7 de ago. de 2015

Mãe da Lua

Conto: Eduardo Capistrano
Ilustração: Daniel Gonçalves


Somos os únicos habitantes desta casa decrépita. Eu e meus filhos. Eles bicam meus seios, e sorvem os filetes de sangue, apenas o suficiente para lhes dar força para voar. Abro a janela por força do hábito, pois o telhado destruído inunda o sótão com a luz da lua cheia. Deixo que voem na noite, que visitem os dormentes em seus leitos, devorem seus sonhos, e me tragam despedaçados anseios, cacos de segredos, medos esmagados, para que eu também sacie minha fome...

30 de jul. de 2015

A Maldição da Mula

Conto: Maurício Fregonesi Falleiros
Ilustração: Sheilla Liz



A batida veio do sótão. Ele não deu a mínima. Outra batida. Continuou imóvel. A terceira batida o deixou puto da vida. A quarta fez o homem levantar do sofá. 
Parou em frente a porta do sótão. Ouviu outra batida – “Puta que o pariu.” Chutou a porta para abri-la. Foi o suficiente. Era conhecido como Rob “La Mula” Romero nos antigos campeonatos locais de lucha libre.
Procurou o interruptor. A luz se acendeu antes que sua mão encontrasse o botão – “Mas que porra é essa?” 
Mais uma batida. Vinha de uma caixa de madeira. Pegou o pé de cabra encostado na parede. Bateu seis vezes com o pedaço de ferro no cadeado. Com a mão esquerda levantou a tampa. Dentro, apenas o uniforme cor de chumbo de La Mula. 
Sentiu uma mão pesada pousar no ombro. Desvencilhou. Desferiu nove ou dez golpes com o pé de cabra em direção àquele – ou àquilo – que o tocou. Não sentiu impacto algum nem ouviu qualquer ruído – “Maldita erva barata.”
“Você sabe que não pode me tocar, Rob.” 
Romero soltou o pé de cabra – “Você deve estar muito na seca pra me procurar depois desse tempo todo. Faz o quê, quatro anos desde a última vez?”
“Cinco. E eu não sou de deixar dívida pra trás.”
“Já deve ter achado alguém pra ocupar meu lugar.”
“Quem tem que achar esse alguém é você. Vamos acabar logo com isso, Rob. Você sabe que não sou exigente, qualquer uma serve. Inclusive a sua.”
“A minha não vale muita coisa, mas não estou em condições de barganhar agora.”
“Acho que algumas coisas do passado terão que ser desfeitas, então...”
“Não. Isso, não. Eu vou conseguir o que você quer.”
“Rápido, por favor. Não é algo fácil, eu entendo, mas já está ficando chato. A sua ou a de alguém que você me encaminhar, tanto faz. Mas tem que ser rápido.”
Nova batida. Essa veio da porta da frente. Conchita chegara para a faxina semanal.
“Soou o gongo, La Mula...”


2 de jul. de 2015

Barba ruiva

Conto: Diego Fortes
Ilustração: Francisco Gusso


Estou de pé. No sótão da casa. Minha casa? Sim, minha casa. Não tenho dúvida... Estou de pé no sótão fazendo o quê? Estou em minha cama. Ouço barulhos. Estalos que vêm de cima. Pantufas. Há um vulto na sombra. É um manequim. Não é um manequim! Está se mexendo! Faz sol. Estou no quintal. De pé. Vejo alguém que me olha da rua. Barba ruiva volumosa. Estou na rua. De pé. Vejo alguém que corta grama. É noite. Uma claraboia sem tranca. Múltiplos cortes. Sangro. Ele. Não sou eu quem sangra. De pé. Com uma faca vermelha na mão. A barba molhada. Não. Esta não é minha casa! Aconteceu de novo. 

15 de jun. de 2015

Comida rápida

Conto: Maíra Valério
Ilustração: André Ducci



Ao lado do Colégio Santos, perto da quadra de esportes do bairro. Sim. Do lado esquerdo. É lá que Soraia estaciona o carrinho. Uma moça baixinha, quase bonita. Muito calada, mas os olhos parecem já ter visto bastante. Faz o melhor cachorro-quente da cidade. Pode confiar, vou lá sempre. O quê? Não, nunca passei mal. A molecada vibra esperando ela chegar. A salsicha é meio durinha, cozida com um molho especial. Mais consistente, engancha nos dentes. Tem que mastigar bastante. O tamanho varia, não sei o porquê. Soraia nunca ri, só quando você pede pra ela fatiar o lanche no meio. É uma moça peculiar: confidenciou-me que estoca a matéria-prima no sótão de casa. Diz que conserva melhor. Pois é, não acabei de falar que ela era peculiar? Passa o dia ouvindo programa policial em um rádio velho de pilha. Ultimamente só rola notícia sobre os rapazes da região que estão desaparecidos. Ahn? É mesmo. Talvez ela esteja em busca de algum namorado perdido. Aparece lá. Ela dá pro gasto. E cozinha bem. Mas ontem ela não foi. Tenta amanhã.


11 de jun. de 2015

Casa Velha

Conto: Daniel Gonçalves
Ilustração: Raro de Oliveira


O acesso ao sótão ficava no quarto, onde eu dormia, quando passava o fim de semana na casa dos meus avós.
Eu deitava, cobria minha cabeça com o cobertor e tentava dormir antes de ouvir os passos descendo a escada. Raramente eu conseguia. A luz do abajur projetava na cama a sombra de alguém caminhando. Nunca tive coragem de espiar quem era aquele que vinha do sótão e saía pela janela.
Na última vez que dormi na casa velha, eu havia acabado de deitar quando minha avó entreabriu a porta do quarto, chamou-me e fez uma pergunta qualquer. Ao respondê-la, percebi que havia alguém atrás da porta, que se fechou antes que eu pudesse me esconder sob as cobertas. Fiquei sentado na cama, olhando fixamente para o vulto:
– Vóóóó! – gritei no auge da agonia.
O vulto aproximou-se:
– O que foi meu querido? Deite-se, você precisa dormir – parecia ela, porém sem os olhos. 




