3 de ago. de 2012

Passaúna

Ilustração: Foca Cruz
Conto: Otavio Linhares



Três batidas no vidro da porta. Nenhuma resposta. As pessoas dentro da casa saíram correndo se esconder. Ninguém queria vê-la. Ninguém queria saber da existência daquela velha sozinha que morava na casa ao lado.
De fato, pelo que era sabido no bairro, se tratava de uma senhora de uns noventa anos que mancava pra cima e pra baixo apoiada numa bengala velha de madeira, e que chorava quando não era atendida. Todo mundo sabia que ela chorava quando não era atendida e por isso todos a tratavam mal.

não consigo respirar

É sempre assim com os velhos. Principalmente com os velhos chatos que já não prestam mais e que ficam incomodando os mais novos com seus problemas gástricos, seus ossos quebradiços, enxaquecas, dores e mais dores que deviam ser anuladas por algum tipo de morfina.

- Porque não inventaram um remédio que nocauteie a dor? Talvez a morte seja esse remédio.
- Talvez a morte seja um bom remédio pra esses velhos! Eles estão infestando a cidade igualzinho fizeram com a Europa. Pode crê!

Sussurrou Baltazar que estava dentro do armário, enquanto João tentava se enfiar debaixo da cama.

- Um subproduto velho da cultura! Nada mais!

Bradava com a voz espremida a namorada do Santana, Anita, detrás de um sofá que ficava bem no meio da sala. Esse foi o lugar que restou quando todos se mandaram pros seus esconderijos já manjados. Ela que era nova acabou saindo por último e ficou por ali mesmo, com o baseado na mão, deitada atrás do sofá tentando se comunicar com o namorado que tinha entrado na cozinha, e vez ou outra jogava alguma fruta só pra provocar.

o peito apertado

- Vocês deviam ter um pouco de pena da velhinha. O que que custa dar uma mão?
- Vai lá então, Robin Hood!

Noé estendeu bem o braço pra fora do banheiro e fez aquele sinal com o dedo do meio. Detestava quando José o chamava de Robin Hood. Ele estava mesmo incomodado com a situação. Vendo seus amigos fugindo do que ele imaginava ser apenas um ser humano precisando de ajuda. Mas também não tinha a capacidade de se mover. Estava, como o Zé Galinha diz, “meio ressabiado”. Então, ficou por lá mesmo. Sentou na privada e começou a pensar em coisas boas, sua mãe sempre lhe dizia que pensar em coisas boas atraía coisas boas.

Besteira.

Feito apocalipse corpo desabou quebrando o vidro da porta. Caiu aos pés das bicicletas na entrada da sala. Câmera lenta. O corpo era magro demais. Foi como se um travesseiro de penas de ganso tivesse sido estourado na nossa frente. O vento que entrou pela porta levantando os cabelinhos, a bengala caindo dois metros à frente, o vestido preto com rendas, a cabeça branca quicando três vezes no assoalho de madeira, e no final o sangue escorrendo bem devagar.

- Ela tá morta?

Ela estava morta. E não sabíamos o que fazer.

- Pelo menos ninguém viu, né?!

Anita sugeriu. Tinha medo que sua mãe descobrisse e a mandasse de volta para o interior, cancelando seu curso de jornalismo na universidade católica.

- Cê tá com medo!
- Cala a boca e me ajuda, o corpo dela é pesado.
- Bóra enterra essa véia lá no Passaúna.

Eu estava bem puto porque o corpo ia viajar dali a até a Represa do Passaúna no porta malas do meu carro.

- Porra, Dedé, não fala assim com ela.
- Agora o namoradão vai defender a namoradona?!
- Logo você que sempre foi do tipo “primeiro eu, depois os amigos, depois as namoradas”!

Todos riram menos o Santana e a Anita que se olharam e se abraçaram. Ele gostava era dos peitinhos dela, que cabiam feito uma laranja madura em uma das mãos, enquanto a outra prestidigitava seu clitóris. O bobão confessou isso pra gente dois dias depois de ficar com ela na festa de dez anos do Wonka Bar. Feito um babaca.

- Bem teu tipinho, né Santana?
- Agora vai bancar o namoradão!
- Hahahaha!!!
- Pega as pernas da velha e...

TRIIIMMM

Todos se arregalaram quando o interfone da casa tocou. O corpo da velha caiu pela segunda vez.

- Merda!
- Vai alguém lá na frente ver o que é!
- Porra, vai você, Edu!
- É, pô, cê não tá fazendo nada aí!
- Daê galera!

A porta abriu.

- Uauuuu! Que é isso? Vocês pegaram um peixão e não me chamaram?! Safadinhos?!

O Gigante pulou o muro da casa e foi entrando. Era muito comum isso entre nós, um ia entrando na casa do outro sem pedir licença, e fuçando na geladeira, e mexendo nas coisas, enfim, crescemos assim.

- Essa velha caiu morta pela porta faz meia hora.
- E porque vocês tão com ela aqui no porta malas?
- A gente vai levar ela no Passaúna.
- Pra que? Aquela porra já é um cemitério. Porque a gente não queima dessa vez?
- Porque não fomos nós que a matamos.
- E qual a diferença? Se a polícia chegar agora aqui, vocês vão levar duas semanas pra provar que não foram vocês e não vão conseguir.
- Então?
- Então  o que? Vâmo cavá um buracão, enchê daquelas coisa de pinheiro, e tacá gasolina! Jogâmo uns toco véio por cima e assamo uma picanhota e pronto!
- Será?
- Pra que complicá, Zezé?
- Meu nome é Dedé.
- Foda-se você e esse teu nome de merda. Pega lá aqueles negócio do pinheiro e você aí vai cavando e não olha pra trás.

Gigante filho da puta, foi o que o Dedé pensou. O Gigante foi pra cima da Anita, dando uns amasso nela. O Santana não gostou muito e foi pra cima dele com a pá. Deve ter passado pela cabeça dele dar uma pazada certeira no meio do crânio do Gigante, mas o grandão olhou pra ele e ele ficou paralisado. Não se moveu por uns minutos. Enquanto isso eu e o Edu e o Carlinhos fomos pegar madeira e aqueles negócios de pinheiro pra fazer o fogo. Quando voltamos, a Anita estava dentro do buraco com a velha. O corpo dela parecia que tinha sido dilacerado por um lobo-mamute. Ela estava toda arreganhada e sangrando muito, mas estava morta. O Gigante tinha sumido. O Santana estava com a pá apontada pro céu e completamente congelado. Zumbizaço. Tentamos reanimá-lo, mas nada. O negócio foi encher o buraco com aquelas madeiras e tocar fogo nos dois corpos. Ainda jogamos bastante gasolina pra queimar rápido. Não queria que a mãe do Bruninho chegasse e pegasse a gente queimando a velha da casa ao lado e a gostosa da Anita.

Foca Cruz
Luiz Alberto Cruz, Foca, parnanguara, primeira lembrança na vida foi ver Neil Armstrong numa tv preto e branco andando feito um bobo na lua. Nessa época já existiam dinossauros e os carros de corrida na oficina do lado. O primeiro livro lido foi "Viagem à Lua" de Julio Verne. Ganhou do irmão pintor uma "Rotring" 0.3 aos 10 anos, daí em diante fodeu, pois logo ficou claro de fato que desenhar é como tocar violino em público: ou é muito bom ou da ânsia de vômito. Adam West. Também o do próprio: www.focacruz.wordpress.com

Otavio Linhares
Seus textos e contos podem ser visualizados no site:  otaviolinhares.wordpress.com

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