Conto: Diego Fortes
Ilustração: Zansky
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Argh! O hotelzinho em que eu me instalo é um muquifo. O colchão
encardido encostado na parede amarelada é mais velho do que eu. Na televisão sustentada pelas teias
de aranha do suporte enferrujado só pegam 3 canais: o primeiro com chuviscos e fantasmas, o segundo vem com o áudio
de um terceiro e o último é um canal pornô com filmes dos tempos em que depilação era luxo... Preciso deste lugar apenas para dormir e guardar as minhas
roupas.
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Bam! Caio pranchado na cama. Estou exausto. Mal
consigo desligar a TV e pego no sono. Não sei se foram os sons desconexos vindos do
aparelho, mas tenho sonhos esquisitíssimos. Sonho que caminho de noite por um cemitério em
frente ao mar, próximo a um bananal. Sou escoltado por um grupo
de esqueletos putrefatos, mas muito educados que me conduzem pelo caminho tal
como fossem lanterninhas num cinema. Há uma névoa de gelo seco de filme de terror que flutua
por cima das cruzes e das lápides. Dois esqueletos apontam para uma delas.
Leio o nome: "Lucky Strike” e embaixo uma inscrição: “Nós bem
que te avisamos, filho da puta”. Quando acho que não posso
me assustar mais, uma enorme mão rompe a terra sob meus pés e me
derruba. É o próprio Juraci Esmaga-Crânio
saindo da minha tumba com todo tipo de bicho asqueroso saindo do buraco do olho
vazado que eu lhe dei. Ele grunhe, se arrasta por cima de mim e segura minha
cabeça
inteira com as mãos…
- Aaaaahhh!!! Acordo suado, preciso de um banho. Frio do cacete! Esse chuveirinho do banheiro não esquenta. Não tem box - um banho quase inunda o quarto todo. A
toalha, além de secar, serve como
esfoliante. A janela não abre até o fim. E tenho até medo de tocar nessas cortinas. Preciso sair daqui e ir para um ambiente
menos infecto. Para onde? Me
lembro dos esqueletos me mostrando o caminho. Me visto e decido ir para o Chaves Negras.
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“A senha?”, o rapaz magro
de óculos escuros sentado numa baqueta me pergunta. “Do
que tem medo aqueles que já viram o Diabo?”, digo a ele. Esperto - a senha é uma pergunta. Uma pergunta sem resposta, inclusive. “Você pode entrar”, ele me autoriza. Passo pela portinhola de mausoléu atrás dele - o rapaz me lembra um dos esqueletos do
sonho. O Chaves Negras fica
numa galeria comprida onde, lá bem no fundo, funcionava um cinema. A galeria abriga uma série
de estabelecimentos sossegados: escritórios de contabilidade, farmácias de manipulação, lojinhas de produtos esotéricos
fedendo a incenso, etc. Nem desconfiam que vizinham com um lugar escondido.
Quando a porta se fecha, tudo fica escuro e você deve
apenas seguir em frente sem conseguir ver um centímetro na sua frente.
Depois desses passos cegos, alcança-se uma cortina de veludo que esconde um salão de iluminação aconchegante. Trata-se de um clube de
cavalheiros. Eu sei que a nomenclatura soa mal, mas não se
trata de uma casa de tolerância. Não. O
Chaves Negras é uma charutaria exclusiva e secreta.
- “Quem é vivo sempre aparece!” Alcebíades caminha em minha direção com os braços abertos. “Quais são as novidades, Lucky?” “Ah,
o de sempre... chantagens, assassinatos, prostitutas, sabe
como é...”, digo. “Sei bem.” O lugar reunia vampiros, lobisomens, adivinhas, detetives e outros tipos de seres. Eram bem-vindos aqueles que buscavam um espaço
que não existia no mundo, mas em outra dimensão.
“O Isidro está por aí?”, perguntei. “Quem?” “Eu preciso falar com ele, com licença.” “Ok, ok,
a gente se esbarra por aí...” No canto mais escuro do Chaves Negras, depois das mesas, do balcão do bar e da última fumaça do último cliente, encontro meu maior professor.
- Isidro? “Lucky?” Toco sua mão. Isidro é cego. Nem sempre, mas é comum, o encontro sentado meditativo neste Q.G. de figuras excêntricas.
Cognac na mão, permanece em silêncio
com a postura impecável. Isidro não
enverga. Deve ter uns 500 anos, sei lá. Sei muito pouco sobre ele. Quase nunca fala
sobre si próprio. Apenas senta, escuta e, se for solicitado,
aconselha. Nunca falha. “Nunca más vi tu cara feia por acá, Mr.