8 de jun. de 2015

Caetanos no sótão

Conto: Fabiano Vianna
Ilustração: Igor Oliver



No começo, quando os primeiros apareceram eu me assustei um pouco. Não é das coisas mais confortáveis do mundo topar com um Caetano passando pela sala em direção à escada do sótão. Alguns, de vez em quando, esboçam um bom dia, boa tarde, ou não. Mas nem todos. Os mais rabugentos até reclamam da altura da televisão. Munidos de violões, tranquilos e infalíveis – como Bruce Lee. Não sei como cabem tantos Caetanos lá em cima. A laje deve ser grossa. Ensaiam canções. E eu, que sempre gostei do silêncio. Pintar aquarela também não dá... Agora eles estão por todos os lugares. Não só no sótão. Na cozinha, no estúdio, sobre o criado-mudo do meu quarto, na geladeira. Devoram as bolachas, fazem café, comem as provisões. Estão pela casa toda. Aqui mesmo, ao meu lado. Acotovelam-se, apertados. Disputam os espaços restantes entre um e outro Caetano. São tantos que eu preciso pedir licença para ver a tela.

3 de jun. de 2015

Cecília

Conto: Rafael Pesce
Ilustração: Daniel Gonçalves




Pela pequena janela circular o sol adentrava naquele sótão. Minúsculas partículas de poeira trafegavam pela luz, como se estivessem sendo abduzidas para o mundo exterior. Uma cama, desnuda de lençóis e sem o ranger das precárias estruturas de ferro, estava localizada logo na entrada. Um pônei de madeira jazia, imóvel, no outro lado, sem ter mais com quem brincar. A caixa de música, que costumeiramente enchia o ambiente de alegria, trancava-se em solidão. As roupas, antes banhadas pela claridade e pelo vento, estavam esquecidas em um velho armário. Os brinquedos, jogados de forma aleatória, tornavam o chão irregular. Mas no centro de tudo estava ela, Cecília, abandonada pela vida e pela sanidade do pai, que a deixou na escuridão daquele baú.


 


27 de mai. de 2015

Intruso

Conto: Eduardo Capistrano
Ilustração: Isabele Linhares



Corre. Corre. A escada, sobe, rápido. Feche o alçapão. O baú, em cima dele. O homem está vindo. Onde se esconder? Nas vigas. Suba nas vigas. Um estrondo. Está batendo no alçapão. O baú aguenta pouco. Novas batidas. O alçapão escancara. O cano da escopeta aparece primeiro. Se esconda. Não tem como ficar ali pra sempre. Minha casa. O homem está em minha casa. Não consegue esquivar do facho da lanterna. Abre seus 2...4...6 braços, tenta assustá-lo. O tiro de escopeta arrebenta um dos braços longe. Agarra-o com os restantes. Fecha as quelíceras ao redor de sua cabeça. A lanterna o atinge do lado da cabeça. A coronha da escopeta. Um tiro no peito. Rasteja, vazando ícor, seis mãos esticadas para os ovos, na teia no canto do sótão, de onde pendia, ressecada, a família do homem.

22 de mai. de 2015

Breve história sobre a dor

Conto: Sheilla Liz
Ilustração: Raro de Oliveira



Quando fui raptada contava com treze anos. Aconteceu como num sonho, mas eu não estava dormindo. Fui jogada ali. Lugar escuro. Sótão da alma. Negros dias de navalha. Apenas eu e meu algoz. Solidão e dor. Gritar não adianta. Que tipo de gente era aquela sem vizinhos? De quantas maneiras é possível torturar alguém? E por quanto tempo? Anos.
Falta pouco agora, estou deixando o mundo. Último suspiro e o pensamento: Quanto mais morta melhor.

21 de mai. de 2015

Satanás no Sótão

Conto: Florestano Boaventura
Ilustração: André Coelho



Miniconto com tema sótão? Quatrocentos e setenta caracteres? Assim você me fode! De cara, me vêm a história de um vampiro que conheci – Nivaldo Bocaiúva se não me engano era esse o nome dele, que acabou dormindo mais tempo que o normal e ao acordar, a casa havia se transformado numa igreja evangélica. Dessas igrejas evangélicas de bairro, com cadeiras de plástico sabe? Aqui no Uberaba surgem cada vez mais, quase uma por quadra – essas pragas. E no momento do culto das 20h em que o pastor dizia: SATANÁS MAIS UMA VEZ DEBAIXO DOS NOSSOS PÉS, o Bocaiúva abriu o alçapão do sótão, exatamente encima do altar e gritou: DEBAIXO DO PÉ, O CATZO! EU TÔ AQUI ENCIMA MERMO E CÊS TÃO TUDO FUDIDO! E foi uma correria danada. A “crentara” saiu correndo feito louca, pisando umas sobre as outras, largando bolsas, bengalas, sacolas... E o pastor, que ficou paralisado olhando para o “djanho” em pessoa, acabou virando papá de vampiro. Hahah deve ter sido hilário. Mas o gosto deve ser uma merda!

20 de mai. de 2015

Revistas Proibidas

Conto: Raro de Oliveira
ilustração: Antonio Dias


O casamento era insuportável. Sua mulher transformara-se numa chata repressora cheia de regras. Cartas de amor, recordações de namoro, lembranças da animada juventude foram todas entulhadas no sótão. Pra lá ele recorria secretamente nos momentos de agonia, livrando-se por algumas horas daquela opressora. Naquele dia quando subiu ao seu templo secreto teve uma surpresa. A megera havia arrumado o sótão! Havia limpado, encerado, organizado tudo. Procurou desesperado por seus tesouros e não encontrou nada, principalmente suas revistas de mulher pelada! O que seria da sua vida sem suas punhetas solitárias? Levantou uma caixa que pertencia à megera e o fundo se rompeu com o peso. Lá estavam as revistas perdidas. Não só as suas, outras também, de homens nus avantajados, e nas capas o nome dela escrito à caneta Bic. Ouviu o gemer do degrau que levava ao sótão e na contraluz sua mulher lhe fitava com um olhar feroz. Se atracaram em uma luta selvagem, cheia de ódio. Caíram exaustos sobre as tranqueiras e fizeram um amor bruto, pornográfico e sujo no colchonete surrado e cheio de manchas da sua juventude.

