Conto: Fabiano Vianna
O meu amigo Ramon Garcia sempre foi metido a fazer esportes de aventura. O
cara vivia me convidando, na época que estudávamos arquitetura, a acompanhá-lo
em subidas aos picos do Anhangava, Marumbi, Salto dos Macacos... Mas eu nunca
fui destes passeios. Sempre preferi o clausuro das bibliotecas e a segurança de
uma vida pacata, caseira. Ele entendia isso e com o tempo desistiu de me
chamar.
Ontem nos encontramos no Café
Metrópolis, no centro. Ramon, como está numa onda de bicicletas, prendeu
sua “fixa” no poste em
frente. E eu já estava lá em minha mesa habitual, quase
encostado no balcão do caixa – onde é possível assistir de um bom ângulo todo o
movimento da cafeteria e da rua.
Contou-me da sua última viagem à Patagônia. Disse que o grupo era formado
por cientistas e arqueólogos que estavam à procura de um antigo artefato
místico, e aparentemente apócrifo, no alto das montanhas geladas.
Surpreendi-me em saber que além das aventuras habituais, Ramon estava
escalando na neve também. E é claro, fiquei curioso para saber que objeto era
esse.
Antes me falou das intempéries. Disse que o branco era tão branco que
enegrecia a vista. E nenhuma roupa, por mais grossa que fosse, protegia do
frio.
“Tinhámos que nos equilibrar em
grandes blocos de gelo, escorregadios, e ainda por cima desviar da neve que
desabava. Quando encostei o rosto rente à montanha, ouvi os estalos do gelo se
despedaçando. Assustador, cara!”
Nesta hora eu pensei que a única montanha que eu enfrento é o Edifício
Tijucas. Diariamente subo até o décimo andar para encarar minha gélida caverna
escura. A escalada também é difícil, sobretudo nas segundas-feiras.
Quando perguntei a Ramon que objeto os arqueólogos procuravam, ele
desconversou. Falou que só encontraram morte nas cavernas, um grupo de dez
alpinistas sem vida, em um acampamento nas alturas.
“Os corpos estavam conservados, provavelmente
por causa do frio. Deviam estar lá há mais ou menos cinco meses. Revistamos
suas coisas e encontramos diários e anotações, escritos em uma língua que eu
não consegui decifrar, mas um amigo me disse que era sérvio. Alguns papéis se
encontravam rasurados, como se rasgados por unhas de bicho. Algumas páginas
fugidias, manchadas, estavam grudadas no gelo. Trouxemos o que restou dos
diários e hoje ele me mandou por e-mail uma parte muito assustadora, traduzida
por um professor da Federal, que quero ler para você. Posso?”
“Claro.”
Por isso Ramon quis me encontrar. Ele sabe de meu interesse por histórias
sombrias deste naipe, por causa da revista pulp que eu publico.
Mas apesar de já ter se aventurado a escrever alguns causos, ele não
possui o foco necessário para a literatura. E entendo isso. Porque escrever é
mesmo um calvário.
Pedi logo que ele lesse o trecho do e-mail.
“...os barulhos ameaçadores
voltaram ontem à noite. Acho que uma criatura ou máquina caminha por dentro do
gelo. Como isso é possível? Jovanov iluminou algo nos seguindo na neve. Estes
estrondos são muito diferentes do trepidar das estalactites. Ivanovic
está muito doente, acho que contraiu algum vírus. Eu sinto a presença de algo entre
nós. De vez em quando tenho a sensação que alguém me sufoca, como se me
impedisse de respirar...”
Esta região da Patagônia sempre me interessou. Sobretudo as lendas de
artefatos escondidos nas catacumbas gélidas, como o Santo Graal e a Arca da Aliança
de Salomão. Reza a lenda que Hitler em pessoa vagou por estas terras em
busca dos poderes mágicos destas peças.
Pergunto a Ramon se o referido objeto que estavam procurando tinha algo a
ver com isso. Mas ele me diz que ouviu apenas eles comentarem alguma coisa
sobre um livro, mas que o título lhe é impronunciável.
Relata-me que a missão era encontrá-lo, mas depois pescou um comentário –
saído da boca de um dos intérpretes brasileiros. O cara disse que o tomo estava
de posse deles e deveria ser escondido dentro de uma câmara ou gruta no alto de
uma das montanhas para ser esquecido.
