Pedro Ivo quase esquina com a Barão do Rio Branco. Hotel Naipi. Um moquifo que fica no meio da quadra e aonde as putas e os traficantes vêm brincar. A rua já estava do jeito que o Diabo gosta. Aquele monte de gente espalhada fumando pedra, tomando pinga direto no bico, e uma novidade: um cara vendendo salgados dentro de um isopor.
- Ô, Linhares, cê se importa de pagá um saldoga pra mim? É que tô numa
larica desgraçada e...
- O que você pediu?
- Um saldoga. Na boa...
- Saldoga?
- É...
- E que porra é essa?
- Um salgado, detetive. Salgado, saldoga...
Às vezes, eu tenho certeza que o Fórtiunaine quer levar umas bicudas e
não sabe pedir. Eu e a Jéssica ficamos olhando bem sério pra ele. Na verdade,
eu caguei pra fome dele.
- Você entra e vai direto no segundo andar, enquanto eu revisto o
primeiro.
- Tá, mas e o rango...
Entrei. A espelunca fedia ao mesmo tempo duzentos tipos de perfumes
baratos diferentes. Eu gostei de uns quatro. A Jéssica reclamou do fedor.
Coisas de mulher. A entrada da bodega é um corredorzinho minúsculo com um
balcãozinho e um idiota atrás. Cheguei no balcão e fui...
- Daê. Casal é trintão. Quarto 212, segundo andar.
- Dêxa eu entendê. Você tá insinuando que...
- Olha aqui meu rapaz, tuas opções são problema seu. O quarto é o 212, é
trintão adiantado, e você tem quatro horas pra brincá com o magrelinho.
Eu escutei
o cara até ele terminar a última sílaba. Ficamos em silêncio por alguns
milésimos de segundo. Não fiquei puto. Muito pelo contrário. O cara tinha
acabado de me dar uma idéia. Dei os trinta reais pro dono do hotel.
- Ok. E tem uma cervejinha no quarto?
- Posso levá. Quantas?
- Tsca... sei lá... umas... quantas você qué, nenê?
O 429 ficou com cara de paisagem.
- Desculpa, moço, mas acho que ele emocionou. Leva uma caixinha.
- Tá bom. Mas, daí, é mais vintão.
- Ok. Tá aqui.
Entreguei o dinheiro, peguei a chave, e subimos. O Fórtiunaine levou
mais uns minutos pra entender a parada. Entramos no quarto. Cheirinho agradável
de lavanda mofada, mas nada de baratas nem de caras desenhados no chão.
Quartinho...
- Bacana! Gostei. Deve ter umas pedrinhas perdidas pelo chão.
- Porra, 429. Tira a fuça do chão e presta a atenção.
- E que porra foi aquela, hein, Linhares?
- Escuta!
- Cê nunca vem aqui, mas eu sou conhecido na região, e depois os cara
vão pensá que eu tô escapando a quarta e...
- ESCUTA CARALHO!
TOC TOC TOC!
- Tudo bem, aí dentro? Vô dexá as béra aqui na porta. Só não quebrem a
porra do quarto!
Pelo menos o 429 ficou quieto.
- Vâmo fazê o seguinte. Desce no primeiro andar e dá uma vasculhada nos
quartos. Eu faço isso aqui em cima.
- Tá, mas...
- Pega meia caixa de cerveja e diz que veio entregá o tróço... sei lá...
inventa... improvisa, porra!
Ele ficou me olhando meio desconfiado.
- Mas eu não tenho uma arma, nem nada, e se o cara me atacá?
- Aí você grita e eu vou te salvá, baby.
Hahahaha!!!
Rimos um pouco, mandamos um negocinho pra melhorar a visão sobre as
coisas e saímos do quarto. O Fórtiunaine desceu as escadas e eu fui em direção
ao primeiro quarto. Vazio. O segundo, também. No terceiro, gemidos. Abri a
porta como quem não quer nada.
- Boa noite. Serviço de quarto.
Tinha um cara amarrado na cama com uma meia na boca e um travecão de um metro
e noventa brincando de playground com o corpo dele. Muito legal a cena. O cara
veio até a porta. Agradeceu. Pegou as cervejas e voltou pra cama. Nem fez
questão de fechar a porta. Abriu uma latinha. Tomou um gole e o resto derramou
no corpo do cara que tava deita...
- Delegado Alvarenga! Quanto tempo? Que situação, hein!
O travesti deu um sorriso e fez um sinal com a mão pra que eu saísse.
Respeitei o casal e fui saindo de fininho do quarto. Então, no andar de baixo
um grito estridente. Parecia que alguém estava enforcando um rato. O 429. A
Jéssica pulou pra minha mão e em meio segundo eu estava no andar de baixo
encostado numa das paredes ao lado da porta escancarada de onde tinha vindo o
grito.
- Não, não, por favor!!!!
A voz do Fórtiunaine meio amassada, como se a cara dele estivesse sendo
esfregada no travesseiro. Botei a cara na porta e tinha um cara arrancando a
roupa dele, mas não era o Espalha Esperma.
CLÉC!
A cena congelou. Entrei no quarto. Tirei o cara de cima do 429. Joguei o
rato pra fora do quarto. Levei o grandalhão-espertão-metido-a-besta até o
banheiro e enfiei a cara dele na privada, dei a descarga e larguei o corpo lá.
Tinha uma moça caída no chão. Recoloquei-a na cama e saí do quarto. Tudo voltou
ao normal. O Fórtiunaine ainda estava bastante assustado, mas ficou tranqüilo
quando viu que estava fora do quarto. Eu pedi pra que ele esperasse por ali
mesmo, num banco que tinha no corredor enquanto eu procurava pelo estuprador de
verdade.