19 de mai. de 2015

Medo de Sótãos

Conto: Fabiano Vianna
Ilustração: Simon Taylor



Eu sofro de um mal: medo de sótãos. O maldito espaço desocupado em cima de casa não me deixa trabalhar. Todos conhecem a fama dos sótãos né? Habitat de vampiros, fantasmas, surfistas e outras coisas pavorosas.
Me mudei faz pouco tempo. O corretor imobiliário não me falou deste aterrorizante vazio entre as treliças quando me mostrou a casa. Porra. Há meses que não consigo trabalhar. O som do nada domina meus pensamentos.
Não existe coisa pior do que isso. Nem mesmo as músicas da Paula Fernandes.
De vez em quando ligo para o técnico da GVT e invento um problema no sinal da internet só para que ele suba e conte o que (não) viu. É um alívio quando o técnico me diz que não há nada além de pó e fios. De vez em quando uma pequenina aranha-marrom.
Mas não resolve, porque basta o técnico colocar o pé lá fora para que o incômodo volte.  O sinistro som do vazio que não me deixa pintar.
Minhas aquarelas estão ficando horríveis por causa do sótão. Centenas de papéis (caros) desperdiçados.
Terei que fazer alguma coisa urgente. Transformar o sótão numa sala, talvez. Levar um sofá para lá. Será que um cômodo vazio com um sofá torna-se uma sala? Mesmo estando perto das treliças? Ou continuará sendo um sótão? Não sei, mas será ao menos uma boa vingança. Por todas as aquarelas que ele estragou.
E depois que resolver isto, ainda terei outro desafio ainda maior a enfrentar: a sacada!

14 de mai. de 2015

Rodada 7

RODADA 7: SÓTÃO

19/05 - Fabiano Vianna 1 (entregue) / Simon Taylor 1 (entregue)
20/05 - Raro de Oliveira 1 (entregue) / Antonio Dias (entregue)
21/05 - Florestano Boaventura  (entregue) / André Coelho (entregue)
22/05 – Sheilla Liz (entregue) / Raro de Oliveira (entregue)
27/05 - Eduardo Capistrano 1 monstro (entregue) / Isabele Linhares 1 (entr ilustr até dia 26/05)
03/06 - Rafael Pesce (entr conto até dia 25/05) / Daniel Gonçalves 1 (entr ilustr até dia 29/05)

??/?? - Daniel Gonçalves (entregue) / Raro de Oliveira (entr ilustr até dia 23/05)
??/?? - Marco Antônio Santos (entregue) / Zansky 1 (entr ilustr até dia 22/05)
??/?? - Raro de Oliveira 2 (treliças) (entregue) / André Lissonger 1 (entr ilustr até dia 24/05)
??/?? – Raro de Oliveira 3 (janela) (entr conto até dia 21/05) / Fabiano Vianna 1 (entr ilustr até dia 25/05)
??/?? - Daniel Russell Ribas (entr conto até dia 23/05) / André Ducci 1 (entr ilustr até dia 27/05)
??/?? - Raro de Oliveira 4 (gorila) (entregue) / Henrique Martins (entr ilustr até dia 28/05)
??/?? - Lielson Zeni (entregue) / Fabiano Vianna 2 (entr ilustr até dia 30/06)
??/?? - Santiago Santos (entregue) / Júlio Vieira (entr ilustr até dia 31/06)
??/?? - Fernanda dos Santos Ferreira (entr conto até dia 28/05) / Fabiano Vianna 3 (entr il até dia 01/06)
??/?? - Diego Gianni (entr conto até dia 29/05) / Isabele Linhares 2 (entr ilustr até dia 02/06)
??/?? - Carol Sakura (entr conto até dia 30/05) / André Lissonger 2 (entr ilustr até dia 03/06)
??/??- Eduardo Capistrano 2 telhas criaturas (entregue) / Daniel Gonçalves 2 (entr ilustr até dia 04/06)
??/?? -  Luísa Bonin (entr conto até dia 01/06) / Zansky 2 (entr ilustr até dia 05/06)
??/?? – Maíra Valério (entr conto até dia 02/06) / André Ducci 2 (entr ilustr até dia 06/06)
??/?? - Dragomir Kephas (entr conto até dia 03/06) / Gihad Hak (entr ilustr até dia 07/06)
??/?? - Diego Fortes (entr conto até dia 04/06) / Francisco Gusso (entr ilustr até dia 08/06) 
??/?? – Gustavo Acrani (entregue) / Simon Taylor 2 (entr ilustr até dia 09/06)
??/?? – Fabiano Vianna 2 (aquarelas) (entregue) / Igor Oliver (entr ilustr até dia 10/06)
??/?? – Raro de Oliveira 5 (naves) (entr conto até dia 05/06)  / Hafaell Pereira (entr ilustr até dia 11/06)- 
??/?? - Luiz Bras (entregue) / José Marconi (entr ilustr até dia 13/06)
??/??- Maurício Fregonesi (entr conto até dia 06/06) / Sheilla Liz (entr ilustr até dia 14/06)

25 de nov. de 2014

Noite de churrasco, farofa, fritas, aipim e charutos no Gina´s Beef e Mocó do Esley

