9 de fev. de 2012

Lorena

Ilustração: Arthur d'Araujo
Texto: Daniel Gonçalves



Absorta em seu cigarro, Lucia desce a ladeira sem elegância alguma, equilibrando-se sobre as sandálias plataforma. Próximo dali, ecoa a algazarra dos foliões de carnaval. Um carro encosta; carro imponente; e ela vai se debruçando junto à janela da porta traseira. O homem mascarado deposita trezentos Reais no decote da moça e abre-lhe a porta sem delongas. A quantia supera o lucro de uma noite inteira de programas, Lucia embarca.
– Prazer, Lorena! – ela se apresenta, estendo a mão para ser beijada.
– Prazer, Lorena! – ele retruca, beijando-lhe as costas da mão estendida.
– Misterioso... hummm...
– Que bom que isso lhe agrada...
Ele ordena ao motorista que siga; ela observa que esse também está mascarado.
– Coloque essa máscara, por favor, Lorena.
– Tudo bem! Fetiche de carnaval... espera! Essa máscara não tem olhos!
– É uma precaução, por minha privacidade; mas se preferir, eu paro o carro e você desce aqui...
– Não, tudo bem!
Alguns minutos rodando na escuridão pareceram uma eternidade. Ainda de olhos vendados, Lucia foi conduzida gentilmente casa adentro e acomodada em um sofá por seu anfitrião.
– Não tire a máscara, vamos brincar assim por enquanto.
Pela cabeça de Lucia, passam várias hipóteses: de deformidades faciais a complexos fálicos. Ela ouviu uma garrafa sendo aberta e o tilintar de taças.
– Beba esse vinho, é excelente!
– Nesse calor, eu cobiçava uma cerveja bem geladinha...
– Ah! Mas o vinho é uma bebida tão mais sensual, não me faça essa desfeita, sim?
Foram alguns goles da bebida adulterada; a partir daquele momento, ela estaria totalmente vulnerável. Outros mascarados adentraram a sala e ajudaram a carregar Lucia, ou Lorena, até o porão - uma antiga adega erigida em pedra. Despida, deitaram-na sobre um altar, ornamentado com bizarros simbolismos. A moça contorcia-se em delírio. O rito começou com a entoação de um mantra – YOG-SOTHOTH AI’F ZHRO OGTHROD – repetido continuamente. Uma urna foi aberta e um odor nauseabundo alastrou-se pelo recinto. Da caixa, ergueram um saco de tecido roto que continha uma cabeça, aparentemente taxidermizada, de um animal de pelagem grossa, bocarra feroz e olhos vidrados. Com uma adaga, cortaram sete vezes a moça. Cortes superficiais. Para cada incisão, uma única gota de sangue, a ser precipitada na boca da cabeça grotesca – sete gotas. Depois, posicionaram a cabeça entre as pernas de Lucia. A respiração da meretriz gradualmente ritmava-se ao mantra. Quanto maior a força na evocação das palavras, mais profunda tornava-se sua respiração; seu ventre contraia-se violentamente. Ouviu-se um bufar poderoso; o monstro piscou os olhos e começou a respirar; o corpo de Lucia agora lhe pertencia. Um segundo recipiente foi aberto, tratava-se de uma caixa térmica com gelo, que guardava um coração humano. O mestre da cerimônia depositou o órgão na boca da criatura, que mastigou e engoliu a oferenda.
Lucia acordou com o ruído do ventilador de teto, em um quarto de hotel barato. Ao lado da cama, encontrou uma bolsa com tanto dinheiro que desistiu de contar. Aturdida, desceu as escadas; na recepção, descobriu que sua diária estava paga. Perguntou sobre seu acompanhante, mas uma vaga descrição foi tudo que obteve.
Alguns meses depois, Lucia morreu. Complicações no parto.


Daniel Gonçalves
Radicado em Curitiba, casado e pai de três filhos. Teve toda sua vida permeada pela paixão à literatura, artes visuais e música.  Atual editor da revista LODO e co-editor da revista LAMA, seus trabalhos podem ser visualizados no site www.danielgoncalves.art.br .  Paralelamente aos trabalhos artísticos, desenvolve projetos de arquitetura e design. 

Arthur d'Araujo
Outros trabalhos em arthurdaraujo.com/

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