25 de jun. de 2014

Era o Cova

Conto: Fernanda dos Santos Ferreira
Ilustração: Pietro Luigi



Maria tinha uns 20 anos, a pele super branca salpicada por sardinhas e os cabelos negros e compridos. Abusava de sua sobriedade para mexer com as forças do além e com os senhores, pais de família. A melhor faxineira, auxiliar de borracharia, cozinheira... Maria mudava de profissão como mudava de casa. Sem família, foi adotada pelo bairro. A cada mês a menina faria a felicidade de uma casa, de um trabalho e de vários homens.
Havia um homem em especial que despertava os mais diversos interesses em Maria. Ele era conhecido como Cova, pois nem os mais velhos do bairro o conheciam. Assim como seu nome, quase tudo sobre sua vida era desconhecido, o endereço, a idade, a cor do cabelo, se tinha família... o Cova era o "guardião do outro mundo", o coveiro do cemitério que ninguém nunca vira, mas que cumpria seu serviço toda a noite. 
Maria sonhava em conhecer o Cova. Pensava nele em cada ruga de seus amantes, cada mão calejada que lhe apertava os seios e passeava por seu ventre.
Na noite da quarta-feira de cinzas, um corpo escultural adentrou o cemitério. Quadris largos, seios miúdos que acenavam por de baixo da blusa cor creme e exalavam cheiro de baunilha, o rosto magro das dificuldades, o longo cabelo embaraçado que era soprado pelo vento sobre as bochechas como um véu. Maria, mais viva do que nunca.
Enquanto passeava pelas lápides, tudo ao seu redor ganhava vida. Deitou sobre um leito de mármore e sentiu a pedra gelada eriçar todos os seus mais finos pelos. Sua mão esquerda embaraçava mais o cabelo, enquanto a outra descia pela parte interna da coxa marcando sua pele com as unhas sujas de terra. Com os olhos fechados, Maria sentiu a garganta apertar, trêmula. Levou suas duas mãos ao pescoço e sentiu uma pele dura, fria, cheia de calos. Abriu os olhos e viu um senhor grisalho, surrado pelo tempo, com as mais profundas rugas que já vira. Sorriu um sorriso preto, quase sem dentes e agarrou o cabelo de Maria. O nariz enrugado encostou a orelha branca e exalou um cheiro de cigarro. Era o Cova. Maria podia sentir na mão que apertava sua garganta, era o Cova. Na mão que embaralhava seus seios, era o Cova. Na língua quente que molhava seu umbigo, era o Cova. A cada grito, cada músculo contorcido, cada vez que sua respiração descompassava, era o Cova. 
Maria deitou o homem no mármore e abraçou sua cabeça com as coxas. Do prazer ao desespero, Maria assistiu o homem se debater. Com o rosto lubrificado e o peito silencioso, o Cova não suportou Maria e morreu em meio ao que lhe dava vida. 
O corpo do coveiro nunca apareceu e nas semanas, meses subsequentes, os mortos do bairro continuavam sendo enterrados.
No bairro dizem que Maria ficou louca após olhar dentro dos olhos do Cova. A felicidade nunca mais pairou tão plenamente entre as famílias, os homens começaram a adoecer e suas famílias a morrer de fome.
Maria nunca esteve tão completa. Seguia todas as noites no cemitério, dormia um dia em cada túmulo. Dava vida aos padecidos, e eles davam vida a Maria. Os gritos enlouquecidos que horrorizavam o bairro eram o mais puro prazer de Maria.

Pietro Luigi

Fernanda dos Santos Ferreira

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