Conto: Florestano Boaventura
Ilustração: Daniel Carvalho


Chovia na noite em que eu, Dragomir, Linhares e Lufus fomos até o Gina´s Beef a procura de um sujeito conhecido pelo apelido de “Lucélia Santos”.
Vou escrever o que lembro, resumindo algumas passagens para que este relato não se torne extenso demais. O objetivo principal é registrar a noitada.
Linhares tinha uma fotografia do cara num papel de impressora vagabunda jato de tinta, que molhou ao descermos do carro e deixou a imagem toda borrada. Uma bosta.
Ele mostrava o papel no balcão e os caras custavam a enxergar o rosto.  Lufus foi com ele, caso desse alguma merda. (Quem mexeria com um detetive com bigode texano e um cabra barbudo descomunal usando suspensórios?)
Eu e Dragomir pedimos um café na mesa e nos divertimos assistindo um show de strip-tease de uma stripper chamada “Sandrinha Lovecraft”. Ela possuía diversas tatuagens de monstros Cthulhus pelo corpo.
O Gina´s Beef é uma espécie de zona limítrofe entre vários mundos. Entre a Rua Saldanha Marinho e a Rua XV de Novembro. Na Cruz Machado. Um Buraco frequentado por todo tipo de criaturas – vampiros, lobisomens, abantesmas, zumbis, caça-recompensas, matadores, gárgulas, índios, ciclopes, androides, traficas, vagabundos.  Tudo o que há de pior numa cidade suburbana de quarto mundo.
De repente um deus-nos-acuda. Gritaria. Várias pessoas se levantaram e vi um braço voando no meio do povo. Jorro de sangue borrifando no velho ventilador de teto. Uma senhora gorda correndo com os peitos flácidos pra fora, tentando segurar o tomara-que-caia com uma das mãos.
Um outro sujeito, usando gorro de lã se aproximou de nós e mostrou uma besta:
– Florestano Boaventura?
Dragomir voou no pescoço dele. Cravou os dentes. O malaco ainda conseguiu atirar antes de cair e a flecha com ponta de prata ricocheteou na parede ao meu lado e na adjacente, fincando no meio do boné do Miami Heat de um calango que bebia cerveja no balcão como se nada acontecesse.
O clima estava propício para um charuto. Tirei um do bolso do paletó e acendi.
Enquanto o pau corria solto no bar.
As putanas tatuadas quebravam cadeiras na cabeça de outros carcamanos e vampiros que juntaram-se à porrada. (Bastava uma faísca para tudo pegar fogo).
E os churrascos – bifes com arroz, farofa e fritas continuavam a sair da cozinha rumo às mesas. Os shows também não cessavam. Depois da “Lovecraft”, foi a vez de um trio de gurias fantasiadas de X-Men – Tempestade, Mística e Kitty Pride.
Lufus e Linhares apareceram. “Linhaça” com a cabeça do “Lucélia Santos” embaixo do braço, como se fosse uma bola de futebol.
– Podemos vazar. Cadê o Drag?
Dragomir levantou. Sua cara, pescoço, camisa era puro vermelho sangue. Havia sobrado pouco da carcaça do cara que atirou em nós, no chão.
– Opa! Estamos indo?
Enquanto isso, nas mesas ao lado, sujeitos de todas as estirpes se atracavam em pedaços carnes mal passadas gotejantes.

+  +  +

Lá fora ainda chovia pacas.
Do outro lado da rua, um telão digital passando cenas de uma versão Guerra dos Tronos pornô, com uma Daenerys suburbana dando para vários guerreiros de reinos diversos e depois trepada nua num dragão gigantesco.
Linhaça meteu a cabeça do “Lucélia” numa caixa de papelão e jogou no porta-malas de seu Santana Quantum.
Meu charuto ainda estava em brasa e como Linhares grila que eu fume dentro do carro, sugeri que bebêssemos uma gelada num bar em frente do Gina´s, chamado Mocó do Esley. Eles toparam.
A cerveja estava bem gostosa e foi boa para esfriarmos os ânimos.
Na TV passava um filme serelepe. Pornochanchada. Melhor do que futebol.
Dragomir deu uma limpada do sangue no banheiro.
Pedimos aipim frito com bacon.

+  +  +

Esta foi só uma das noites regadas a churrasco, farofa, fritas, aipim e charutos no Gina´s Beef e Mocó do Esley.
Já eram quase três da manhã quando saímos.
Linhaça deixou a caixa de papelão com a cabeça do “Lucélia Santos” na porta lateral do Cemitério Municipal e mandou um SMS com o texto: “pacote entregue. está no local. aguardo restante do depósito”.
Até hoje não sei no que o Linhares trabalha.
Fomos embora, rumo ao bairro Uberaba, ouvindo um programa de clássicos dos anos 80 no rádio – Ritchie, Yahoo, Nenhum de Nós, Titãs, Blitz...


Florestano Boaventura
Editor de uma revista de cordel, com temática horror, chamada LODO. A publicação circula  pelos becos de Curitiba desde 1948.

Daniel Carvalho

flickr.com/photos/ilustroide

22 de out. de 2014

Finado

Conto: Diego Gianni
Ilustração: Gustavo Ramos

É o dia em que as flores vivas são deixadas rentes aos mortos. Nesse dia, aqueles que ainda respiram visitam o que sobrou dos seus entes. Em alguns casos, nem o pó resta e as lembranças seguem firmes. É dia de finados.
Antero se preparou para a visita. Usa a gravata que sempre foi a preferida dela, como se isso ainda tivesse alguma importância. O cemitério fecha às cinco da tarde. Restam 15 minutos e a esposa ainda não veio. Antero espera.
Um jovem ao seu lado puxa assunto por puxar.
- Veja que flor linda minha mãezinha me trouxe. Ela sempre teve jeito com essas coisas.
Antero dirige um olhar melancólico à flor e automaticamente espia o próprio túmulo.  Ninguém mais lembra do Antero, somente a esposa. E faltam 15 minutos.
- O senhor – pergunta o rapaz. – não recebeu visita?
- É claro que recebi. – mente com o cacoete de quem morreu faz poucos anos. – Era um tal de gente que não parava mais. Muita ladainha pro meu gosto.
O garoto de vinte e tantos anos olha triste para a lápida vizinha, desprovida de flores e velas. E chega mais uma visita. O jovem sorri.
- Este fez faculdade comigo. Gente boa. Gente muito boa.
O ex-colega fecha os olhos diante do túmulo. O rapaz não ouve, mas entende. É saudade. O amigo volta a si, puxa um cigarro do bolso, acende, traga, oferece com um sorriso triste.
- Aceita, Nelsinho?
O moço sorri, acha graça. Antero pigarreia e tenta sentir o cheiro do tabaco.
- O que eu não daria por mais um desses. – diz o velho e coça a garganta.
Um gato cruza o corredor das lápides e arregala os olhos para Antero, saindo em disparada. O coveiro passa avisando aos visitantes que os portões vão fechar.  Antero dá de ombros.
- Foda-se. – resmunga. – Um dia ela estará aqui, do meu ladinho. 

