5 de out. de 2012

Sobre charutos, ateus e lobisomens

Conto: Florestano Boaventura
Ilustração: Lena Muniz






O escritor e ex-ateu Brás da Silveira cortou um charuto cubano – marca Fonseca, antes de sentar para escrever.
Utilizou um isqueiro tipo maçarico para acendê-lo. Quando em contato com a chama, girou-o lentamente na mão para que fosse aceso uniformemente por todo o raio. Depois levou o tabaco já aceso aos lábios e, antes de dar a primeira puxada, soprou por onde foi feito o corte, para expulsar todo o sabor desagradável produzido pelo acendimento.
Então esperou alguns segundos para dar uma nova puxada, para que o fumo esfriasse. Manteve a fumaça na boca, sentindo as primeiras notas de aromas. Depois o expeliu em direção à janela.
Não se pode ser ansioso ou lento demais para saborear um charuto. Intervalos de um minuto são suficientes para não esquentá-lo demais e nem deixá-lo apagar.
Com a literatura é a mesma coisa. É preciso “degustar” cada palavra, cada frase do conto.
O som característico das teclas da máquina mesclava-se ao som do piano de uma música do Tchaikovsky na vitrola.
Brás escrevia a história sobre um autor ateu, chamado Gregório Munhoz. Certo de suas convicções, passou a vida engendrando histórias autobiográficas ou inspiradas em causos que ouvia. Para ele, escrever significava se atentar às rugosidades da vida cotidiana. Depois de certo tempo, já tinha falado de todos os seus casos de amor e destrinchado memórias até a completa escassez. Estava, irremediavelmente no fundo do poço da escassez de suas ideias. Foi quando, deparou-se com o imponderável. Um morador da estância foi morto de maneira misteriosa. No outro dia descobriram que a vítima teria sido Zacarias, o caseiro. Seus membros foram dilacerados e arremessados por toda a propriedade. Encontraram os braços perto do curral e as demais partes em outros lugares. A notícia logo se espalhou pelos vilarejos em volta e as pessoas ficaram apavoradas.
Gregório observou tudo através de uma lacuna nas ripas da parede dos dormitórios. Como aquela história do rei que espiava o Minotauro por uma fresta na parede do labirinto*.
Brás levou uma semana para finalizar este conto. Parando diversas vezes para degustar seu charuto na sacada, contemplando os desenhos que a fumaça formava no teto do apartamento. Naus, florestas, ninfas nuas...
Sua namorada veio diversas vezes insinuante. De camisola, sem sutiã ou trajando apenas a parte de baixo da lingerie. Fizeram amor sobre a pilha de papéis datilografados encima da mesa. Também sobre a cadeira de rodinhas e até mesmo na janela, inspirados pelo fetiche de serem observados por uma plateia de incógnitos.
Mas o extraordinário nesta história é que o charuto não apagou. Durou uma semana, nem sequer diminuiu. Por mais puxadas e baforadas que Silveira desse, permanecia enorme e intacto. O vultoso artifício foi companheiro das madrugadas e noites insones.
Nas vezes que dormia, o charuto permanecia aceso, encostado sobre o cinzeiro. No outro dia, tornava a fumá-lo. E também a escrever.
Quando terminou, depois de inúmeras transas e baforadas, olhou para o charuto e ele tinha enfim, apagado.
Brás retirou a última folha da máquina, releu a história e conferiu o relógio. Foi então que percebeu que, passara apenas uma noite desde o momento que começou a escrevê-la. Sua namorada apareceu na sala no meio da madrugada e o charuto queimou no tempo certo. Uma semana, na verdade, foi o tempo que Gregório Munhoz levou para terminar o seu primeiro conto fantástico sobre o lobisomem da Fazenda Marabá.

* Rei Minos, de Creta, que mandou construir um labirinto para aprisionar o Minotauro, monstro filho de sua mulher.


Florestano Boaventura
Editor de uma revista de cordel, com temática horror, chamada LODO. A publicação circula  pelos becos de Curitiba desde 1948, e foi relançada junto com a LAMA nº 2 em 2011.
Alguns contos podem lidos em: www.revistalodo.blogspot.com.br.

Lena Muniz
Publica suas criações e desenhos no blog: www.omodernario.blogspot.com.br


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