Ilustração: Dea Lellis
Meu mundo era um salão sem
janelas onde ficavam as camas, os armários, a TV e a cozinha. O sanitário,
contíguo a esse ambiente, era ventilado por um exaustor embutido no forro. Eu
nunca havia visto o céu, nem uma árvore, nem pisado na grama; nada disso. Distraía-me
com os livros e DVDs trazidos esporadicamente por meu pai. Eu costumava
questioná-lo insistentemente sobre o mundo exterior, contudo, sua resposta
limitava-se a encerrar o assunto. Invariavelmente afirmava algo do gênero:
- Não se deixe levar pelo que
você lê e assiste, são visões idealizadas, românticas. Não há lugar para a inocência nesse mundo,
não há lugar para fragilidades.
Nos lábios de meu pai a palavra
fragilidade tinha a conotação da maior das virtudes. Todavia, eu já estava
livre dos pontos e ataduras, não dependia mais de soro e minha coordenação
motora evoluíra satisfatoriamente. Os argumentos de meu pai sucumbiam à minha
inquietação e, por mais que eu sinalizasse aceitar suas idéias, secretamente
ansiava por escapar daquele recinto. Os
obstáculos consistiam em duas portas, separadas por um corredor escuro. Ambas permaneciam trancadas o tempo todo,
mesmo com meu pai em
casa. Finalmente , em um filme de aventura, descobri um modo
simples e efetivo de fugir: remover o pino das dobradiças. Aguardei que meu pai
saísse para trabalhar. O primeiro contato com a luz foi doloroso, protegi meu
rosto com as mãos até as pupilas se adaptarem.
Observei minha casa pelo lado de fora e percebi que outrora ela possuía
janelas, haviam sido vedadas apenas por dentro. Um longo caminho de pedriscos
conduzia até um portão de madeira, mas antes de alcançá-lo, fui atraído pelo
gramado em frente a casa. Enquanto meus pés descalços acariciavam o verde,
dezenas de ninfas saltitavam; uma onda de minúsculos insetos. Essa distração
que me fez ignorar a aproximação sorrateira de um cão. Esquivei-me por sorte da
primeira investida do animal e tentei escapar correndo para a grade coberta de
hera. Escalei uma mureta próxima ao portão, mas o cachorro alcançou-me e mordeu
meu calcanhar com toda sua voracidade.
Desesperado, arremessei-me por cima da cerca e caí na calçada de pedra.
Meu corpo foi perfurado pelas lanças do gradil, meu pijama estava em trapos,
meu corpo coberto de sangue.
A rua estava deserta, dei alguns
passos e recostei-me em uma árvore em busca de alento. Ali, no gramado entre o
gradil de minha casa e o meio-fio da rua, eu adormeci. Despertei com uma dor aguda em minha fronte e
as gargalhadas sádicas das crianças que atiravam pedras em mim, meia dúzia de meninos.
Aparentavam pouca idade, dez anos no máximo. Tentei erguer-me do solo, mas
recebi uma violenta saraivada de pedras que minou minhas forças. Encolhido e
com as mãos sobre a cabeça, recebi chutes, pauladas, pisões em minhas
costas. Um garoto aproximou-se erguendo
um paralelepípedo o mais alto que podia – minha última lembrança daquela tarde.
Meu pai diz que foi sorte ele ter
chegado enquanto eu ainda respirava. Os agressores não estavam mais ali, apenas
meu corpo destruído. Ele disse que me fará dormir profundamente. Pode demorar a
conseguir novas partes, por isso precisarei dos aparelhos para sobreviver. Ele
lamenta que eu não o tenha escutado, muito provavelmente herdarei sequelas de
minha transgressão. Minha aparência deve
piorar e pode ser necessário que eu mude de sexo. Não o questiono, nem me
revolto. Ele é um bom pai e um bom médico. Ele me ama, ele me fez, ele sabe o
que é melhor.
Daniel Gonçalves
Radicado em Curitiba, casado com Amarilis e pai de Leon, Layla e Alice. Teve toda sua vida permeada pela paixão à literatura, artes visuais e música. Atual editor da revista LODO e co-editor da revista LAMA.
Paralelamente aos trabalhos artísticos, desenvolve projetos de arquitetura e design.
Seus trabalhos podem ser visualizados no site www.danielgoncalves.art.br.
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