(...)

Ruth seguiu a vida. Feliz com o marido? Era, mas este também era, e como dito, a vida seguiu. A viúva tem fé de que as pessoas de fato vão para um lugar melhor e aqui fica só o corpo, a ‘casca’, a roupa.
Por isso preferiu ficar na cama. E não sozinha. Osvaldo acende um cigarro, o que a incomoda.
- Meu marido ia fumar na varanda. – murmura.
- Quem? – fala Osvaldo, ainda anestesiado pelo efeito do orgasmo.
- Ninguém. – Ruth silencia. Sente então um calafrio que vem de dentro, um gelo que não saberia explicar. Cruza os braços, leva a manta até o pescoço.
- O que eu não daria por uma boa tragada. – diz o finado ao pé da cama, sem se fazer ouvir. Cai uma nesga de cinzas sobre o lençol manchado.
Ninguém mais lembra do Antero.


Gustavo Ramos

Diego Gianni
Nasceu em 1982, na capital de São Paulo. Mudou com a família para Curitiba ainda na infância e começou a escrever peças de teatro em 2.004. No período de seis anos, escreveu mais de cinquenta peças teatrais que foram apresentadas por diversas companhias de teatro em vários estados. Ganhou prêmios de melhor texto conferidos pela Cena Hum (Academia de Artes Cênicas) e também pela Fundação Cultural de Curitiba. 
Tem contos publicados em jornais e revistas e posta textos semanalmente em blog´s e sites, tais como tracasemcedilha.blogspot.com ; acontececuritiba.com.br. Lançou o livro "Dores crônicas que nem te conto". Atualmente cursa jornalismo.


2 de out. de 2014

Chaves Negras

Conto: Diego Fortes
Ilustração: Zansky

-  Argh! O hotelzinho em que eu me instalo é um muquifo. O colchão encardido encostado na parede amarelada é mais velho do que eu. Na televisão sustentada pelas teias de aranha do suporte enferrujado só pegam 3 canais: o primeiro com chuviscos e fantasmas, o segundo vem com o áudio de um terceiro e o último é um canal pornô com filmes dos tempos em que depilação era luxo... Preciso deste lugar apenas para dormir e guardar as minhas roupas.

-  Bam! Caio pranchado na cama. Estou exausto. Mal consigo desligar a TV e pego no sono. Não sei se foram os sons desconexos vindos do aparelho, mas tenho sonhos esquisitíssimos. Sonho que caminho de noite por um cemitério em frente ao mar, próximo a um bananal. Sou escoltado por um grupo de esqueletos putrefatos, mas muito educados que me conduzem pelo caminho tal como fossem lanterninhas num cinema. Há uma névoa de gelo seco de filme de terror que flutua por cima das cruzes e das lápides. Dois esqueletos apontam para uma delas. Leio o nome: "Lucky Strike” e embaixo uma inscrição: “Nós bem que te avisamos, filho da puta”. Quando acho que não posso me assustar mais, uma enorme mão rompe a terra sob meus pés e me derruba. É o próprio Juraci Esmaga-Crânio saindo da minha tumba com todo tipo de bicho asqueroso saindo do buraco do olho vazado que eu lhe dei. Ele grunhe, se arrasta por cima de mim e segura minha cabeça inteira com as mãos…

-  Aaaaahhh!!! Acordo suado, preciso de um banho. Frio do cacete! Esse chuveirinho do banheiro não esquenta. Não tem box - um banho quase inunda o quarto todo. A toalha, além de secar, serve como esfoliante. A janela não abre até o fim. E tenho até medo de tocar nessas cortinas. Preciso sair daqui e ir para um ambiente menos infecto. Para onde? Me lembro dos esqueletos me mostrando o caminho. Me visto e decido ir para o Chaves Negras.
-
-  A senha?, o rapaz magro de óculos escuros sentado numa baqueta me pergunta. Do que tem medo aqueles que já viram o Diabo?, digo a ele. Esperto - a senha é uma pergunta. Uma pergunta sem resposta, inclusive. “Você pode entrar, ele me autoriza. Passo pela portinhola de mausoléu atrás dele - o rapaz me lembra um dos esqueletos do sonho. O Chaves Negras fica numa galeria comprida onde, lá bem no fundo, funcionava um cinema. A galeria abriga uma série de estabelecimentos sossegados: escritórios de contabilidade, farmácias de manipulação, lojinhas de produtos esotéricos fedendo a incenso, etc. Nem desconfiam que vizinham com um lugar escondido. Quando a porta se fecha, tudo fica escuro e você deve apenas seguir em frente sem conseguir ver um centímetro na sua frente. Depois desses passos cegos, alcança-se uma cortina de veludo que esconde um salão de iluminação aconchegante. Trata-se de um clube de cavalheiros. Eu sei que a nomenclatura soa mal, mas não se trata de uma casa de tolerância. Não. O Chaves Negras é uma charutaria exclusiva e secreta.