Strike.” - Isidro brinca em portunhol. “Boa.” “Achaste?” “Achei
o quê?” “Buena, mi piadita?” “Achei.” “Yo hice la misma piadinha sin
graça en las últimas três vezes en que nos
encontramos, Lucky.” “Fez?” “Sí, y en todas las veces, dijiste:
‘Buena.’ Tu mente está turva. ¿Qué pasa contigo, mi amigo?” Conto-lhe sobre a
gangue dos lixeiros chantagistas, a prostituta assassinada no apartamento do
cliente, o Juraci Esmaga-Crânio tentando me matar, conto até do sonho no cemitério…
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- “¡Joder! ¡Que fuerte!
Pero la respuesta es muy simples...” Observo seus finos cabelos brancos se movimentarem enquanto ele fala
pausadamente. Simples? “Sí... Tienes que hacer lo que
ellos hacen.” Fazer o que eles fazem? “Hacer lo que ellos hacen...” Claro! Foi um erro tentar confrontar o
Juraci, eu deveria ter feito o meu trabalho: investigar. Não sei
onde eu estava com a cabeça! Estava com a cabeça entre os seios de
Melinda. A reaparição daquela mulher realmente me deixou com o
pensamento nublado. Ah, Melinda... quantos erros cometi com você...
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“Ops!” Crashhh!!! Na
parte mais iluminada do estabelecimento, Alcebíades derruba um copo
de uísque no chão. Todos olham na mesma direção. O
odor etílico se espalha pelo ambiente enfumaçado.
Olho para o lado e Isidro não está mais ali. Ele faz dessas. Dá seu conselho certeiro e esvanece como o cheiro do uísque
derramado. Sento em seu lugar. Acendo um cigarro. Peço
uma cerveja escura. Conto o dinheiro. Não dá.
Vou até o Alcebíades: “Tô meio curto de grana hoje, será que dá pra você acertar pra mim? Fico
te devendo.” “Fica tranquilo,
Lucky. A gente se esbarra por aí”, ele me diz com um sorriso embriagado. “Gracias!”,
respondo eu com resquícios do meu encontro con el
maestro.
- “Aê, tio,
que tá fazeno aí?” Fica quieto, moleque! Quem é você?
“Eu sou o cara que você vai pagar pra ficar quieto.” Putamerda, às
vezes, parece que a vida é uma tremenda chantagem. Um chantageando o
outro e assim por diante num círculo vicioso. O que faz o mundo girar não
é
o amor ou Deus ou qualquer
coisa bela. É sempre a chantagem. “Me
ame que eu te protejo.” “Me ame ou você vai
para o inferno.” “Me paga aí, senão eu saio gritando”, ele me diz. Dou cincão pro lazarento e ele sai correndo com o dinheiro da minha passagem de
volta. Vai ser uma longa caminhada até o Centro. É uma situação irônica:
estou eu, investigando uma gangue de chantagistas, e sendo chantageado por um
menino do Parque Stravinski - para onde eu voltei para investigar o lixo do
Esmaga-Crânio.
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Isso
é nojento! O lixo. Aquilo de que não
precisamos mais. Aquilo que não queremos mais. Aquilo do que nos desfazemos. Ou
achamos que nos desfazemos. Pois, enquanto o seu lixo ainda é
identificável como seu, ele diz muitas coisas sobre você: seus hábitos alimentares, o jornal que você lê, se você fuma, se você paga suas contas em dia, se você contrata prostitutas no
fim-de-semana em que a sua mulher foi para a praia (como no caso do meu
cliente). Entre os resíduos domésticos da lixeira atrás
do esconderijo do Juraci, eu acho: curativos ensanguentados, dezenas de
embalagens de Cup Noodles, uma garrafa de pinga de banana, vidros de café solúvel,
adoçante...
- até
agora nada demais, a não ser que se ele não começar a cuidar melhor da alimentação, vai ter uma baita gastrite em breve. Mas então, estão lá: um recibo de estacionamento perto do parque (ele
tem um Chevette marrom), várias notas fiscais do pedágio
para as praias (ele vai para lá com frequência), que mais? Espera aí: a
garrafa de pinga de banana... Antonina! O brutamontes tem ido a Antonina
receber instruções e pagamentos do chefe desta gangue de lixeiros!
Há
também
uns outros papéis dobrados... São
letras de músicas religiosas. Deve ser um desses pastores de
uma dessas igrejas de Antonina, mas qual? Lá tem mais igreja do que cachorro! Leio mais
atentamente o papel: J.E.O.C. - Igreja Jesus É O
Cara!