“Possuía um título comprido, com
quatro ou mais palavras, e uma ilustração de um demônio de braços abertos numa
das páginas do meio. Faz ideia o que seja?”
“O único livro que me vêm em mente
é o Codex Gigas.”- digo a ele.
Este livro, que em latim
significa Livro Gigante, é
considerado o maior manuscrito medieval existente no mundo. Foi criado no
início do século XIII, provavelmente no mosteiro beneditino de Podlažice, na
Boémia, e agora está preservado na Biblioteca Nacional da Suécia, em Estocolmo.
É também conhecido como a Bíblia do Diabo, devido a uma grande figura do
Satanás no seu interior e da lenda em torno da sua criação.
Segundo a história, o escriba foi um monge
que quebrou os votos monásticos e foi condenado a ser murado vivo. Para evitar
esta rígida pena, prometeu a criação, em uma única noite, de um livro que
glorificaria o mosteiro para sempre e que incluiria todo o conhecimento humano
em suas páginas.
Perto da meia-noite, quando teve a certeza
que não conseguiria concluir o livro sozinho, fez uma oração. Não dirigida a
Deus, mas à Lúcifer, pedindo-lhe que o ajudasse a terminar as últimas páginas
em troca da sua alma.
Não seria impossível que os sérvios
estivessem em posse do livro. Soube que os nazistas roubaram-no da Rússia
durante a Segunda Guerra. Aí muitos alemães vieram para a América depois da
derrota, e a maior concentração de nazistas foi parar justamente na Argentina. O
tomo misteriosamente sumiu do lar dos Mengele
logo após a morte prematura e inexplicável do último deles.
Lembrei também de outros livros macabros,
como Livro de Urântia – que dizem ter
sido escrito por seres supra-humanos das mais diversas ordens e Manuscrito Voynich, composto de
caracteres indecifráveis.
Mas, talvez não seja nada disso afinal. Porque o título que Ramon imagina ter ouvido
era mais longo que Codex Gigas, Urântia
ou Voynich. Os cientistas disseram que o volume era composto apenas de
imagens e nenhuma palavra.
“O
título começava com Tempat alguma coisa.
Cara,
tem sido um tormento sonhar com esta expedição todas as noites. Os devaneios
misturam-se com a realidade. Já não sei o que realmente ouvi ou inventei.
Escutei
barulhos horríveis à noite, na caverna. Foi péssimo permanecer tão perto de
tanta gente morta. Na escuridão da gruta, senti-me acompanhado, mesmo tendo a
certeza que estava sozinho.
Outra coisa que me deixou
desesperado é que os rostos dos mortos eram iguais, como se fossem gêmeos. E
todos muito parecidos comigo.”
Ramon bebeu o café num gole só e se mandou. Eu ainda fiquei um tempo na
mesa, terminando de comer uma empada do Caruso que chegara há pouco.
Ele se despediu rente à floreira, já montado na bike, e me disse que se
tivesse mais notícias dos relatos me enviava por e-mail.
“Falou man!”
“Até!”
Fiquei cabreiríssimo com a história, e conjecturando, claro, escrevê-la.
Mas talvez se trate de um relato a ser esquecido. Penso se todo livro não é feito
para nos esquecermos dele, afinal.
No elevador tentei abstrair, imaginando outras coisas. Clientes, ilustrações, camisetas. E juro: senti que não estava sozinho na cabine. Tive
falta de ar. Era como se algo tentasse me sufocar. E então o elevador deu uma travada entre o
sétimo e oitavo andar, mas graças a Deus voltou a funcionar.
André Ducci
Brasileiro. Nasceu em Curitiba, Julho de 1975. Formado em Arquitetura e Urbanismo. Trabalha como diretor de arte, designer, ilustrador e escritor. Como escritor expressa sua literatura na forma de fotonovelas. Lançou em Outubro de 2009 a revista de literatura pulp, Lama. Em Junho de 2011, lançou a Lama nº 2. Gosta de Moleskines, fotonovelas, charutos, lambretas, gravatas, noir e literatura fantástica. Não fica nem um dia sem o café tradicional das padarias do centro da cidade. Mantém também o blog www.contosdapolpa.blogspot.com.
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