-  Quem é vivo sempre aparece! Alcebíades caminha em minha direção com os braços abertos. Quais são as novidades, Lucky?” “Ah, o de sempre... chantagens, assassinatos, prostitutas, sabe como é...”, digo. “Sei bem.O lugar reunia vampiros, lobisomens, adivinhas, detetives e outros tipos de seres. Eram bem-vindos aqueles que buscavam um espaço que não existia no mundo, mas em outra dimensão. “O Isidro está por aí?”, perguntei. Quem?” “Eu preciso falar com ele, com licença.” Ok, ok, a gente se esbarra por aí... No canto mais escuro do Chaves Negras, depois das mesas, do balcão do bar e da última fumaça do último cliente, encontro meu maior professor.

-  Isidro? “Lucky?” Toco sua mão. Isidro é cego. Nem sempre, mas é comum, o encontro sentado meditativo neste Q.G. de figuras excêntricas. Cognac na mão, permanece em silêncio com a postura impecável. Isidro não enverga. Deve ter uns 500 anos, sei lá. Sei muito pouco sobre ele. Quase nunca fala sobre si próprio. Apenas senta, escuta e, se for solicitado, aconselha. Nunca falha. “Nunca más vi tu cara feia por acá, Mr. Strike.” - Isidro brinca em portunhol. “Boa.” “Achaste?” “Achei o quê?” “Buena, mi piadita?” “Achei.” “Yo hice la misma piadinha sin graça en las últimas três vezes en que nos encontramos, Lucky.Fez? Sí, y en todas las veces, dijiste: Buena. Tu mente está turva. ¿Qué pasa contigo, mi amigo? Conto-lhe sobre a gangue dos lixeiros chantagistas, a prostituta assassinada no apartamento do cliente, o Juraci Esmaga-Crânio tentando me matar, conto até do sonho no cemitério
-
- “¡Joder! ¡Que fuerte! Pero la respuesta es muy simples...Observo seus finos cabelos brancos se movimentarem enquanto ele fala pausadamente. Simples? “Sí... Tienes que hacer lo que ellos hacen.Fazer o que eles fazem? Hacer lo que ellos hacen...Claro! Foi um erro tentar confrontar o Juraci, eu deveria ter feito o meu trabalho: investigar. Não sei onde eu estava com a cabeça! Estava com a cabeça entre os seios de Melinda. A reaparição daquela mulher realmente me deixou com o pensamento nublado. Ah, Melinda... quantos erros cometi com você...

-  Ops! Crashhh!!! Na parte mais iluminada do estabelecimento, Alcebíades derruba um copo de uísque no chão. Todos olham na mesma direção. O odor etílico se espalha pelo ambiente enfumaçado. Olho para o lado e Isidro não está mais ali. Ele faz dessas. Dá seu conselho certeiro e esvanece como o cheiro do uísque derramado. Sento em seu lugar. Acendo um cigarro. Peço uma cerveja escura. Conto o dinheiro. Não dá. Vou até o Alcebíades: “Tô meio curto de grana hoje, será que dá pra você acertar pra mim? Fico te devendo. Fica tranquilo, Lucky. A gente se esbarra por aí”, ele me diz com um sorriso embriagado. Gracias!, respondo eu com resquícios do meu encontro con el maestro.

- “Aê, tio, que tá fazeno aí? Fica quieto, moleque! Quem é você? “Eu sou o cara que você vai pagar pra ficar quieto.Putamerda, às vezes, parece que a vida é uma tremenda chantagem. Um chantageando o outro e assim por diante num círculo vicioso. O que faz o mundo girar não é o amor ou Deus ou qualquer coisa bela. É sempre a chantagem. Me ame que eu te protejo.Me ame ou você vai para o inferno. Me paga aí, senão eu saio gritando, ele me diz. Dou cincão pro lazarento e ele sai correndo com o dinheiro da minha passagem de volta. Vai ser uma longa caminhada até o Centro. É uma situação irônica: estou eu, investigando uma gangue de chantagistas, e sendo chantageado por um menino do Parque Stravinski - para onde eu voltei para investigar o lixo do Esmaga-Crânio.

-  Isso é nojento! O lixo. Aquilo de que não precisamos mais. Aquilo que não queremos mais. Aquilo do que nos desfazemos. Ou achamos que nos desfazemos. Pois, enquanto o seu lixo ainda é identificável como seu, ele diz muitas coisas sobre você: seus hábitos alimentares, o jornal que você lê, se você fuma, se você paga suas contas em dia, se você contrata prostitutas no fim-de-semana em que a sua mulher foi para a praia (como no caso do meu cliente). Entre os resíduos domésticos da lixeira atrás do esconderijo do Juraci, eu acho: curativos ensanguentados, dezenas de embalagens de Cup Noodles, uma garrafa de pinga de banana, vidros de café solúvel, adoçante... - até agora nada demais, a não ser que se ele não começar a cuidar melhor da alimentação, vai ter uma baita gastrite em breve. Mas então, estão lá: um recibo de estacionamento perto do parque (ele tem um Chevette marrom), várias notas fiscais do pedágio para as praias (ele vai para lá com frequência), que mais? Espera aí: a garrafa de pinga de banana... Antonina! O brutamontes tem ido a Antonina receber instruções e pagamentos do chefe desta gangue de lixeiros! Há também uns outros papéis dobrados... São letras de músicas religiosas. Deve ser um desses pastores de uma dessas igrejas de Antonina, mas qual? Lá tem mais igreja do que cachorro! Leio mais atentamente o papel: J.E.O.C. - Igreja Jesus É O Cara!

-  Claro! Agora tudo se encaixa: Amanda, com aquela conversa de que o Juraci a havia ajudado a se livrar das drogas - isso é papo de igreja. Não sei qual é a situação do meu cliente nesses dias, mas vou precisar de uma ajuda financeira para ir até o litoral. Levo quase duas horas para voltar a pé do parque até o meu hotel (se é que ele merece esse nome).

