26 de fev. de 2012

dor sem sombras

fotos : MARCO NOVACK
texto: LUIZ FELIPE LEPREVOST
estrelando: UYARA TORRENTE
maquiagem e cabelo : ANDREA TRISTÃO
figurino : FLOR DE VEDETE
arte: MARJA CALAFANGE
assistência : DAY BERNARDINI






acordo
num cemitério
todos os que somem um dia estiveram aqui
que horas são?
o sol reponde
é a rodoviária ali do outro lado da rua?
estou assim: de maiô
às cinco da tarde
confirmo agora com um homem que passa levando um skate
enojado, ele me responde enojado
em que cidade estou, moço?
o homem já não me escuta
caminha rápido, digo, para um homem que manca
e o céu não querendo ser cinza nem azul

com dez mil leões no cabelo, a dor sem sombras

acordo acordo
fedor de álcool e suor
vem do grupo de pessoas dormindo ao meu lado
a minha bolsa
não é travesseiro não, vadia
tiro debaixo de sua cabeça com cuidado
a calçada vai

acordo
são tantas garrafas que mal posso contar
ardem
meus olhos, lesmas no sal
pego a bolsa ou não?
é minha, deve ser

acho que caminho
chego numa avenida
é a

a dor sem sombras e sua lã sem derme



escuto um rádio
e o locutor
vem da portaria do prédio azul
detesto futebol
sensação angustiante que a narração dentro do final da tarde é dentro
da cidade vazia
conheço bem este desamparo
e o nome que lhe dei

caminho, nem sei se avanço

a bolsa
ah
quem sabe encontro meu celular
devo ter um, todos tem
abro ou não a bolsa?
se não for minha
meto a mão no fundo: uma faca


caminho
não reparo se acordada
preciso ir para casa
minhas virilhas doem
e os peitos
estou ferida
este barulho no asfalto
onde moro?
meus pés são cascos

pude lamber sua cara
mergulhar na claridade dos raios solares de álcool

agora lembro
é
com a faca limpei peixes ontem
onde foi quando?
no jantar, isso
estava preparado, o jantar
um peixe falou comigo você é melhor cuspindo fogo
agora não lembro mais

ah
já sei quem sou

e o peixe? nada



sou uma desistência um acidente, sou um deserto

e o peixe o peixe o peixe é

a minha verdade não estou nem aí

já sei
o peixe falou como se as facas não fossem os
peixes mais macios a carne sabe engolir

oito quadras conto na avenida
uma se abre para a outra e a outra
e aqui estou reconhecendo este lugar
a placa é explícita: Café do Teatro

uma festa a fantasia
por isso estou vestida assim
claro
quando foi ontem?
foi ontem







o peixe estava comigo
tinha mais alguém
quem?
e o peixe pergunte à sua cidade, ela pode dizer

preciso ir
minha casa
reze
preciso dela
por aqui?
vou
subo a rua ou não?
faz sol
nesta rua não
a tarde tem a cor dos paralelepípedos
eu conheço você, rua
reze, a rua diz sarcasticamente
já fomos apresentadas
temos vícios parecido
já andei por você que
que alegria que tristeza
que alívio que merda fui fazer
você
você é a fumaça

subo
som de batuques
sei que subo
na direção da música

a dor sem sombras, em quem me farto?


chego
sei que chego
é uma espécie de fonte de fogo
centenas, talvez milhares de pessoas
a roupa colorida
o baile de máscaras
homem que é mulher que é homem
que bom que veio
eu rio um pouco envergonhada
vocês devem estar me confundindo com alguém

sei que chego sei
as pessoas comemoram a minha presença
de onde me conhecem?
quem vai cantar no trio-elétrico?
tirem uma foto minha
olham para mim como eu fosse
alguma coisa que tivessem tirado do nariz
quem diria, hein, de enfermeira a


eu sei cantar, eu sei fazer
acho que sei
todo mundo sabe
talvez
mas
será?

lagarta e códigos de vozes em choque

avisto alguém que conheço
sim, não
penso conhecer
não estou convencida
certeza, é ele
não nos vemos desde
é ele?
o próprio

encosta na minha carne doendo
mania que o coração tem de falar comigo
uma voz no tempo
prédios sobre a face da Terra não existiam e roxo
queria dizer adoro, sou fanático

e eu
lambe minha teta
a esquerda
sim
conheci um poeta
acho que dormi tempo demais dentro de seus poemas
e o bicho roxo encanta-me ó frase que indaga, dá-me
a exasperação da saudade de nós naqueles que amamos
e eu
conheci cada lágrima é uma lâmina que eu choro um poeta
e o nojento roxo não tem o menor constrangimento, é abundância
e eu
conheci um poeta quem não conheceu?

aceno
é ele mesmo no meio dos foliões
estranho, esta palavra não era para estar aqui
ah
ele vem na minha direção
está tão perto
vou encostar nele com a minha mão
não o alcanço
ele continua se aproximando
me sorri
abro a bolsa sem dar para o ato
ele está tão longe
abro abro abro, sei o que estou fazendo
mas não hoje, hoje não, meu Deus, o quê?
estou tão desesperada, por que fiz isso comigo?
enfio a mão na bolsa, aperto com minha garra a faca
sou dela como o osso é do cachorro
ah, querido, desculpe estar te conhecendo agora
você sabe como nunca que me destruí

ah
nos beijamos, olhos fechados
os lábios da faca



abro os olhos
além de mim
não pode ser um cemitério
ninguém no Largo
é inverno
meu maiô... rasgado
chove
tenho um peixe morto na mão

o vento é o rascante gemido de uma cuíca

marco novack
publica suas imagens no site: http://www.marconovack.com.br

lf leprevost 
publica seus contos em http://www.notasparaumlivrobonito.blogspot.com

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