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Claro! Agora tudo se encaixa: Amanda, com aquela
conversa de que o Juraci a havia ajudado a se livrar das drogas - isso é papo de igreja. Não sei
qual é a situação do meu cliente nesses
dias, mas vou precisar de uma ajuda financeira para ir até o litoral. Levo quase duas horas para
voltar a pé do parque até o meu hotel (se é que ele merece esse nome).
- “Ai,
desculpa!” Abro a porta do meu quarto, acendo a luz
e encontro uma camareira vestindo uma das minhas camisas. “Desculpa,
ai, que vergonha... eu achei que o senhor só voltaria bem mais tarde... quer dizer, eu sei que
eu não deveria ter provado as suas roupas, mas é que aqui no hotel nunca tem ninguém tão bem vestido como o senhor e, além do mais, essa roupa é tão perfumada...” Não
consigo dizer nada, ela desatina a falar descontroladamente. “O
que um homem como o senhor tá fazendo num hotel como esses? Ai, desculpa, não é da minha conta...
Como é que o senhor mantém essas roupas tão bem
guardadas? E tão cheirosas...” Só consigo rir da ansiedade dela. “O
senhor é tão cheiroso...” Ela me olha. Com a cabeça baixa, me espreita como um animal acuado. Ela é baixa, pele morena, lábios
carnudos, cabelo encaracolado. Linda. Boa demais para ser verdade, inclusive. “Eu
vou deixar tudo como eu encontrei, juro!” Ela passa a desabotoar a camisa. Ela usa um sutiã
rosa-claro daqueles com lacinho no meio. Seus seios parecem firmes. Seu corpo é atlético.
Olho tempo demais para o seu físico rijo. Ela nota meu interesse. “O
senhor tá me achando bonita?” Ela se aproxima...
- Alto lá!, eu digo com firmeza. Ok, talvez não com tanta firmeza... Vacilo um pouco, mas a detenho. Aquilo tinha que
parar naquele instante. Nos últimos meses, todas as mulheres que tiraram a
roupa para mim, tentaram me matar. Verifico o quarto todo: debaixo da cama,
dentro do armário, atrás da porta do banheiro. Olho pela janela, nada.
Tirando algumas camisas esticadas em cima da cama, minha mala está como estava antes. Ela me olha assustada. “Não roubei nada, não...” Eu sei que não, digo. Não é isso que me preocupa... Como é seu nome? “É Kelly. Mas, por favor, não fala nada pro gerente.
Eu não fiz por mal.”, implora ela agora só de saia e sutiã. “Eu preciso desse emprego pra me manter, não sou casada, nem nada, tenho mãe em casa...” Pensei numa solução prática:
- Tira a roupa! Falo com a cara mais séria
do mundo. Ela sorri. Meu objetivo era conferir se ela não
trazia nenhuma arma escondida, mas ela faz disso um show. Com o olhar fixo para
mim, abre o zíper da saia. A calcinha azul de algodão
não combina com o sutiã.
Acho graça no trejeito pueril de Kelly. Abre o sutiã devagar. Baixa a calcinha até o joelho e empurra até o chão com a sapatilha que ela não tira.
Tento manter a concentração: Tira a sapatilha também. “Quer
que tire? Tem gente que gosta que fique...” Você é garota de programa? “Não... Só gostei do teu cheiro mesmo, das tuas roupas... E você? Você
gostou de mim sem as minhas?” Ah, eu não
aguentei, já eram meses de antecipação e, na hora, sempre alguém me dava uma porrada. Ela esticou seus braços morenos em volta
do meu pescoço e passamos mais de uma hora nos beijando. As
outras horas foram derivações bastante interessantes desse beijo inicial. Foi
fenomenal! Mulher pequena... Fácil de erguer. Enfim, foi um dia produtivo! As
coisas estavam começando a melhorar.
Diego Fortes
É ator, escritor, tradutor e diretor. Nasceu em 1982. Bacharel em Comunicação Social, tem passagens pela Escola Técnica de Formação de Atores da Universidade Federal do Paraná, pelo Ateliê de Criação Teatral e entre diversos outros. Fundou A Armadilha - cia. de teatro em 2001, companhia pela qual montou os espetáculos Marias (2004), Café Andaluz (2005), Os Leões (2006), Bolacha Maria - um punhado de neve que restou da tempestade (2008) e Jornal da Guerra Contra os Taedos (2009). Em 2010, escreveu e dirigiu - com a colaboração da artista mineira Grace Passô - a peça Os Invisíveis, pela qual recebeu a segunda indicação à Melhor Direção do Troféu Gralha Azul. Mantém contato colaborativo com autores de outros países latinos.
Zansky