-  Ai, desculpa! Abro a porta do meu quarto, acendo a luz e encontro uma camareira vestindo uma das minhas camisas. Desculpa, ai, que vergonha... eu achei que o senhor só voltaria bem mais tarde... quer dizer, eu sei que eu não deveria ter provado as suas roupas, mas é que aqui no hotel nunca tem ninguém tão bem vestido como o senhor e, além do mais, essa roupa é tão perfumada...Não consigo dizer nada, ela desatina a falar descontroladamente. O que um homem como o senhor tá fazendo num hotel como esses? Ai, desculpa, não é da minha conta... Como é que o senhor mantém essas roupas tão bem guardadas? E tão cheirosas... Só consigo rir da ansiedade dela. O senhor é tão cheiroso...Ela me olha. Com a cabeça baixa, me espreita como um animal acuado. Ela é baixa, pele morena, lábios carnudos, cabelo encaracolado. Linda. Boa demais para ser verdade, inclusive. Eu vou deixar tudo como eu encontrei, juro!Ela passa a desabotoar a camisa. Ela usa um sutiã rosa-claro daqueles com lacinho no meio. Seus seios parecem firmes. Seu corpo é atlético. Olho tempo demais para o seu físico rijo. Ela nota meu interesse. “O senhor tá me achando bonita?Ela se aproxima...

-  Alto lá!, eu digo com firmeza. Ok, talvez não com tanta firmeza... Vacilo um pouco, mas a detenho. Aquilo tinha que parar naquele instante. Nos últimos meses, todas as mulheres que tiraram a roupa para mim, tentaram me matar. Verifico o quarto todo: debaixo da cama, dentro do armário, atrás da porta do banheiro. Olho pela janela, nada. Tirando algumas camisas esticadas em cima da cama, minha mala está como estava antes. Ela me olha assustada. “Não roubei nada, não...” Eu sei que não, digo. Não é isso que me preocupa... Como é seu nome? “É Kelly. Mas, por favor, não fala nada pro gerente. Eu não fiz por mal., implora ela agora só de saia e sutiãEu preciso desse emprego pra me manter, não sou casada, nem nada, tenho mãe em casa...Pensei numa solução prática:


- Tira a roupa! Falo com a cara mais séria do mundo. Ela sorri. Meu objetivo era conferir se ela não trazia nenhuma arma escondida, mas ela faz disso um show. Com o olhar fixo para mim, abre o zíper da saia. A calcinha azul de algodão não combina com o sutiã. Acho graça no trejeito pueril de Kelly. Abre o sutiã devagar. Baixa a calcinha até o joelho e empurra até o chão com a sapatilha que ela não tira. Tento manter a concentração: Tira a sapatilha também. “Quer que tire? Tem gente que gosta que fique... Você é garota de programa? “Não... Só gostei do teu cheiro mesmo, das tuas roupas... E você? Você gostou de mim sem as minhas? Ah, eu não aguentei, já eram meses de antecipação e, na hora, sempre alguém me dava uma porrada. Ela esticou seus braços morenos em volta do meu pescoço e passamos mais de uma hora nos beijando. As outras horas foram derivações bastante interessantes desse beijo inicial. Foi fenomenal! Mulher pequena... Fácil de erguer. Enfim, foi um dia produtivo! As coisas estavam começando a melhorar. 

Diego Fortes
É ator, escritor, tradutor e diretor. Nasceu em 1982. Bacharel em Comunicação Social, tem passagens pela Escola Técnica de Formação de Atores da Universidade Federal do Paraná, pelo Ateliê de Criação Teatral e entre diversos outros. Fundou A Armadilha - cia. de teatro em 2001, companhia pela qual montou os espetáculos Marias (2004), Café Andaluz (2005), Os Leões (2006), Bolacha Maria - um punhado de neve que restou da tempestade (2008) e Jornal da Guerra Contra os Taedos (2009). Em 2010, escreveu e dirigiu - com a colaboração da artista mineira Grace Passô - a peça Os Invisíveis, pela qual recebeu a segunda indicação à Melhor Direção do Troféu Gralha Azul. Mantém contato colaborativo com autores de outros países latinos.


Zansky

2 de set. de 2014

Passaúna

Conto: Detetive Linhares
Ilustração: Berje



Todo mundo na casa vendo filme e fumando maconha. Todo mundo sossegado quando alguém dá três batidas no vidro da porta de entrada da casa.

- Fica todo mundo quieto! Deve ser a velhota aí do lado.

Diz Bruninho que é o dono da casa.

- Todo mundo se esconde.

Grita baixinho e rindo a gostosa da Anita que não quer que ninguém saiba que ela está chapada.

Só que ninguém quer ver a velha. Ela tem uns noventa anos e manquitola pelo bairro apoiada numa bengala de madeira e quando ninguém atende a porta ela chora. A velha é bizarra.

não consigo respirar

- Porque não inventam um remédio que nocauteie a dor? Talvez a morte seja esse remédio. Talvez a morte seja um bom remédio pra esses velhos!

Filosofa Baltazar de dentro do armário.

o peito apertado

- Vocês deviam ter um pouco de pena da velhinha. O que que custa dar uma mão?
- Vai lá então, Robin Hood!

Noé estende bem o braço pra fora do banheiro e faz aquele sinal com o dedo do meio. Ele detesta quando o Zé o chama de Robin Hood. Pelo jeito ele está mesmo incomodado com a situação. Todo mundo se escondendo e ele vendo seus amigos fugindo do que ele imagina ser apenas uma tia qualquer que precisa de ajuda. Mas ele também não teve a capacidade de se mover. É outro pau no cu que só sabe reclamar e também não faz nada. Está lá escondido meio ressabiado e vai ficar no banheiro sem se mover pensando em coisas boas pra ver se o inesperado acontece.

PLAW!

Um barulhão vindo da porta.

