4 de ago. de 2014

O bote

Conto: Mel Ferreira
Ilustração: Thiago Thome


A pele seca, áspera e fria cercava o corpo do pigmeu. Rastejava fluidamente. Ele não percebia. A noite o havia apagado num desmaio que roncava forte. A pele se espreguiçava ao seu lado; o cheirava, tremendo a língua bifurcada e inquieta, embora seus olhos permanecessem a espreita. Pálpebras transparentes. Foco. Pupilas finas e imóveis. Desgarrada, ela ouvia as ressonâncias do pigmeu que sonhava. Estava medindo... Caberia? Coube.
De bote, a pele o apertou até seus olhos abrirem marejados. Um formigar lento e perpétuo o pinicava, deixando seu corpo bêbado. Ainda que, de pronto, os músculos reagissem com espasmos, não demorou aos primeiros ossos se romperem, abalando a postura.  Os dentes cerrados usavam quase toda a força, agora inútil ao corpo descoordenado. O pigmeu perdia o olhar, enquanto sua consciência agitada tentava distinguir o que estava acontecendo. Doía.  E o coração começou a correr, como se quisesse sair pelos poros de tantas batidas por segundo. Como se quisesse arrancá-lo à morte iminente.
Líquidos vertiam dos cortes que ela fez enquanto o engolia. O corpo hemorrágico do pigmeu, lentamente, se misturava ao seu sepulcro. O esfíncter cedeu. Suas pálpebras caíram. O sangue perdia seu talento, porque do nariz do pigmeu não saía nem entrava ar. O que era pânico virou silêncio. E muito do que existia na cobra, era o pigmeu recém enterrado.

Mel Ferreira


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