Ilustração: Isabele Linhares
Conto: Diego Fortes
- Mas o quê?!? Acordo com uma épica dor de cabeça. Quanto tempo será que eu dormi?A
porta do apartamento está aberta. Meu pescoço dói. Aos poucos, vou lembrando em
flashes: Melinda... seus seios... Juraci Esmaga-Crânio... suas mãos de cacho de
banana... a navalha... “Um Cão Andaluz”... Meus vizinhos passam pela entrada do
meu apartamento e me olham caído no chão. Ignoram e seguem descendo as escadas.
Ninguém quer saber de confusão. Se um dia me matam aqui dentro, só os
cobradores irão descobrir. Mundo cão. Levanto titubiante e vou fechar a porta.
Um pé usando um velho Kichute fica preso na soleira.
- Mas o quê?!? Puxo um bracinho magro para dentro e logo lhe dou um mata-leão. “Quem
é você?” “Você está sozinho?” “Ainda existe Kichute?!?” O sujeito quer dizer
alguma coisa, mas não consegue. Tenho medo de soltá-lo. Carrego o miserável
pelo pescoço até a gaveta do armário, tiro uma pistola e logo aponto para ele.
“Senta aí!” Ele obedece. “Vamos por partes: quem é você?” “Meu nome é Joaquim,
mas todo mundo me chama de Fuinha.” Não me dei ao trabalho nem de perguntar por
que, estava muito claro. “O que você quer comigo, Fuinha?” “Eu era um dos
Esmaga-Crânios. Meu irmão era o Miguel Pacotinho.” Lembrei da história inteira:
traficantes de pó e crack, traição interna, massacre no churrascão em
Piraquara, mas uma coisa não fechava: “Como foi que você escapou do Juraci?”
“Eu acho que ele perdeu a conta, sabe? Já me disseram que eu não tenho uma
personalidade muito marcante. Na maior parte do tempo, as pessoas nem notam a
minha presença. Então, eu acho que o Juraci esqueceu que eu existia. Ou talvez,
nunca soube... A questão é que eu vi ele estraçalhando a cabeça de todo mundo e
fugi.” O rapaz estava tremendo. “Eu tenho seguido ele e sei onde ele mora.”
- Perfeito! Temos um plano! Esta trama estava ficando cada vez mais complexa, mas
tudo o que eu deveria fazer era encontrar o tal do Juraci Esmaga-Crânio, fazer
ele me levar até o Q.G. da G.L.A.C. e talvez até encontrar Melinda. Melinda...
como ela pôde fazer isso comigo? Me deixar para ser morto por um brutamontes
daquele? Na verdade, tudo isso é culpa minha. Não soube tratá-la direito.
Sempre fui um egoísta filho da puta... Será que se eu a perdoasse, ela me
perdoaria também? Haveria um final feliz para pessoas como nós? Será que...
- “Senhor? Senhor?” O Fuinha tinha
razão, sua presença não era muito marcante mesmo. Imergi em pensamentos e
esqueci que o cara estava ali na minha frente. “Podemos ir no seu carro?” “Não
tenho carro.”, respondi. “Diga mais ou menos pra que lado a gente vai que eu
verifico qual a linha de ônibus.” Porra, Tarumã?!? Fazer o quê? Bom, tomar um
banho, o alimentador só passava dali a meia hora. Fiz a barba, troquei de
roupa. Se eu vou atrás de um assassino enorme, pelo menos vou bem vestido.
Nunca se sabe o que pode acontecer! Cada segundo pode ser o último! Minha vida
é assim, como um... “Senhor?” O Fuinha, de novo, me interrompe os devaneios.
Como é fácil esquecer dele!
- “Olá! O senhor é o Sr. Strike?”,
ela disse com aqueles lindos lábios. “Pode me chamar de Lucky”, disse eu
sorrindo para o lado. Ela era tudo o que me prometiam os contos de detetive.
Uma mulher jovem, cabelos de propaganda de xampu, perfume intoxicante, pernas
de amazona, busto exemplar. Pensei que se eu não fosse detetive particular, uma
mulher daquelas dificilmente estaria falando comigo. Esta profissão enfim se
pagava. “Em que posso ajudá-la?” “É meu namorado...” “Está desaparecido? Já
pediram resgate? Ainda tem esperança de ele estar vivo?” “Não... Não é isso. O
caso é outro. Eu desconfio que ele esteja me traindo.” Nós homens somos demais
mesmo!, pensei. O sujeito com uma mulher dessas e pulando a cerca! Bom, a gente
nunca sabe. Esta talvez fosse uma chance para conhecer uma mulher ainda mais
atraente. Pensei isso, mas desconfiei que uma mulher mais linda do que esta
seria impossível...