Todo mundo bota as cabeças pra fora dos seus esconderijos. Um corpo entra na casa desabando pela porta e quebrando o vidro. Bem aos pés das bicicletas que estão amontoadas ali na entrada. E tudo em câmera lenta. O corpo que cai é muito magro e flutua na queda. Parece um travesseiro de penas de ganso estourando na nossa frente. O vento entra logo em seguida e levanta os cabelinhos. A boca aberta. Os olhos fechados. Os braços são dois tentáculos se abanando perdidos no espaço. A bengala vai dois metros à frente e quase acerta o Santana que está no sofá com a gostosa da Anita. O vestido preto com rendas esvoaçando. Os sapatinhos quicando e fugindo dos pés como se sapateassem no ar. E a cabeça branca quicando três vezes no assoalho de madeira antes de rachar na têmpora direita e inundar o chão de sangue.

- Ela tá morta?

Pergunta Baltazar.

- Não. Ela está invadindo a casa e vai nos assaltar.

Responde Santana.

- Ou isso também.

Grita Noé lá do banheiro.

- Caralho, gente! Tem uma velha morta dentro da minha casa! O que a gente vai fazer?
- Pelo menos ninguém viu, né?!
- A Anita tá certa.

Concordo.

A Anita tem medo que sua mãe descubra as merdas que ela faz e a mande de volta pro colégio interno.

- Você tá com medo!
- Cala a boca, Zé! Me ajuda com o corpo! Alguém pega uns panos na lavanderia e vai secando essa meleca antes que minha mãe chegue e pegue a gente fumando maconha com uma velha morta na sala e o assoalho pintado de sangue.
- A gente tem que enterrar essa velha.

Diz a gostosa da Anita.

Todo mundo olha pra ela. Aí ela emenda logo em seguida

- E se a gente enterrasse essa velha lá no Passaúna?

Puta merda! Penso. Eu sou o único que tem carro e a velha vai viajar daqui até lá no meu porta malas.

- Porra, Anita! Enterrar a velha?! Você tá louca?!
- Dedé, não fala assim com ela.
- O namoradão vai defender a namoradona?! Logo você que sempre foi primeiro eu, depois os amigos, depois as namoradas!

Todos riem. Menos o Santana e a Anita que se olham e se abraçam. Ele são o mais novo casal da galera. Ele diz que gosta dela. Ela também. Mas na real o que ele gosta mesmo é dos peitinhos dela. Eu também. E acho que todo mundo também gosta. Eles são do tamanho de uma laranja madura. Cabe certinho um em cada mão. Foi o que ele disse depois de pegar pela primeira vez. Saiu falando pra todo mundo pra contar vantagem. Só ele não sabe que todo mundo já pegou a gostosa da Anita.

- Bem teu tipinho, né Santana?
- Agora vai bancar o namoradão!
- Hahahaha!!!
- Alguém me ajuda aqui com a velha

TRIIIMMM!!!

Todo mundo se arregala com o barulho da campainha. O corpo da velha cai pela segunda vez.

- Merda!
- Vai alguém lá na frente ver o que é!
- Porra, vai você, Zé!
- É, porra, você não tá fazendo nada aí!
- Caralho! Estamos fodidos!
- Puta merda que zona!
- Tira a mão daí, Santana!
- Daê galera!

Silêncio. Todo mundo olha pro buraco que a porta deixou.

- Uauuuu! Que é isso? Vocês pegaram um peixão e não me chamaram?! Safadinhos?!

O Gigante vai entrando. É muito comum isso entre nós. Um entrando na casa do outro sem pedir licença e fuçando na geladeira e mexendo nas coisas. Crescemos assim.

- Essa velha caiu morta aí pela porta faz meia hora.
- E porque vocês estão com ela aqui ainda?
- A gente vai levar o corpo no Passaúna.
- Pra que? Aquela porra já é um cemitério. Porque a gente não queima dessa vez?
- Porque não foi a gente que matou.
- E qual a diferença? Se a polícia chegar aqui agora vocês vão em cana.
- É verdade.
- E o que a gente faz?
- Vamos cavar um buracão e encher com aquelas coisas de pinheiro. Depois a gente taca gasolina. Aí jogamos umas madeiras velhas que tem aí na garagem por cima e ainda assamos uma picanhota. Pronto!
- Será?
- Pra que complicar, Zezé?
- Meu nome é Dedé.
- Foda-se você e esse teu nome de merda. Pega lá aqueles negócio do pinheiro e você aí vai cavando e não olha pra trás.

Gigante filho da puta. Tenho certeza que o Dedé pensou isso. A galera começa a se agitar e a fazer as coisas que o Gigante mandou. O Gigante vai pra cima da Anita e começa a dar uns amassos nela. O Santana não gosta muito e vai pra cima dele com a pá. Acho que nesse momento está passando pela cabeça dele dar uma pazada certeira no meio do crânio do Gigante. O grandão olha pra trás e o Santana fica paralisado. Não vai conseguir terminar o que pensou. Sorte dele. O gigante ia catar a pá da mão dele e ia quebrar ele no meio. Rio por dentro. Ia ser engraçado ver o Santana apanhando por causa da gostosa da Anita. Quando ele conhecer ela de verdade vai ficar de cara. Olha lá. Ele está paralisado de medo. Acho que vai ficar assim por uns minutos. Enquanto isso eu o Noé e o Baltazar fomos pegar madeira e aqueles negócios de pinheiro pra fazer o fogo. Nisso o resto da piazada já tinha feito o que tinha de fazer e estavam gritando lá no buraco. Voltamos correndo. A gente chega e a gostosa da Anita está dentro do buraco com a velha. O corpo dela parece que tinha sido dilacerado por um lobo-mamute. Ela está toda arreganhada e sangrando muito. Está morta. O Gigante não está mais ali. Sumiu. O Santana está com a pá apontada pro céu do mesmo jeito que ele ficou quando a gente saiu. Completamente congelado. Parece um zumbi. O negócio é encher o buraco com toda a madeira e cobrir com gasolina e tacar fogo o mais rápido possível.

- Joga bastante gasolina pra queimar rápido.

Não quero que a mãe do Bruninho chegue e pegue a gente queimando a velha da casa ao lado e a gostosa da Anita.


Berje

Detetive Linhares