava fazendo? Já estava tentando me por num humor mais alegrinho só porque estava num baile de carnaval... Eu mesmo me desprezei naquele instante. Larga de ser bobo, Strike! Sempre penso nos garçons quando eu bebo. Deve ser duro não poder beber no trabalho. No meu ramo de atuação, beber faz parte do trabalho. Olhei para o bar (open bar!) e vi o que me aguardava aquela noite: as garrafas de uísque enfileiradas na prateleira atrás do bartender eram como lingotes de ouro em exposição para colonizadores lusitanos. Ouro e índias... Ê, carnaval! Que fossa...

-  Adeus! - ela me disse. Como adeus? Onde é que você está indo? E quem é que fala ‘adeus’? - eu disse. Tá vendo? É isso o que eu não aguento mais! Você me retrucando, me corrigindo, me censurando! - ela disse. É que ‘adeus’... Eu achei engraçado... quer dizer, engraçado não é a palavra ideal... - eu disse. Foda-se a palavra ideal, seu cretino! Eu tô indo embora e você acha engraçado eu dizer ‘adeus’? - ela disse. É que não foi a palavr... - eu tentei dizer, mas ela não deixou. - Não fala que não era a palavra ideal! E se não for a palavra ideal? E se eu quiser trocar todas as palavras? Hein? E se eu fizer minhas malas, te olhar na cara chorando como eu estou agora e te disser: “Cachimbo, Lucky!”, será que você não vai entender o que está se passando?!? - ela esbravejou. Houve um momento de grande vacilo antes de eu dizer alguma coisa, justo naquele momento crítico em que as palavras se amotinaram e estavam mordendo a minha bunda. As frases passavam na minha mente quase como numa prova de múltipla escolha e todas elas pareciam insuficientes ou equivocadas. Não sei se foi por falta ou excesso de palavras que eu perdi Melinda. A chave caiu da fechadura quando ela bateu a porta ao sair. Fui juntá-la do chão e já fiquei ali pelo chão mesmo.

-  Strike falando! - tão logo saía do hotel de Analu, liguei para meu cliente. Como a situação de detetives particulares não está das melhores, quando ligo para alguém, uso a estratégia do ‘toquezinho’: você liga, espera chamar uma ou duas vezes e fica esperando a pessoa retornar. Não é das coisas que eu mais orgulho em fazer, mas pelo menos não é tão deselegante quanto ligar a cobrar. Você me ligou... - ele disse, num  misto de pergunta e constatação. Sim, claro. Precisamos nos encontrar, tenho informações sobre as pessoas que estão lhe chantageando - adiantei. Hoje eu não posso, rapaz. Tenho um baile do clube pra ir - me disse com certa preguiça na voz. Não faz mal, eu posso lhe encontrar lá mesmo. Deixe um convite no meu nome na portaria e eu prometo ser bem discreto. - disse eu aparentando urgência, quando, na verdade, me interessava o baile. Não gosto de carnaval, mas open bar é open bar!

-  “Alalaôôô...” Mas que calor do caralho! São tempos difíceis esses de verão. Há que se ser muito criativo para se manter elegante nesses dias abafados. Não abro mão do terno nem da gravata. A solução está na escolha de cores mais claras - o que nem sempre combina com a minha constituição pálida, mas fazer o quê? As senhoras e os senhores da sociedade curitibana estavam muito elegantes em suas roupas sociais e vestindo máscaras que combinavam com a cor da camisa dos homens ou dos vestidos das mulheres. A “ala jovem” estava como o diabo gosta. Não havia uma só garota sem o umbigo de fora - não que eu estivesse reclamando, obviamente. O uísque estava me esquentando ainda mais. Pequenas gotinhas de transpiração se acumulavam na borda de cima da minha máscara de pierrô tristonho e desciam pela falsa lágrima desenhada.

-  A pipa do vovô não sobe mais...” Uma atrás da outra, as marchinhas desfilavam pelo baile. As pessoas adoram ouvir as mesmas músicas, não é mesmo? Já no terceiro uísque, avistei meu cliente ao longe. Estava usando um chapéu-panamá como se isso fosse algum tipo de fantasia. Trazia a esposa que não poderia saber dos meus serviços para o marido dela, que estava sendo chantageado por uma gangue de lixeiros para não revelarem que ele havia contratado uma prostituta há algumas semanas. Fiz apenas um sinal indicando o bar.

-  Se você fosse sincera...” Seguinte: estamos lidando com algo um pouquinho maior do que imaginávamos. - alertei eu. O quê?!? - berrou ele. O barulho de marchinhas e pessoas falando era ensurdecedor. É uma gangue! - gritei eu. Uma gangue? - perguntou ele. É! Eles coletam provas contra as pessoas nos sacos de lixo! - expliquei eu. Lixo?!? - estarreceu ele. É! Lixo! Ainda não sei se a Naomi Sueli trabalha com eles ou não. - disse eu. Quem? - confundiu-se ele. A Naomi Sueli - repeti. Quem? - ele, ainda sem entender. A puta!!! - esclareci eu, no exato momento que a banda parou. O meu ‘puta’ gritado chamou a atenção de todos que estavam por perto.

