3 de jul. de 2014

A Estrela Líquida (parte 1)

Conto: Gustavo Ramos
Ilustração: Simon Taylor



Parte 1

Emílio acordou de sobressalto ao perceber que o gato branco que manchava aquela noite densa e escalava o teto de uma choupana do passeio público não era mais do que a lâmpada de um pequeno quarto, fustigando seu olhar adormecido, distorcida por um delírio febril. Sonhava estar ao relento, esquecido num frio congelante, imóvel num banco de madeira, mas percebeu-se ainda no mesmo quarto que há três anos recebeu para vigiar as madrugadas do parque curitibano. 
Molhou o rosto na pia, tomou um gole de café e saiu para mais uma ronda. Já quase no fim, quando voltava para seu quarto, percebeu que mais um pavão havia desaparecido, justo aquele que possuía as penas mais bonitas, do verde mais claro e frondoso, cujas intensas gotinhas azuis pareciam querer escapar daquela imensa cauda.
            Já era o segundo que fora levado, e agora restava apenas mais um para acariciar os olhares daqueles passantes curiosos que ali paravam todos os dias. Já imaginava o pivete do Guadalupe que agora andava impune nas ruas da cidade, segurando a linda ave pela cauda, rindo de seu sono e incompetência.
            Não havia mais o barulho dos carros, nem o ranger dos caminhões de lixo. Há duas horas atrás os jovens ébrios da Trajano haviam passado, cantando suas tristezas e angústias, mas agora o silêncio era seco, cortante. Aquela orquestra silenciosa foi então interrompida por um grito desesperado, inconsolável e breve, o grito de uma mulher que sofria, certamente dentro dos limites gradeados do parque. Emílio deu a última volta, mas não achou a origem, nem o corpo, nem a alma daquela voz atormentada.
            Aquilo gelou-lhe o estômago. Sacou o revolver, mas congelou seus braços no ar, empalideceu diante do que viu no breu daquela noite de abril. Era a clara forma de uma mulher desnuda, cor pura apenas manchada pelo sangue em sua boca. Os olhos fechados dissolviam-se em gotas luminosas, que estrelavam aquele chão coberto de sangue, jorrando de um imenso corpo, esvaindo seus últimos suspiros naqueles rios vermelhos que bifurcavam desaguando por entre as frestas das pedras do calçamento.
            Ele se aproximou vagarosamente e parou quando ela o olhou com profunda amargura. Ficaram assim, enquanto o pranto cessava, a se olhar como se não existisse aquele corpo sem vida, nem a enorme mancha de sangue, como se nada houvesse além do mistério de dois olhos desconhecidos. Até que o pranto cessou de todo e o pavor que antes o afligia deu lugar a um tenro sentimento de afeição.
            Então ela falou. Falou como quem não o faz há muito tempo, como alguém a quem as palavras foram roubadas e de súbito reabilitadas. Ouviu a história de uma bailarina que um dia floresceu nos palcos do Teatro Guaíra e de um maestro, um alemão insondável de têmperas exaltadas, o mesmo que agora agonizava diante de seus pés. 

(Continua...)


Gustavo Ramos

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