22 de fev. de 2012

Entre Família

Ilustrações: Elis Marina B
Texto: Paco Steinberg

Nota: Caro leitor, o conto abaixo é um pouco extenso em relação aos demais que produzo. Fato é que se trata de um conto de família, e histórias de família sempre têm muito a contar. É bem aqui onde você continua ou desiste.




Para para essa porra caralho é aqui Meu tem certeza É sim porra tá me tirano Uma casa desse tamanho sem alarme Fica de boa a mina é firmeza trabalha aqui faz uma cara e outra ela sabe que se atrasar a função tá fudida Quanto cê combinou com ela Ela só quer um colar da velha que tá no quarto Já é Os quatro bandidos respiram no vidro quente do Monza 87 Verão é de foder calor do caralho Coé maluco se liga na situação Cadê a família Foram num baile de Carnaval lá no Curitibano Bando de prebói do carai O muro da casa escolhida com tanta pertinácia rasgava o coração do Jardim Los Angeles com pedras cinzas imensas e sujas Sobre o muro antigo não havia cerca elétrica nem placa de aviso nem mato com espinho nada nada nada Partiu pra correria É nóis Representa Os quatro saltam do carro mas uma das portas emperra Peraí a minha correntinha da Nossa Senhora do Perpétuo Socorro ficou ali cara abre a porta pra mim tirar Vacilão do caralho se liga na responsa É vamo tá atrasando a porra toda deixa essa merda aí Não posso Ói mano o processo é ligeiro e o baguio é loco tá ligado fica aqui fora então e se aparecer um cana cê dá um toque na gente valeu Não vai dormir caralho Se liga véi parceria Então partiu Os três homens dão a volta na quadra em busca de câmeras de segurança todavia não encontraram nada que parecesse perigoso A casa ocupava metade de uma quadra inteira e mergulhava na penumbra do bairro pois todos os postes ao redor da mansão estavam sem luz Porra véi cê é ligeiro hein deixou da hora pra gente entrar Como assim Os postes véi tu quebrou a porra toda Não fui eu cara Carai só os da casa que sinistro Ô seus merda vão ficar brincando de prefeitura aí que se foda o poste melhor pra nóis Olha ali daquele lado as pedra tão moleza de subir Já foi Os bandidos admirados pela facilidade em transpor a muralha estranharam a ergonomia com que seus chinelos encaixavam-se nos buracos como se cada cavidade tivesse sido construída com o intuito de uma escalada incólume ou de uma fuga rápida ou sabe-se lá o quê Já do outro lado os três homens encontram um jardim repleto de árvores floridas e frutíferas onde alguns morcegos alimentavam-se de frutas doces Ao fundo do jardim a mansão estava de portas e janelas abertas com algumas luzes acesas De dentro da casa soava uma marchinha de carnaval em volume alto “Se você fosse sincera ôôô Aurora...” Dois cachorros completamente negros de grande porte dormiam tranquilos em frente à porta de entrada Carai véi fudeu ói o naipe dos dog mano vai dar treta Vai amarelar cuzão ói lá os dog tão véi pra carai dá pra ver os pelo branco daqui Puta cara sei não hein Vai ficar nesse caô seu otário coé Vamo de uma vez porra Os três bandidos aproximam-se da porta vagarosamente Nossa véi nem meu vô deixa a casa com luz acesa e som ligado só otário acha que truta ainda cai nessa Ei a empregada não tá aqui Não ela disse que ia vazar antes da gente chegar Tá faz assim ó dois lá em cima e tu aqui embaixo valeu é papo reto deu treta rala peito e some cada um por si e que se foda O bandido que permaneceu na sala iniciou o roubo com obviedades tais como pratarias cristais e objetos de ouro Como não era sabido e nem ladrão há muito tempo um Stradivarius pendurado acima da lareira passou-lhe despercebido entre outras obras de arte que o rapaz julgou serem velhas ou feias demais O bandido virou-se para a porta com o intuito de levar o tapete Neste momento os dois cachorros em posição de guarda na porta observavam seus movimentos com semblantes serenos porém preocupantes

