Ilustração: Francisco Gusso
O dia 6 de junho de 1944
ficou conhecido como o Dia D, o golpe final das tropas aliadas contra o regime
nazista de Adolf Hitler. Mais de 155 mil homens dos exércitos americano,
britânico e canadense lançaram-se em um ataque nas praias da Normandia, na
França. Para os livros de história foi o começo do fim da Segunda Guerra
Mundial, mas para mim, foi o início de uma nova vida, um ciclo que desbravaria
a eternidade.
Meu nome é James McCovil,
mas meus companheiros me chamavam de Jim. Fui casado com uma linda garçonete de
nome Margareth, com a qual tive dois filhos. Deixei minha família no longínquo
estado do Texas após meu alistamento militar em 1940. Tornei-me cabo do
exército americano, pertencente ao 83° Regimento de Infantaria. Junto com
centenas de milhares de soldados fiz parte da ofensiva na Normandia.
Daquele dia me lembro da
tensão constante. O olhar perdido de alguns companheiros contrastava com o
sangue nos olhos de outros. Estávamos todos preparados para morrer, sem medo de
nosso destino. Os tiros e explosões chegavam mais perto a cada metro que o
barco se aproximava da praia. Não demorou muito para as primeiras embarcações
serem explodidas. Nessa hora, apenas olhava fixamente para frente, rezando
internamente para a próxima bala não atingir meu corpo. Assim que minhas botas
tocaram os primeiros grãos de areia, corri em busca de um ponto de defesa. Nossa
companhia foi uma das primeiras a desembarcar. Tínhamos a missão de tomar dois
morteiros localizados no norte da praia, facilitando, assim, a locomoção das
tropas. Dividimos nossa força. Vinte homens avançaram em lados opostos na
tentativa de surpreender o inimigo. Fiz parte do ataque pelo flanco leste. Costeamos
o alvo, em bloco. Tudo
parecia correr como planejado, mas foi então que ouvi gritos por perto. Meus
dois companheiros da direita caíram após tiros certeiros, que perfuraram seus
capacetes sem dificuldade. Pouco tempo depois outros três combatentes foram
alvejados, antes que pudessem reagir. Percebi que havíamos caído em uma emboscada.
A partir deste momento o terror tomou conta do resto da tropa. Sem saber o que
fazer, tentei correr o mais rápido possível em busca de algum abrigo
momentâneo. Enquanto minhas pernas tentavam carregar o meu corpo, ainda
infectado pelo pavor, ouvi um zunido. Na minha frente caiu uma granada.
Booooooooooooooooooooom! Barulho ensurdecedor e falta de visão total.
* * *
Acordei em uma cama
simples, de madeira. Tentei me levantar, ainda assustado, quando a vi: uma
linda mulher, de pele branca e longos cabelos negros que envolviam seus ombros
como uma espécie de manto. O olhar dela me petrificou, mas o sorriso, tímido no
canto da boca, me passou certa tranquilidade. Ela parecia um anjo. Pensei que
estava morto, só poderia estar no céu. Era a única explicação possível.
- Sente-se bem? –
Perguntou a mulher calmamente.
- Minha cabeça dói. Onde
estou? O que aconteceu comigo? – Um ruído insistente ainda passeava pela minha
cabeça.
- Digamos que você está a
salvo...
- Quem é você?
- Meu nome é Annabel. Sou
uma enfermeira, quer dizer, eu era uma enfermeira. Mas ainda sei como cuidar de
um soldado.
- Como assim? Estou em um
hospital militar?
- Não, essa é a minha
casa. Fique tranquilo, as poucas pessoas que cruzam minha porta estão a salvo.
A cabana era escura, pouco
ventilada. Apenas uma janela, não muito grande, permitia um vislumbre da parte
externa da casa. Alguns móveis, gastos pela ação do tempo, ornamentavam o
lugar. Era noite, um estranho silêncio insistia em me manter calmo. Memórias
antigas apareciam como flashes na frente dos meus olhos. Neste momento, pensei
na minha terra natal, em tudo que tinha ficado para trás. Uma lágrima escorreu em
meu rosto. Annabel não entendia o porquê daquilo.
- Você está bem soldado?
- Sim, apenas lembranças
do passado. Esses pensamentos sempre me assombram.
- Fantasmas. Fantasmas de
outrora. Diga-me, o que o atormenta?
- Minha mulher, Maggie.
