Ilustração: Lena Muniz
O escritor e ex-ateu Brás
da Silveira cortou um charuto cubano – marca Fonseca, antes de sentar para
escrever.
Utilizou um isqueiro
tipo maçarico para acendê-lo. Quando em contato com a chama, girou-o lentamente
na mão para que fosse aceso uniformemente por todo o raio. Depois levou o
tabaco já aceso aos lábios e, antes de dar a primeira puxada, soprou por onde
foi feito o corte, para expulsar todo o sabor desagradável produzido pelo
acendimento.
Então esperou alguns
segundos para dar uma nova puxada, para que o fumo esfriasse. Manteve a fumaça
na boca, sentindo as primeiras notas de aromas. Depois o expeliu em direção à
janela.
Não se pode ser ansioso
ou lento demais para saborear um charuto. Intervalos de um minuto são
suficientes para não esquentá-lo demais e nem deixá-lo apagar.
Com a literatura é a
mesma coisa. É preciso “degustar” cada palavra, cada frase do conto.
O som característico
das teclas da máquina mesclava-se ao som do piano de uma música do Tchaikovsky
na vitrola.
Brás escrevia a
história sobre um autor ateu, chamado Gregório Munhoz. Certo de suas convicções, passou a vida engendrando histórias autobiográficas ou inspiradas em causos
que ouvia. Para ele, escrever significava se atentar às rugosidades da vida
cotidiana. Depois de certo tempo, já tinha falado de todos os seus casos de
amor e destrinchado memórias até a completa escassez. Estava, irremediavelmente
no fundo do poço da escassez de suas ideias. Foi quando, deparou-se com o
imponderável. Um morador da estância foi morto de maneira misteriosa. No outro
dia descobriram que a vítima teria sido Zacarias, o caseiro. Seus membros foram
dilacerados e arremessados por toda a propriedade. Encontraram os braços perto
do curral e as demais partes em outros lugares. A notícia logo se espalhou
pelos vilarejos em volta e as pessoas ficaram apavoradas.
Gregório observou tudo
através de uma lacuna nas ripas da parede dos dormitórios. Como aquela história
do rei que espiava o Minotauro por uma fresta na parede do labirinto*.
Brás levou uma semana
para finalizar este conto. Parando diversas vezes para degustar seu charuto na
sacada, contemplando os desenhos que a fumaça formava no teto do apartamento.
Naus, florestas, ninfas nuas...
Sua namorada veio
diversas vezes insinuante. De camisola, sem sutiã ou trajando apenas a parte de
baixo da lingerie. Fizeram amor sobre a pilha de papéis datilografados encima
da mesa. Também sobre a cadeira de rodinhas e até mesmo na janela, inspirados
pelo fetiche de serem observados por uma plateia de incógnitos.
Mas o extraordinário
nesta história é que o charuto não apagou. Durou uma semana, nem sequer diminuiu.
Por mais puxadas e baforadas que Silveira desse, permanecia enorme e intacto. O
vultoso artifício foi companheiro das madrugadas e noites insones.
Nas vezes que dormia, o
charuto permanecia aceso, encostado sobre o cinzeiro. No outro dia, tornava a
fumá-lo. E também a escrever.
Quando terminou, depois
de inúmeras transas e baforadas, olhou para o charuto e ele tinha enfim,
apagado.
Brás retirou a última
folha da máquina, releu a história e conferiu o relógio. Foi então que percebeu
que, passara apenas uma noite desde o momento que começou a escrevê-la. Sua
namorada apareceu na sala no meio da madrugada e o charuto queimou no tempo
certo. Uma semana, na verdade, foi o tempo que Gregório Munhoz levou para terminar
o seu primeiro conto fantástico sobre o lobisomem da Fazenda Marabá.
* Rei Minos, de Creta, que mandou construir um
labirinto para aprisionar o Minotauro,
monstro filho de sua mulher.
Florestano Boaventura
Editor de uma revista de cordel, com temática horror, chamada LODO. A publicação circula pelos becos de Curitiba desde 1948, e foi relançada junto com a LAMA nº 2 em 2011.
Editor de uma revista de cordel, com temática horror, chamada LODO. A publicação circula pelos becos de Curitiba desde 1948, e foi relançada junto com a LAMA nº 2 em 2011.
Alguns contos podem lidos em: www.revistalodo.blogspot.com.br.
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