Texto: Daniel Gonçalves
Arte: Francisco Gusso
Quando criança, eu costumava atravessar paredes. Acontecia à noite, após minha família recolher-se para o sono. Recordo-me das sensações que precediam a experiência — a casa escura, o tic-tac do relógio, o murmúrio distante do refrigerador. Então, eu fixava meus olhos no teto e, com alguma concentração, meu corpo formigava, minha audição cessava e, por fim, havia o desdobramento de meu corpo.
Em minha manifestação etérea eu transitava livremente de construção em construção, rua após rua. Cada dia um pouco mais distante, mas nunca além de onde me fosse familiar. Eu tinha pouco menos de 10 anos e, apesar de fascinado, temia pelo que me pudesse acontecer. Nesses passeios, o mundo parecia outro. Era noite, mas uma tênue luz crepuscular pairava no horizonte, para qualquer lado que eu olhasse; e no centro da abóboda celeste, as estrelas brilhavam como luzes de Natal. As construções eram vultos translúcidos, das quais era possível distinguir a argamassa, os tijolos, encanamentos, vigas, telhas — tudo. E ainda, outras edificações e vegetação desconhecidas se sobrepunham, como camadas holográficas, desconexas e evanescentes. As pessoas, eu percebia como figuras sem definição, mas com uma luminescência característica. Um som grave e perene parecia chegar das estrelas, emanado das engrenagens do universo.
Em um desses passeios, que acabou por ser o último, vi uma pessoa caminhando em minha direção. Fiquei imóvel, esperando que passasse ao largo — mas não. Aquela pessoa, ou entidade desconhecida, não brilhava como as demais. Ela parou ao meu lado e voltou-se para mim. Pude distinguir seus olhos em meio à matéria enevoada. Apavorado, eu corri e, no meio do trajeto, perdi os sentidos. Quando recobrei minha consciência, já estava em minha cama, olhando para o teto. Havia um peso sobre minhas pernas — um fardo terrível. Um homem disforme que me observava. Possuía um bigode negro que lhe cobria a boca; seu nariz, que começava no topo da testa, era tão largo quanto o rosto; seus olhos eram pequenas esferas negras; o cabelo parecia uma pelagem animal, grosso e ouriçado. Sem que eu pudesse enxergar seus lábios, ele me disse:
— Menino, se dormir eu mato você! — Eu queria gritar, mas temia as consequencias. Lutei contra o sono o quanto pude e consegui alcançar o sol da manhã. O homem partiu.
Passei aquele dia exaurido, acuado e febril. Tentei descansar durante a tarde, mas apenas consegui cochilar entrecortadamente. Angustiado, subtraí os minutos até o momento de ir para a cama. Adiei aquilo o quanto pude; lembro de ter rezado muito antes de fechar os olhos. Não demorou, para que o peso sobre minhas pernas me fizesse despertar. Novamente aquele homem sinistro:
— Menino, se dormir eu mato você! — me olhava num misto de gana e escárnio.
Resisti o quanto pude, mas não suportei o peso das pálpebras; fui surpreendido com duas mãos monstruosas esganando meu pescoço, me afundando no travesseiro. O sorriso maléfico. Tudo ficou escuro e me senti em queda livre, até atingir o chão de terra macia. Ofegante, tentei enxergar alguma coisa em meio aquele breu — as lágrimas corriam mudas. De repente, ouvi um gargarejar grotesco e uma chama se acendeu a meia altura do solo. Era uma espécie de cetro, com um globo no ápice, de onde o fogo crepitava. A luminosidade deu forma ao cômodo rigorosamente cúbico, aparentemente esculpido dentro da terra. Olhei para cima e não havia abertura por onde eu pudesse ter caído. O chão, as paredes e o teto exibiam camadas sedimentares e veios de pedra, milimetricamente aplainados. Gritei aterrorizado, quando na minha frente surgiu uma criatura verde imensa. Suas antenas relavam o teto. Assemelhava-se a um gafanhoto, ereto sobre as quatro patas traseiras. As patas dianteiras ele usava como mãos. Da boca enorme, pendia uma massa viscosa e clara, uma espécie de saliva cristalizada, fendida por seus dentes amarelos e pontiagudos. Abaixo dessa baba, o ventre protuberante e segmentado exibia tons de rosa e azul. Os olhos, enormes, tinham íris cor de sangue.
Aproximou-se — a gosma borbulhando pela boca. Fixou seus olhos nos meus e perguntou com uma voz improvável:
— Quer voltar lá para cima?
Assenti com a cabeça.
— Só existe uma maneira de conquistar isso, e não é gratuita. Eu devo acompanhá-lo e coabitar seu corpo físico. Muito embora, eu pudesse ocultar isso de você, pois dificilmente perceberá minha presença. Apenas utilizarei seus sentidos como objeto de estudo. Você tem o direito de não aceitar essa proposta, mas saiba que você amanhecerá um cadáver e, então, deverá trilhar um novo caminho.
— Aceitei a oferta sem hesitações.
O gafanhoto gigante raspou a pata na parede e uma passagem se abriu. Havia uma escadaria ascendente, aparentemente infinita. Após subir algumas dezenas de degraus, despertei em minha cama.
Sigo com uma vida normal. Porém, muitas vezes sou acometido por pensamentos bizarros e posso sentir meus dentes serrilhados com a ponta da língua. Outras vezes, enraivecido, sinto minha boca preencher-se de uma saliva espessa e venenosa, que me impede de articular qualquer palavra. Fico atento a esses sinais e não fraquejo. A criatura me subestimou – tenho disciplina suficiente para não deixá-la eclodir.
Daniel Gonçalves
Radicado em Curitiba, casado e pai de três filhos. Teve toda sua vida permeada pela paixão à literatura, artes visuais e música. Atual editor da revista LODO e co-editor da revista LAMA, seus trabalhos podem ser visualizados no site www.danielgoncalves.art.br . Paralelamente aos trabalhos artísticos, desenvolve projetos de arquitetura e design.
Francisco Gusso
Seus trabalhos podem ser visualizados no site http://franciscogussoarts.blogspot.com
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