30 de jul. de 2012

C'est la vie

Ilustração: Elis Marina B
Conto: Diego Gianni

Um ruído horrendo.
Um gemido, coisa assim. Não era humano.
O homem gordo, calvo e de meia idade acendeu o abajur, entre o sono e o susto. O relógio mostrou em cor vermelha feita os seus olhos: três da manhã. Um horário maldito para quem sofre de insônia, dorme a base de tarja preta e precisa estar no terminal de ônibus as seis e meia da matina para ir rumo a um trabalho qualquer. Que merda de pesadelo escroto.
Mas então...o som novamente,
feito choro de criança febril e convulsiva.
Não era um pesadelo, não era a porra de um pesadelo!
Levantou da cama então, ele, o recém viúvo obeso, calçou os chinelos, saiu do quarto e desceu a escadaria, guiado pelo barulho estridente. O som vinha da cozinha, iluminada pela luz da geladeira que alguém deixou aberta.

Mas quem? Na casa ampla e fria, agora só moravam ele e a filha, um anjo de menina.

Foi se arrastando receoso até a porta da cozinha, preparado para sei lá o quê.
Besteira.
Nada poderia tê-lo preparado para aquela imagem.

Esqueci de mencionar que o gordo tinha um gato. Ele e a falecida esposa deram o gato de presente para Doralice quando ela tinha o que...dois aninhos?
Agora era um gato meio idoso e mole, de doze primaveras.
Era. Não é mais.

No chão da cozinha, o corpo do pobre gato coberto de sangue. O bicho ainda chegou a gemer mais uma vez, uma última vez, quando o dono entrou na cozinha e ficou ali, boquiaberto, a olhar para o animal agonizando.
Passado o choque da primeira impressão, se aproximou do gato para ver o que tinha acontecido. E então pisou em algo viscoso e escorregadio: o pênis do gato. Era dali que vinha a hemorragia, a poça de sangue, a agonia do infeliz.

Não havia sido um acidente.

Subiu correndo para o quarto ao lado do seu, o quarto do seu anjinho, da meio órfã Doralice. Ela dormia. Estava bem. Parecia bem.
Decidiu não acordar a filha e tornou a fechar a porta do quarto, lentamente, como quem quer proteger alguém que ama da crueldade do mundo. Sabia que a filha gostava do gato como se fosse um filho. Como daria esta notícia para ela no dia seguinte? Não fazia nem seis meses que enxugou os olhos de Doralice enquanto baixavam para baixo de sete palmos o caixão preto e ordinário da mãe, que era um amor de pessoa, muito carinhosa com a filha, mas fumou demais, bebeu demais.     

C'est la vie. É a vida.

Voltou para a cozinha e tratou de limpar o caos, esfregar do ladrilho as manchas secas e rubras do massacre. Depois trataria de resolver o mistério, supondo que tudo aquilo fosse real.
Uma pena.
Se tivesse, por algum motivo, por qualquer resquício de desconfiança ou intuição, olhado debaixo da cama da filha, veria uma faca de cozinha suja de sangue.
Doralice dormia mesmo. Serenamente.

Mentira seja mal dita, Doralice recebeu bem a notícia. Relativamente. Chorou nos braços do pai, mas não fez escarcéu. Já era uma moça de treze anos, não era mais “o anjinho do papai”. E ademais, pra quem já perdera a mãe, com o perdão da palavra, o gato é que se foda.
Já fazia meses, amigos notaram, que Doralice parecia anestesiada. Passada a tristeza pela morte da mãe, sua fonte de lágrimas apodreceu. Andava feito zumbi, respondia as coisas automaticamente, qualquer notícia ruim ou imprevista ela respondia sempre com o mesmo gesto, o mesmo dar de ombros: tanto faz, é a vida.

Na madrugada de 28 de julho de 2012, Doralice, a sonâmbula, desceu a escadaria vagarosamente, andou até a pia da cozinha, pegou uma faca e foi indo, indo, indo...indo em direção ao quarto do pai.

Ficou de pé, parada ao lado da cama, “olhando” o corpo do pai em repouso. O velho havia dado pra beber, era seu jeito de lidar com a dor.
E que dor.
Doralice cravou a faca mal afiada nos testículos do pai, que abriu os olhos e urrou de aflição. Olhou ofegante e apavorado para o anjo na sua frente, o seu anjo, a sua menina.

“Mamãe abusava de mim”, sussurrou antes de decepar a cabeça do pênis do progenitor. Feito morta-viva, largou a faca no chão, voltou para sua cama e deitou. Segundos depois, entrou em sono ainda mais profundo. Dormia, serena.

Doralice, hoje detida em um manicômio, reagiu bem a sua prisão.
Relativamente.
Ela, que estava sonâmbula, que não havia feito nada de forma consciente, mal pode acreditar quando o advogado da família contou para ela os detalhes. Por dentro, ela pensou: não posso acreditar que castrei meu pai. E depois, mais surpresa ainda, conjeturou: não posso acreditar que eu castrei meu gato!  
Mas se entristecer, não entristeceu. O advogado pago pelos avós da menina prometeu que ia fazer de tudo para reverter à situação, e que logo ela estaria livre, que nada justificava o clausulo de uma garota tão jovem, com tanta vida pela frente e coisa e tal.
Mas Doralice respondia sempre com o mesmo gesto, o mesmo dar de ombros: tanto faz, é a vida.

C'est la vie.

Diego Gianni
Nasceu em 1.982, na capital de São Paulo. Mudou com a família para Curitiba ainda na infância e começou a escrever peças de teatro em 2.004. No período de seis anos, escreveu mais de cinquenta peças teatrais que foram apresentadas por diversas companhias de teatro em vários estados. Ganhou prêmios de melhor texto conferidos pela Cena Hum (Academia de Artes Cênicas) e também pela Fundação Cultural de Curitiba. 
Tem contos publicados em jornais e revistas e posta textos semanalmente em blog´s e sites, tais como tracasemcedilha.blogspot.com ; acontececuritiba.com.br. 
Recentemente, ganhou o concurso literário promovido pelo evento Risadaria (1º bienal do humor realizada no país), tendo seu conto exposto no mural da Bienal de São Paulo. Está lançando seu 1° livro "Dores crônicas que nem te conto". Atualmente cursa jornalismo.

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