Deixei-a nos Estados Unidos. Nosso casamento não ia bem, desconfiava que ela me
traísse. Diziam que muitos homens do bairro experimentaram dos prazeres dela. Não
conseguia encontrar mais emprego. O dinheiro se tornou escasso. Talvez seja por
isso que ela tenha buscado a felicidade nos braços de outros homens. Na época
não queria acreditar, mas alguns anos de solidão na guerra foram suficientes
para abrir meus olhos. Se algum dia eu voltar para meu país sei que ela estará
com outro. E as crianças? Meu Deus!
Christopher tinha quatro anos quando parti. Não tive nem tempo de jogar
baseball com meu filho. Annie tinha apenas um ano, perdi o primeiro passo dela.
Hoje os dois nem se lembram do pai que um dia tiveram – a intensidade das
lágrimas aumentou neste momento, mas continuei a falar - A guerra é uma fuga.
Claro, queria ajudar meu país, mas cruzar o mar e pegar em armas foi apenas uma
desculpa para escapar de uma realidade que me trazia tormento. Agora, tudo que
penso é terminar com essa guerra e matar quantos nazistas eu puder. Quem sabe
um dia eu consiga viver em paz comigo mesmo.
Annabel estava com uma
expressão consternada. Por um momento pensei que ela iria chorar. Mas a pele
pálida permanecia imóvel. Alguns segundos silenciosos inundaram o ar até ela
finalmente responder:
- Eu sei como você se sente caro soldado. Minha
guerra não foi essa, muito menos a antecessora, mas do outro lado também
estavam os germânicos. Uma guerra entre a França e a então Prússia. Os homens
lutaram bravamente na frente de batalha. Para nós, mulheres, sobrava o trabalho
de cuidar dos feridos. Perdi meu marido e dois irmãos na Batalha de Sedan. Infelizmente,
ou felizmente, Deus nunca me deu a chance de ter um filho. Estava completamente
sozinha no mundo. Quando a guerra terminou, sobrou pouca coisa para o lado
perdedor, no qual eu me encontrava. Sem ver sentido em minha vida, tentei me
matar. Pendurei uma corda em uma árvore, coloquei-a no meu pescoço e esvaziei a
mente. Tudo deveria estar acabado em poucos segundos. Mas um salvador apareceu
e deu uma benção que me salvou. Terminar com minha vida não era mais uma opção.
Uma nova sede tomou conta do meu corpo. Durante muito tempo passei a perseguir
qualquer prussiano que estivesse envolvido na antiga guerra. E isso me satisfez
por um tempo. Com o passar dos anos fui procurando motivações, desafios e...almas
para compartilhar esses momentos.
Fiquei paralisado perante
a história de Annabel. Nunca fui um grande conhecedor de história. Sinceramente
não sabia nem quando ou por qual motivo essa outra guerra havia acontecido. A
aparência jovem de minha anfitriã indicava que o conflito não ocorrera há muito
tempo. Era o que eu pensava.
- Soldado, você pode ver que
os martírios da guerra não foram apenas um escape para você.
- Eu sei, vejo isso
claramente. Queria fazer esse vazio sumir. Sinto um buraco negro crescendo e
tomando conta de cada centímetro do meu corpo. Não sei mais o que pensar, nem o
que fazer. – Nesse momento as lágrimas verteram de ambos os olhos,
incessantemente.
- Acho que só tem uma
solução para isso. Estou pronta para lhe dar uma bênção que há um século me foi
ofertada.
Quando olhei para Annabel,
sua expressão havia mudado. O sorriso, antes belo, ganhou duas presas, que
contrastavam com a penumbra da noite. Ela mordeu o meu pescoço, e antes que a
última lágrima tocasse o chão, eu me encontrava inconsciente. Os próximos dias
foram de agonia e sofrimento, mas após esse teste do tempo eu estava pronto. Não
sentia mais dor, apenas uma sede constante por sangue.
Rafael Pesce
Nasceu em 1985 na cidade de Três Passos, interior do Rio Grande do Sul. Mudou-se para Porto Alegre em 2003, onde se formou em Jornalismo pela PUC-RS e mora até hoje. Em sua estante de livros Nick Hornby e J.R.R Tolkien brigam constantemente pelo maior espaço, mas agora ganharam a concorrência voraz de George R.R Martin. Devoto do gremismo, não dispensa um café ou um chimarrão bem quente.
Seus contos podem ser lidos em: http://contosdefleming.blogspot.com
Seus contos podem ser lidos em: http://contosdefleming.blogspot.com
Francisco Gusso
Seus trabalhos podem ser visualizados no site: flickr.com/photos/volumesvirtuais
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