22 de out. de 2014

Finado

Conto: Diego Gianni
Ilustração: Gustavo Ramos

É o dia em que as flores vivas são deixadas rentes aos mortos. Nesse dia, aqueles que ainda respiram visitam o que sobrou dos seus entes. Em alguns casos, nem o pó resta e as lembranças seguem firmes. É dia de finados.
Antero se preparou para a visita. Usa a gravata que sempre foi a preferida dela, como se isso ainda tivesse alguma importância. O cemitério fecha às cinco da tarde. Restam 15 minutos e a esposa ainda não veio. Antero espera.
Um jovem ao seu lado puxa assunto por puxar.
- Veja que flor linda minha mãezinha me trouxe. Ela sempre teve jeito com essas coisas.
Antero dirige um olhar melancólico à flor e automaticamente espia o próprio túmulo.  Ninguém mais lembra do Antero, somente a esposa. E faltam 15 minutos.
- O senhor – pergunta o rapaz. – não recebeu visita?
- É claro que recebi. – mente com o cacoete de quem morreu faz poucos anos. – Era um tal de gente que não parava mais. Muita ladainha pro meu gosto.
O garoto de vinte e tantos anos olha triste para a lápida vizinha, desprovida de flores e velas. E chega mais uma visita. O jovem sorri.
- Este fez faculdade comigo. Gente boa. Gente muito boa.
O ex-colega fecha os olhos diante do túmulo. O rapaz não ouve, mas entende. É saudade. O amigo volta a si, puxa um cigarro do bolso, acende, traga, oferece com um sorriso triste.
- Aceita, Nelsinho?
O moço sorri, acha graça. Antero pigarreia e tenta sentir o cheiro do tabaco.
- O que eu não daria por mais um desses. – diz o velho e coça a garganta.
Um gato cruza o corredor das lápides e arregala os olhos para Antero, saindo em disparada. O coveiro passa avisando aos visitantes que os portões vão fechar.  Antero dá de ombros.
- Foda-se. – resmunga. – Um dia ela estará aqui, do meu ladinho. 

(...)

Ruth seguiu a vida. Feliz com o marido? Era, mas este também era, e como dito, a vida seguiu. A viúva tem fé de que as pessoas de fato vão para um lugar melhor e aqui fica só o corpo, a ‘casca’, a roupa.
Por isso preferiu ficar na cama. E não sozinha. Osvaldo acende um cigarro, o que a incomoda.
- Meu marido ia fumar na varanda. – murmura.
- Quem? – fala Osvaldo, ainda anestesiado pelo efeito do orgasmo.
- Ninguém. – Ruth silencia. Sente então um calafrio que vem de dentro, um gelo que não saberia explicar. Cruza os braços, leva a manta até o pescoço.
- O que eu não daria por uma boa tragada. – diz o finado ao pé da cama, sem se fazer ouvir. Cai uma nesga de cinzas sobre o lençol manchado.
Ninguém mais lembra do Antero.


Gustavo Ramos

Diego Gianni
Nasceu em 1982, na capital de São Paulo. Mudou com a família para Curitiba ainda na infância e começou a escrever peças de teatro em 2.004. No período de seis anos, escreveu mais de cinquenta peças teatrais que foram apresentadas por diversas companhias de teatro em vários estados. Ganhou prêmios de melhor texto conferidos pela Cena Hum (Academia de Artes Cênicas) e também pela Fundação Cultural de Curitiba. 
Tem contos publicados em jornais e revistas e posta textos semanalmente em blog´s e sites, tais como tracasemcedilha.blogspot.com ; acontececuritiba.com.br. Lançou o livro "Dores crônicas que nem te conto". Atualmente cursa jornalismo.


Nenhum comentário:

Postar um comentário