Véi os dog acordaro Cala a boca truta os vizinho vão escutar seu burro Tá com medim dos dog que mané Ah num enche o saco cês dois são foda O bandido continua seu trabalho mas por intuição ou cautela vira-se novamente para a porta e os cachorros vagarosamente entreolham-se como se combinassem algo ou trocassem informações e voltam a olhar o bandido Véi vou dar pipoco nesses dog sinistro do caralho Já falei pra calar a boca truta porra O bandido prepara-se para puxar a arma mas enche seus olhos com a luz de um porta-retratos dourado imenso onde uma foto comportada de família adornava a tampa de um piano negro alemão O bandido vai até o objeto mas percebendo sua intenção o cachorro macho emitiu um som maligno e gutural Grrrrrrrrrrrrrr O bandido vira-se e solta o objeto paralisado de medo do cachorro negro de raça indefinida e tamanho admirável O bandido encarando o cachorro resolve pegar um vaso que julga pelo seu medíocre conhecimento ser chinês porque rico sempre tem vaso chinês porém aquele era egípcio Ao encostar no vaso a cadela emitiu o mesmo som de seu companheiro Grrrrrrrrrrrr O bandido enfurecido virou-se gritando Seus féladaputa do carai O homem saca a arma e descarrega todas as balas nos dois cachorros que sem o menor sinal de ferimento permanecem na mesma posição de guarda Véi Véi desce aqui carai esses dog são filho do capeta to vazano sério Já falei pra calar a boca seu bebum filho de uma puta nunca mais te trago pra correria Os dois bandidos que ocupavam o andar superior descem as escadas com duas sacolas cheias ao encontro do terceiro amigo que apavorado escondia-se sob o sofá antigo no centro da sala Sai daí porra puta que o pariu você tá foda hoje Véi te juro desci bala nos dog e nada Ele chorava Um dois três tapas na cara Para meu para caralho você tem mira ruim tá bêbado e tá enchendo o saco nunca mais te trago simbora daqui porra E você se ligou na função Aham peguei um monte de baguio massa Tá Os três bandidos saem pela porta Os dois cachorros viram-se apenas para observá-los     
Quando os três bandidos alcançaram o fim do jardim um deles olhou para trás com escárnio e zombou do colega Viu otário ói lá os dog de boa deitado na porta Os três viram-se para olhar os cachorros e riem todos juntos inclusive o terceiro porém sua risada era nervosa e aflita Quando viraram para escalar o muro os dois cachorros fantasmagoricamente apareceram na frente deles Com apenas uma patada o cachorro macho arrancou o coração do primeiro bandido ainda pulsante com veias descontroladas espirrando sangue em seu outro colega que também com apenas uma patada da cadela teve toda sua coluna arrancada desde o pescoço até o cóccix O terceiro bandido já galgava a metade do muro quando os dois cachorros entreolharam-se com cumplicidade tal como se decidissem com quem ficaria a prenda de carnaval Pularam os dois e agarraram-no cada um em uma perna Chegando ao chão rasgaram-no ao meio pelas pernas e arrancaram-lhe os olhos com as unhas enquanto ele ainda admiravelmente emitia seus últimos gemidos O quarto bandido que estava no carro escutou os gritos medonhos e fugiu dado o tamanho do berro do terceiro larápio enquanto era esquartejado talvez da pior maneira possível Os cachorros esperaram que o bandido agonizasse lentamente até a morte e arrastaram os três corpos até um buraco no fundo do jardim onde já se encontrava o corpo de uma mulher moça vestindo um uniforme Enterraram os quatro com rapidez e facilidade lavaram as patas e os pelos no chafariz do jardim e voltaram à frente da casa onde dormiram até a chegada da família

Quando a família atravessou o portão com o carro o pai que estava de janela aberta parou O homem saiu de dentro do carro farejou o ar e arqueou as sobrancelhas Tem sangue aqui fiquem no jardim tem algo errado O homem anda até à porta da casa põe a mão sobre o dorso do cachorro macho e pergunta ao animal Pai está tudo bem por aqui É filho a gente teve uns contratempos A cadela resmunga Filho foram uns garotos sabe ladrãozinho só mas querido olha acabei engolindo um pedacinho de um deles você tem um antiácido lá dentro estou com uma azia Querida venha cá cuidar da mamãe entrem em casa e vão dormir Vocês dois se machucaram está tudo bem Sim sim tudo tranquilo Tranquilo papai é Lua Nova o que deu em vocês Ah esses remédios pra pressão são fortes né me deixa todo embananado quando vi já tava virado lobisomem Mas cadê o Luís Henrique



Papai papai O filho menor surge correndo de quatro pelo jardim com um fêmur na boca Olha o que eu achei Tira isso da boca moleque bandido tem doença mas que merda a gente sai pra uma festinha no Curitibano e dá nisso deixa isso aí na grama e sobe lavar essa boca menino Calma filho eu e sua mãe já resolvemos tudo Ah papai sério olha quanto sangue no jardim no muro caramba o que a gente vai falar pra Donizete quando ela aparecer de manhã pra limpar a casa É na verdade filho acho que a gente vai ter que contratar outra empregada Ah não acredito mas não é possível não dá pra confiar em mais ninguém

O avô e o pai permanecem silenciosos observando o jardim e os vestígios do recente e insuspeitável crime Papai será que os vizinhos ouviram alguma coisa Filho a gente está no Jardim Los Angeles aqui ninguém tá interessado a não ser no próprio umbigo É tem razão Filho deixa eu te falar O que pai Você acredita que um deles teve a audácia de me encher de bala no peito sem eu ter feito nada Sério papai Pois é pra você ver  Sabe pai...odeio gente que maltrata animal.

Agradecimentos: para Daniel Sérgio e Elis Buquera pela pesquisa e ideias mirabolantes respectivamente.  


Paco Steinberg 
Nasceu em 1979. Bacharel em Letras pela UFPR, tradutora, crítica de arte, bicho urbano. Gosta de fumaça, solidão, polêmica, observar humanos e piadas infames. Sua cor preferida é o sangue. Tem medo de aranha, de escuro e de gente muito feliz. Autora dos livros Persona (2003), Vem Cá que Eu te Conto (2009) e Jack & Bob (2010). Inspiração: rodas de conversa no café com muitas risadas e sustos. Método de escrita: atrás da porta.
Seu quarto: omundopolemicodapaco.blogspot.com
Seu escritório pulp dump anticult: estacaoliteratura.blogspot.com
Troca figurinhas com escritores tupis todo dia 19 em: www.manufatura.blogspot.com


4 comentários:

  1. Muito bom, Gi! Gostei muito da história e, de verdade, não imaginei esse fim... Surpreendente! E eu também odeio gente que maltrata aminais... rsrsrs!

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  2. Quero mais!!! Mais mais mais!!!

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