Mandei um pó mágico pra entender melhor a situação. Tirei o chapéu.
Segurei a Jéssica contra o peito. Respirei fundo. Fechei os olhos...
Quarto 109
- Quarto 109.
- Quarto 109?
- Sim, quarto 109.
- O que tem no quarto 109?
Nessa hora eu contei pro 429 o que tinha acontecido. Ele não acreditou.
Mas foi bem assim que eu prendi o Espalha Esperma.
Engatilhei a Jéssica e meti o pé na porta. O cara estava sentado vendo
Atlético e Paranavaí na televisão, tomando uma cerveja, enquanto uma moça que
batia com a descrição que eu imaginava, chupava seu pau. Eu não sabia se era a
moça ou não, mas sabia que era o Espalha. Quando ele me viu deu um pulão pro
lado da cama, perto da janela, e sacou um .38. Eu me joguei no chão, do outro
lado da cama, perto da porta. A menina se jogou na frente da cama, perto da TV.
Ele deu o primeiro tiro. Acertou a porta atrás de mim. A menina deu o primeiro
berro e correu pra dentro do banheiro. Ele deu o segundo tiro. Pegou na parede
em cima da escada, do lado de fora do quarto. A Jéssica começou a me cobrar
alguma atitude. A menina deu o segundo berro. Então, pensei bem rápido.
“A cama é fechada na parte debaixo, então, se eu der um tiro por aqui, o
tiro vai entrar na madeira, vai viajar os dois metros por debaixo da cama, e se
tiver um pequeno desvio e uma pequena perda de velocidade, o impacto não vai
matar, só aleijar. Pode ser que eu acerte o joelho. E vai doer.”
PAM!
O cara deu um grito do outro lado da cama. Levantei do meu esconderijo.
Ele também. Botei um pé em cima da cama pra voar no pescoço do cretino e ele se
apoiou na janela. O tiro pegou na coxa esquerda. Fiz mira com a Jéssica. Ele se
jogou pela janela. Atirei e pegou bem no parapeito, perto da perna direita do
Esperma que voava Pedro Ivo abaixo. A moça gritou pela terceira vez. Corri até
a janela e ele estava terminando de estatelar no chão. Mandei o 429 correr pela
escada e me atirei em cima do cara. Pulei como quem se joga de um bungee jump sem corda. Enquanto eu
caía em cima dele, só deu pra ver no fundo dos seus olhos um profundo desprezo
pelo que estava pra acontecer. Mirei bem no joelho.
CRASH!
Do primeiro andar a queda não foi muito alta, mas foi o suficiente pro
joelho dele virar sagu. O berro foi ensurdecedor, mas já estou acostumado com
isso. A Jéssica riu. O 429 chegou lá embaixo.
- Ôrra, Linhares, por um momento eu não acreditei na história que você
me contou.
- E a menina?
- Tá trancada no banheiro ainda. Qué que eu veja lá?
- Claro, né, Fórtiunaine!
O Inércia por sorte estava estacionado bem na frente do Hotel. Joguei o
Espalha Esperma no banco de trás. O 429 apareceu com a menina.
- Eu cuido dela, Detetive.
O safado desmaiou. Acho que foi de dor ou por ter perdido sangue demais.
Não me importa. Levei-o até o Parque Barigüí, lá naqueles cantos onde há
algumas churrasqueiras. O céu tinha limpado. Estava frio naquela noite, um frio
cinza e mórbido. As estrelas relampejavam nos meus olhos feito pó de
pirlimpimpim. Lua cheia. Entrei no meio do mato com o corpo do Espalha Esperma.
Alguns caras já esperavam por mim. Pareszinhos de olhos em cima das árvores,
atrás de arbustos, como se fossem vaga-lumes acendendo aqui e acolá. Alguns
amigos que fiz durante as minhas caçadas por Curitiba. Animais sedentos por
carne. Lobos. Do nada, veio uma voz.
- E aê, man, quanto tempo?
- Tá aí, Flores. Como prometido.
- Você não vai ficar pro jantar?
- Hoje, não. Preciso dormir.
- Hehe. É isso aí, man. Você está parecendo um zumbi.
- Mande notícias.
- Mando sim.
Eu já tinha me virado pra ir embora. O Florestano me chamou.
- Man! Quase me esqueci. Olha só o que eu trouxe pra você!
“Revista
Lodo nº2”
- Acho que você vai gostar.
Meu sorriso amarelo reluziu com a luz da lua. Os lobos começaram a
descer das árvores. Juntei a Lodo debaixo do braço e fui indo embora devagar,
contemplando o barulho dos dentes daquelas criaturas rasgando a carne daquele
idiota, e os berros de agonia que ecoaram naquela noite no Barigüí.
Na manhã
seguinte, as capas dos jornais estampavam em letras garrafais: “Berros no
Barigüí”, “Assassinato?”, “Medo e dor na noite curitibana”.
- Mais um café, Detetive?
- Não, Tony, obrigado. Vou dormir um pouco.
Detetive Linhares
Seus textos e contos podem ser visualizados no site: detetivelinhares.blogspot.com.br
Daniel Gonçalves
Radicado em Curitiba, casado com Amarilis e pai de Leon, Layla e Alice. Teve toda sua vida permeada pela paixão à literatura, artes visuais e música. Atual editor da revista LODO e co-editor da revista LAMA.
Paralelamente aos trabalhos artísticos, desenvolve projetos de arquitetura e design.
Seus trabalhos podem ser visualizados no site www.danielgoncalves.art.br.
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