2 de ago. de 2012

Outro Aleph

Ilustração: Foca Cruz
Conto: Fabiano Vianna



Se não me engano, falávamos sobre as novas cadeiras e luminárias no catálogo do estúdio holandês Droog*, no momento que meu amigo Henrique Schroeder revelou conhecer um sujeito que encontrou uma réplica do Aleph, de Borges, em uma de suas peregrinações pelas feiras de objetos raros em Suez.
Como Henrique trabalha com importação e exportação de artefatos de design, possui muitos contatos. O referido cavalheiro deixou claro que não era o original, mas que possuía o mesmo poder de clarividência do elemento primordial. E, que não era também, o tal escondido numa das colunas de pedra que rodeiam o pátio central da mesquita de Amr, no Cairo. Parece que o tal sujeito faleceu e, desavisadamente, sua família teria vendido o mítico objeto junto com outras antiguidades do colecionador. Típico.
Na hora lembrei-me do que Borges vislumbrou olhando para este, porque não dizer – Palantír**, do nosso mundo: “... astrolábios persas, cartas obscenas, um adorado monumento na Chacarita, bisontes, um baralho espanhol numa vitrina de Mirzapur e a lembrança do rosto de Beatriz que o tempo aos poucos, parecia fenecer...”
“O Aleph é um dos pontos do espaço que contêm todos os pontos. O lugar, onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do mundo, vistos de todos os ângulos.” (O Aleph, 122). “O olho que revela tudo, inclusive a quem o vê, vendo.” (Tibério Santos – Aporias).
Pensei no poder que possui um artefato deste: saber o que pensa o inimigo – aquele que cochicha pelas minhas costas, as artimanhas necessárias para conseguir um “freela” numa agência grande, as palavras ideais para conquistar meu chefe da editora – a desculpa perfeita para uma tarde livre num café, ou a solução do enigma de como administrar o próprio escritório e pagar o aluguel em dia...
Mas não vislumbrei apenas usos capciosos, mas também a possibilidade de rever os melhores momentos com minha namorada, nos seis anos, juntos, morando na mesma cidade. Os detalhes do café português na Galeria Tijucas – que já se abrandam na minha memória, onde tivemos as primeiras conversas e contamos um para o outro nossos causos fantásticos. O bar com a motocicleta “retrô” incrustrada – onde nos conhecemos e assistimos a nossos melhores shows de rock. O restaurante japonês na rua dos bombeiros – tão querido pela sua arquitetura tradicional com mesinhas de madeira e gravuras orientais nas paredes...
Os prédios da cidade são engolidos e retornam reformulados de ano em ano. Os bares mudam de donos e nomes. A cidade, que é como a memória, se esvai muito mais rápido do que conseguimos apanhar.
Meu amigo me passou uns dois ou três endereços de antiquários que possivelmente abrigariam o artefato. Anotei em meu Moleskine e perambulei, no outro dia, pela cidade, a pé – como costumo e gosto de fazer diariamente. Passei por todos os lugares, inclusive noutros, perto. A maioria das lojas desse tipo se encontram no centro, entre a Riachuelo e a Paula Gomes.
Atentei para cada objeto circular, esferas, esculturas.
Na 13 de Maio, achei que tivesse o encontrado. Uma pelota escura dentro de um baú. Mas olhei atentamente e não vi nada. Nenhum vislumbre, nenhuma imagem do passado ou futuro se revelou. E aí o dono do antiquário me falou que o item pertencia a uma velhinha chamada Amélia, de um casarão na mesma rua. Fui embora frustrado. Juro que acreditei que fosse encontrá-lo. Depois liguei para meu amigo Henrique e contei meu feito.
Só depois que me atentei para o fato que, talvez, o Aleph não possua exatamente a forma circular que eu imagino. Lembrei que a ideia do objeto que eu guardo na memória é equivalente a uma fotografia na capa da edição publicada pela editora Globo, em 1969 ou de uma ilustração do Foca.
Nossa memória tem o costume de gravar certas imagens como se fossem reais. Se eu tento lembrar as gravuras do restaurante japonês da rua dos bombeiros, por exemplo, me vêm a cena de uma gueixa com um vestido composto de flores de cerejeiras. Mas não sei se esta figura não corresponde à gravura de  outro restaurante, o Mikado – na São Francisco, que eu frequento até hoje.
Talvez eu tenha passado pelo Aleph sem perceber. Pode ser que sua forma não seja esférica ou elíptica como o Palantír, afinal de contas. Ainda mais tratando-se de uma réplica. Pode ter a forma de uma moldura, ou de um espelho. Poderia ter até mesmo a aparência de uma pirâmide, como aquele peso de papel empoeirado que eu arrastei para ver fotos da Rua XV em 1948...
Ou o homem que o possui, sabe de seus poderes, e me viu indo ao seu encalço. Observou-me durante todos estes dias – desde a conversa com Henrique sobre o catálogo Droog, às lembranças de minha amada e a busca do objeto pelo centro da cidade.

* Droog (droog é uma palavra holandesa que significa "seco") é uma empresa de design conceitual holandesa situada em Amsterdã, Holanda.
** Os Palantír são artefatos mágicos do universo ficcional criado por  J.R.R. Tolkien.

 Fabiano Vianna 
Brasileiro. Nasceu em Curitiba, Julho de 1975. Formado em Arquitetura e Urbanismo. Trabalha como diretor de arte, designer, ilustrador e escritor. Como escritor expressa sua literatura na forma de fotonovelas. Lançou em Outubro de 2009 a revista de literatura pulp, Lama. Em Junho de 2011, lançou a Lama nº 2. Gosta de Moleskines, fotonovelas, charutos, lambretas, gravatas, noir e literatura fantástica. Não fica nem um dia sem o café tradicional das padarias do centro da cidade. Mantém também o blog www.contosdapolpa.blogspot.com. 


Foca Cruz
Luiz Alberto Cruz, Foca, parnanguara, primeira lembrança na vida foi ver Neil Armstrong numa tv preto e branco andando feito um bobo na lua. Nessa época já existiam dinossauros e os carros de corrida na oficina do lado. O primeiro livro lido foi "Viagem à Lua" de Julio Verne. Ganhou do irmão pintor uma "Rotring" 0.3 aos 10 anos, daí em diante fodeu, pois logo ficou claro de fato que desenhar é como tocar violino em público: ou é muito bom ou da ânsia de vômito. Adam West. Também o do próprio: www.focacruz.wordpress.com

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