- Uia!!! Não é que eu tinha
razão?!? O namorado de Amanda (Amanda... que nominho
lindo...) era um desses pitboys que vivem em academia. Tinha lá seus hábitos
regulares: corria de manhã no Barigüi (sempre sem camisa, não importasse o
frio), almoçava numa dessas lanchonetes naturebas, batia o ponto na empresa do
pai e logo ia para a academia onde ficava até o anoitecer. Se naquela noite ele
não encontrasse Amanda, ele iria beber com os amigos na Vicente Machado,
subiria no seu carro importado e iria conferir suas amigas da Rua Saldanha
Marinho. Não as prostitutas, mas as travecas. Inacreditável! O rapaz com uma
mulher daquelas... Bom, gosto não se discute! Cada um com o seu e que seja feliz
da maneira que conseguir. De qualquer forma, eu tinha que prestar contas com a
minha cliente.
- “Quer um lenço?” Achei que sua reação seria de desamparo - ser enganada pelo namorado
com inúmeras travecas de rua! Mas não. Sua reação foi da mais completa e total
neutralidade. “Tá tudo bem?”, eu perguntei. “Tá”, ela disse, “eu só tava
curiosa, ele não era exatamente o amor da minha vida, sabe? Eu acho que me
atraí por ele por achar que meu pai não iria gostar dele. Eu sou um desses
clichês ambulantes da menina com problemas com o pai”, disse ela me puxando
pela gravata. Nos vimos por mais de três meses. Ela me ligava de repente e eu
ia encontrá-la. Ou então, ela aparecia lá em casa sem avisar. Eu nunca podia
contatá-la, era sempre ela. Mas como valia a pena! De uma hora para outra, ela
sumiu. Até então, eu achava que ela havia feito as pazes com o pai.
- “Ali!”, sinalizou o Fuinha,
apertando o botão para o ônibus parar. Descemos perto do Parque Stravinski. O
parque era um esconderijo ideal: afastado do Centro da cidade, longe de
qualquer delegacia e a movimentação de gente era constante. Era um misto de
parque de diversões com circo. Tinha a roda gigante, a montanha russa, mas
também tinha a jaula dos leões, uma grande tenda e pessoas que passavam fantasiadas.
Chegamos perto de um trem fantasma. O Fuinha apontou para lá. “Você tá louco?
Você tá dizendo que o Juraci mora dentro do Trem Fantasma?” “O trenzinho só
ocupa metade do barracão, tem um fundo falso que você chega entrando num caixão
no meio do passeio.” “Você já entrou lá?” “Não. Eu tenho medo. Eu segui ele até
aqui. Foi por isso que eu fui atrás de você. Vai na frente!” “Eu?!?” “É, você
que tá armado.”
- Aaaaaahhhh!!! Os adolescentes na nossa frente gritavam. Os meninos levavam as
meninas na esperança de elas pularem no colo deles. Para que no meio de todos
os sustos e terrores, eles sutilmente conseguissem apalpar alguma coisa. O
truque mais antigo do manual. Chegamos no tal caixão. “Vai você na frente!”
Pulei do carrinho. Os adolescentes atrás de nós nem se deram conta da
movimentação. Forcei a entrada de um tenebroso caixão de plástico - o lugar
dava medo mesmo. Ao entrar na câmara secreta, vi o gigante de frente para um
espelho circundado por foquinhos de luz, tal qual um camarim. Ele se virou assustado.
Sua cara estava mais feia do que os monstros mecânicos ou os atores fantasiados
do parque. Alguém havia prestado socorro a ele costurando seu olho direito,
pálpebra com pálpebra! Logo se levantou e veio em minha direção. Eu saquei a
pistola e apontei para a sua testa. “Alto lá, se não quiser perder o outro
olho!” Ele grunhiu com raiva. Fuinha apareceu detrás de mim: “Isso é pelo meu
irmão!” e chutou com seu Kichute a canela do ciclope furioso. “Não, Fuinha!
Pare!” Fuinha agora esmurrava o tronco de Juraci e ele nem se movia.