-  O teu cabelo não nega, mulata...” Entre todos os olhos virados para nós naquele momento, identifiquei um par que me parecia familiar. Seria ela? Não consigo ver. Saiam da frente! Ela se afasta transtornada, mas é ela. É Naomi Sueli! A própria! Vestida de Chapeuzinho Vermelho. Meu cliente, entre confuso e assustado, sai de perto de mim e procura sua esposa na multidão. Eu vou atrás da puta. Muitas pessoas me acotovelando, alguns dos adolescente já dando os primeiros sinais de embriaguez, braços molhados manchavam meu paletó creme, confete e serpentina para todo lado. Era ela. Cadê? Dá pra dar uma licencinha? Vejo ela passando do outro do salão, não acredito que eu vou ter que passar por esse povo todo de novo... Com licença, com licença. Piso no pé de alguém. Desculpa. Tá meio apertadinho aqui, né? (eu de novo com o sorriso boboca, que merda) Cadê essa porra dessa puta?

-  Chiquita bacana lá da Martinica...” O que ela estaria fazendo aqui no clube? Será que ela está fugindo de mim? Como ela sabe como eu me pareço? Será que como a Analu, ela veio para me eliminar? Em meio às dúvidas, pisões e confete na boca, para, exatamente na minha frente, ela. Fica parada me olhando como um dia eu fiquei parado olhando para ela. Melinda. Pronunciei seu nome quase sem emitir som. Olá, Lucky. Tá tudo bem? - me sorriu. Muitas frases se enfileirando para serem escolhidas: “Tá tudo bem? Que pergunta é essa? Sabia que eu durmo mal até hoje com saudades suas!” ou “Vá se fuder, sua cadela! Me abandona daquele jeito e agora vem com sorrisinho? Suma da minha frente!” ou “Agora sim! Agora tá tudo bem porque você tá na minha frente e eu posso te abraçar. Eu te amo, Melinda! Me agarre e não me solte nunca mais!”, mas o que saiu mesmo foi: “Oi. Tudo bem? E você? Que surpresa!” Pois é, surpresa mesmo - disse ela. Você está aqui com alguém? - deixei escapar. Sim. Vim com umas amigas, nós combinamos de vir todas como personagens do Harry Potter - disse ela vestida de colegial com um cachecol colorido enrolado no pescoço, nada que atrapalhasse a vista do decote, é claro.

-  Nosso amor passou, eu sei. No princípio eu não quis acreditar. Chorei...” Lembro-me muito bem daquele decote. Aqueles seios generosos dos quais já fui devoto. Tava pensando em você esses tempos... - reticenciou Melinda. Ah, é? “Não tem um dia que passe que eu não penso em você!” - contive eu que só disse o ‘ah, é?’ mesmo. Você não quer sentar? A gente toma alguma coisa - convidou ela. Pode ser. Eu só preciso de um minuto, tudo bem? Tudo - sorriu como só ela sorri. Me desconcentrei completamente com Melinda e seu saudoso decote. Saí do salão em busca da Chapeuzinho e não encontrei mais nada. Se ela estava fugindo de mim, já deveria estar longe. Tanto melhor que eu voltasse para o salão, para Melinda e quem sabe para o decote. A “ala jovem” já começava a ousar desvairadamente em saídas fortuitas pelos jardins próximos ao grande salão de festas. Ao voltar, não encontrei Melinda. Pensei que talvez pudesse ter ido ao banheiro e esperei junto ao bar tomando outro uísque. Esperei... esperei... e nada... Estranho... Toca o telefone. É o cliente. Diz que eu tenho que ir até sua casa urgentemente.

-  Ei, você aí, me dá um dinheiro aí...” Chego na frente do prédio do cliente e dou um “toquezinho” no seu celular. Ele abre o portão da garagem e eu subo pela escada de emergência. O cliente abre a porta mais branco do que um fantasma. Ouço a voz da sua esposa. Sua esposa está aí? Está - diz ele. E o que eu digo se ela perguntar quem eu sou? A verdade. É um pouco tarde para eu manter a mentira - ele escancara a porta e aponta para o corpo nu de Naomi Sueli estirado no meio da sua sala-de-estar. Junto ao corpo, um bilhete de letrinhas recortadas de autoria da G.L.A.C. (Gangue dos Lixeiros Anônimos de Curitiba) dizendo que não estão de brincadeira e pedindo ainda mais dinheiro. Eu estou arruinado! Pra pagar o que eles querem, eu vou ter que vender tudo o que eu tenho, eu vou perder minha empresa, eu vou ter que fazer um empréstimo, minha reputação irá para o lixo, eu... Fui virando as costas e o deixei falando sozinho. Precisava me concentrar agora.

-  Chegou a turma do funil, todo mundo bebe, mas ninguém dorme no ponto...” Volto ainda para o clube. Volto e vejo os casais já se acabando nos jardins. Volto na esperança vazia de reencontrar Melinda e pela necessidade de tomar mais um drinque - vamos para aquele open bar! E agora, cavalheiro? Uísque escocês? Uísque americano? Vodka russa? - ofereceu o bartender. Me veja aí uma lapada, irmão! Que hoje eu quero ver se eu me esqueço!

Diego Fortes
É ator, escritor, tradutor e diretor. Nasceu em 1982. Bacharel em Comunicação Social, tem passagens pela Escola Técnica de Formação de Atores da Universidade Federal do Paraná, pelo Ateliê de Criação Teatral e entre diversos outros. Fundou A Armadilha - cia. de teatro em 2001, companhia pela qual montou os espetáculos Marias (2004), Café Andaluz (2005), Os Leões (2006), Bolacha Maria - um punhado de neve que restou da tempestade (2008) e Jornal da Guerra Contra os Taedos (2009). Em 2010, escreveu e dirigiu - com a colaboração da artista mineira Grace Passô - a peça Os Invisíveis, pela qual recebeu a segunda indicação à Melhor Direção do Troféu Gralha Azul. Mantém contato colaborativo com autores de outros países latinos.

Haydee Uekubo 
Outros trabalhos de ilustração e design: cargocollective.com/haydeeuekubo

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