Ilustração: Bruno Oliveira
- Maldição
O sol insistia em entrar pelas
frestas da janela encardida pelo descuido. Que horas eram? Já não importava.
Nada importava naquele momento. Os passos apressados da vizinha de cima a fizeram despertar.
- Maldita
Correu as mãos pela penteadeira
ao lado. Acreditava que com os olhos fechados limitaria sua visão. O esmalte
forte e vermelho brilhava na luz daquela manhã – mas ela não via, não enxergava
o brilho que sempre era ofuscado pela sombra que colocara diante da vida. No
passeio das mãos, brancas e bem cuidadas, pode identificar algumas garrafas,
animou-se. Apressadamente correu em direção a sua bebida – procurando pelos
vestígios da noite anterior. Um copo espatifou-se.
- Inferno
Ainda de olhos fechados insistia
em procurar… Nem ela mesma sabia qual era o objeto da busca – mas não desistia.
Com uma velocidade quase que animalesca, corria com os dedos tentando agarrar o
invisível. Precisava preencher o que estava seco. A secura a consumia
internamente, a destruía como fogo em palha, como pedra em vidro fino. Pedra
jogada em cristal puro. Por não encontrar o que buscava agarrou o que estava ao
seu alcance. Abriu uma garrafa de whisky vagabundo já pela metade e colocou em
seus lábios. Apesar de não ver, ela sentia. Passou a mão pelo frasco como quem
busca por um pensamento que fugiu . Fechou os punhos e começou a movimentar sua
mão como se masturbasse o litro de grossa espessura. Com o movimento, a
princípio suave – porém rápido – o líquido começava a escorrer facilitando o
vai-e-vem obsceno.
Pode sentir que seu seio estava
enrijecido, mas não viu. Não olhou. Sentiu. Os mamilos ficavam agora bem
delineados em uma belíssima camisola vermelha. Corpo torneado, corpo de mulher
feita. Entre um movimento e outro ousava tocar a garrafa com seus lábios.
Lambia com tesão o whisky da noite passada. Passava os lábios, consumia o
álcool que lhe deixava viva.
Sem pudores e livre de qualquer
amarra, desceu sua mão vagarosamente e quando se deu conta, encontrava com seu
próprio prazer. Num ritmo inconstante, intercalava longos goles da bebida com
uma massagem excitante. Gemeu. Livrou-se de qualquer pensamento e foi
assumidamente egoísta: naquele momento era ela que estava em cena.
O sol já havia caminhado do lado
de fora, levando a luz para onde antes não era iluminado. Ela sentia. Agora
suas coxas estavam quentes. Num gesto não planejado, desceu com a garrafa.
Hesitou em um primeiro momento, mas acabou cedendo a sua verdadeira vontade.
Penetrava agora cada centímetro da garrafa , ainda aberta, em si mesma. Gemeu.
A dor e o prazer se confundiam. Estava ardendo. Queimava por dentro.
Enfiava cada vez mais fundo, e
sentia-se rasgada por dentro. Sentiu algo quente escorrer, mas não se
preocupou. Deixou escorrer, deixou correr, porque algumas coisas precisam ser
expurgadas, porque precisava ser liberta – então se exorcizava.
A garrafa já estava pela metade e
o prazer era quase pleno. Mordia a boca, tirou sangue dos lábios. Afundava os
dentes em si mesma tentando engolir o que era. Líquido.
Quando sentiu que havia chego ao
seu limite, parou repentinamente. O lençol manchado em tom de papel antigo
trazia muito da cor do seu esmalte – porém, menos vibrante e, agora, menos
vivo. Levou as duas mãos até seu rosto, aproximou-as dos lábios e as lambeu
canibalmente.
Havia chego no limite, mas se viu
insatisfeita. O prazer poderia ser maior, o tesão poderia aumentar – e não
relutou. Passou as mãos agora molhadas com whisky e seu sangue vermelho e
grosso pela penteadeira. Encontrou um maço de cigarros já no final – era o
último. Sentiu uma alegria imensa, era o último. De olhos fechados riscou o
fósforo e o acendeu. Deu um tragada profunda e segurou a fumaça o máximo que pode.
Fumava com uma mão e se tocava com a outra, numa perfeita sincronia, num ritmo
invejável.
Quando viu que o cigarro se
aproximava do fim o lançou para longe. Apesar de estar acabado, fumado até o
filtro, até o fim, ainda acreditava que a pertencia. Então jogou longe, mas ao
alcance das mãos.
Se aproximava cada vez mais do
prazer que buscava, da recompensa perdida que acreditava merecer. Enfiava, mais
e mais, a garrafa em seu interior. Pode ouvir a pele ceder e o sangue escorrer
entre as coxas. Encontrava o que havia perdido, encontrava com o que desde o
princípio havia procurado. E num ritmo agora, inconstante e tortuoso, se tocava
e tinha prazer em ouvir e sentir sua pele rachando.
O sol não se movimentou
novamente, mas a luz havia aumentado. Um calor descomunal tomava conta de seu
corpo, de sua alma e de seu quarto. Ouvia o estalar de madeira velha, sentia o
cheiro da fumaça – densa, preta e carregada. E enfiando o garrafa de whisky até
a máxima profundidade de seu corpo, suspirou.
- Encontrei.
Seus trabalhos podem ser visualizados no site: www.flickr.com/oitoart.
Jean Michel Silva
Site pessoal: about.me/jeeanmichel
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