- “Pare, Fuinha, já disse!” Neste momento, o Esmaga-Crânio esbofeteou a cara do pivete que voou na
minha direção me fazendo derrubar a pistola. Veio atrás dele, agarrou-o pela
blusa e, como num golpe de Luta Livre, o atirou na minha direção. Caí de
barriga no chão, tentando encontrar a minha pistola no meio daquele chão de
grama e serragem. Que estrago aquilo fazia para a minha roupa! Arrá, minha
pistola! Aos alcance dos dedos... Ah, minha mão! Uma botinha Louis XVI me
castigava os dedos. Olho para cima e...
- “Mas o quê?!? Amanda?!?” “Lucky?!?”
“O que você está fazendo aqui?” “Eu trabalho aqui não está vendo?”, disse ela
trajando uma fantasia de vampira francesa do Séc. XVIII. “Não! Não pode ser!
Você é rica, é jovem, é herdeira!” “Meu pai me expulsou de casa porque eu não
quero tirar o bebê.” “Bebê?!? Você tá grávida?” - fiz as contas rapidamente na
minha cabeça pra não ter que perguntar se o filho era meu. “Sim, grávida de
quatro meses.” “E quem é o pai?” Um chute bem dado na boca do meu estômago
quase me faz perder a consciência. O sujeito era mesmo muito forte. Abro o olho
e vejo a sola do seu coturno na direção da minha cara - ele iria fazer jus ao
seu apelido. “Não!!!”, gritou Amanda. Ele parou a uns 5cm do meu nariz. “Eu não
quero que o nosso filho presencie violência.” “Nosso filho?!? Você está grávida
do Juraci Esmaga-Crânio?” “O Juraci e eu estamos tentando construir uma
família. Foi com a ajuda dele que eu parei com as drogas. Ele é uma pessoa
maravilhosa que também está tentando fugir dos preconceitos da sociedade.”
“Esse homem é um criminoso! Ele tentou me matar!” Era a minha vez de voar um
pouquinho: ele me agarrou pelo terno e me jogou em direção ao espelho.
Crasshhhh!
- “Juraci, se acalma!”, apela Amanda. Não sei com que espírito, eu continuei falando: “esse
seu pai é um idiota! Mas não é por isso que você tem que acabar com a sua vida!
O que nós dois tínhamos era especial...” Juraci olha, severamente, com seu
único olho para Amanda. Olha para mim novamente e me faz atravessar as paredes
de MDF do Trem Fantasma. Craaack!!! Caio no colo de um casal de adolescentes e
o trenzinho segue seu curso fazendo a curva numa teia-de-aranha de algodão.
Escuto seus passos em meio aos gritos
juvenis dos passageiros do horripilante trem. Arranco uma cruz de
madeira de uma cova falsa e espero. Assim que ouço seu grunhido, acerto-lhe em
cheio no meio da cara! Pooowww!!! Não dá certo... Ele só fica mais bravo. Eu
corro procurando uma saída. Putaquepariu! Ele vem atrás de mim empurrando adolescentes
pelo caminho. Uma luz! A saída! Corro para um terreno baldio alagado atrás do
parque arruinando meus sapatos e minhas meias.
- Táxi! Não tenho dinheiro para chegar em casa, mas uma corridinha que me leve
para longe daquele monstrengo já é uma grande ajuda. Então, Amanda havia levado
a história de incomodar o pai sério demais. Engravidar do próprio traficante!
Que horror! Estaria ela metida no esquema de chantagens da Gangue dos Lixeiros?
Será possível salvar essa menina? E Melinda, onde terá se metido? Será que é
seguro eu voltar para casa? Passarei lá apenas para pegar o meu dinheiro de
emergências e me esconder em algum hotelzinho barato. Ah, eu realmente preciso
de um drinque hoje! Estranho... Não consigo deixar de ter a sensação de que
estou esquecendo de alguma coisa...
Isabele Linhares
Seu portfolio online: isabelelinhares.daportfolio.com
Diego Fortes
É ator, escritor, tradutor e diretor. Nasceu em 1982. Bacharel em Comunicação Social, tem passagens pela Escola Técnica de Formação de Atores da Universidade Federal do Paraná, pelo Ateliê de Criação Teatral e entre diversos outros. Fundou A Armadilha - cia. de teatro em 2001, companhia pela qual montou os espetáculos Marias (2004), Café Andaluz (2005), Os Leões (2006), Bolacha Maria - um punhado de neve que restou da tempestade (2008) e Jornal da Guerra Contra os Taedos (2009). Em 2010, escreveu e dirigiu - com a colaboração da artista mineira Grace Passô - a peça Os Invisíveis, pela qual recebeu a segunda indicação à Melhor Direção do Troféu Gralha Azul. Mantém contato colaborativo com autores de outros países latinos.
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