25 de nov. de 2014

Noite de churrasco, farofa, fritas, aipim e charutos no Gina´s Beef e Mocó do Esley

Conto: Florestano Boaventura
Ilustração: Daniel Carvalho


Chovia na noite em que eu, Dragomir, Linhares e Lufus fomos até o Gina´s Beef a procura de um sujeito conhecido pelo apelido de “Lucélia Santos”.
Vou escrever o que lembro, resumindo algumas passagens para que este relato não se torne extenso demais. O objetivo principal é registrar a noitada.
Linhares tinha uma fotografia do cara num papel de impressora vagabunda jato de tinta, que molhou ao descermos do carro e deixou a imagem toda borrada. Uma bosta.
Ele mostrava o papel no balcão e os caras custavam a enxergar o rosto.  Lufus foi com ele, caso desse alguma merda. (Quem mexeria com um detetive com bigode texano e um cabra barbudo descomunal usando suspensórios?)
Eu e Dragomir pedimos um café na mesa e nos divertimos assistindo um show de strip-tease de uma stripper chamada “Sandrinha Lovecraft”. Ela possuía diversas tatuagens de monstros Cthulhus pelo corpo.
O Gina´s Beef é uma espécie de zona limítrofe entre vários mundos. Entre a Rua Saldanha Marinho e a Rua XV de Novembro. Na Cruz Machado. Um Buraco frequentado por todo tipo de criaturas – vampiros, lobisomens, abantesmas, zumbis, caça-recompensas, matadores, gárgulas, índios, ciclopes, androides, traficas, vagabundos.  Tudo o que há de pior numa cidade suburbana de quarto mundo.
De repente um deus-nos-acuda. Gritaria. Várias pessoas se levantaram e vi um braço voando no meio do povo. Jorro de sangue borrifando no velho ventilador de teto. Uma senhora gorda correndo com os peitos flácidos pra fora, tentando segurar o tomara-que-caia com uma das mãos.
Um outro sujeito, usando gorro de lã se aproximou de nós e mostrou uma besta:
– Florestano Boaventura?
Dragomir voou no pescoço dele. Cravou os dentes. O malaco ainda conseguiu atirar antes de cair e a flecha com ponta de prata ricocheteou na parede ao meu lado e na adjacente, fincando no meio do boné do Miami Heat de um calango que bebia cerveja no balcão como se nada acontecesse.
O clima estava propício para um charuto. Tirei um do bolso do paletó e acendi.
Enquanto o pau corria solto no bar.
As putanas tatuadas quebravam cadeiras na cabeça de outros carcamanos e vampiros que juntaram-se à porrada. (Bastava uma faísca para tudo pegar fogo).
E os churrascos – bifes com arroz, farofa e fritas continuavam a sair da cozinha rumo às mesas. Os shows também não cessavam. Depois da “Lovecraft”, foi a vez de um trio de gurias fantasiadas de X-Men – Tempestade, Mística e Kitty Pride.
Lufus e Linhares apareceram. “Linhaça” com a cabeça do “Lucélia Santos” embaixo do braço, como se fosse uma bola de futebol.
– Podemos vazar. Cadê o Drag?
Dragomir levantou. Sua cara, pescoço, camisa era puro vermelho sangue. Havia sobrado pouco da carcaça do cara que atirou em nós, no chão.
– Opa! Estamos indo?
Enquanto isso, nas mesas ao lado, sujeitos de todas as estirpes se atracavam em pedaços carnes mal passadas gotejantes.

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Lá fora ainda chovia pacas.
Do outro lado da rua, um telão digital passando cenas de uma versão Guerra dos Tronos pornô, com uma Daenerys suburbana dando para vários guerreiros de reinos diversos e depois trepada nua num dragão gigantesco.
Linhaça meteu a cabeça do “Lucélia” numa caixa de papelão e jogou no porta-malas de seu Santana Quantum.
Meu charuto ainda estava em brasa e como Linhares grila que eu fume dentro do carro, sugeri que bebêssemos uma gelada num bar em frente do Gina´s, chamado Mocó do Esley. Eles toparam.
A cerveja estava bem gostosa e foi boa para esfriarmos os ânimos.
Na TV passava um filme serelepe. Pornochanchada. Melhor do que futebol.
Dragomir deu uma limpada do sangue no banheiro.
Pedimos aipim frito com bacon.

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Esta foi só uma das noites regadas a churrasco, farofa, fritas, aipim e charutos no Gina´s Beef e Mocó do Esley.
Já eram quase três da manhã quando saímos.
Linhaça deixou a caixa de papelão com a cabeça do “Lucélia Santos” na porta lateral do Cemitério Municipal e mandou um SMS com o texto: “pacote entregue. está no local. aguardo restante do depósito”.
Até hoje não sei no que o Linhares trabalha.
Fomos embora, rumo ao bairro Uberaba, ouvindo um programa de clássicos dos anos 80 no rádio – Ritchie, Yahoo, Nenhum de Nós, Titãs, Blitz...


Florestano Boaventura
Editor de uma revista de cordel, com temática horror, chamada LODO. A publicação circula  pelos becos de Curitiba desde 1948.

Daniel Carvalho

flickr.com/photos/ilustroide

22 de out. de 2014

Finado

Conto: Diego Gianni
Ilustração: Gustavo Ramos

É o dia em que as flores vivas são deixadas rentes aos mortos. Nesse dia, aqueles que ainda respiram visitam o que sobrou dos seus entes. Em alguns casos, nem o pó resta e as lembranças seguem firmes. É dia de finados.
Antero se preparou para a visita. Usa a gravata que sempre foi a preferida dela, como se isso ainda tivesse alguma importância. O cemitério fecha às cinco da tarde. Restam 15 minutos e a esposa ainda não veio. Antero espera.
Um jovem ao seu lado puxa assunto por puxar.
- Veja que flor linda minha mãezinha me trouxe. Ela sempre teve jeito com essas coisas.
Antero dirige um olhar melancólico à flor e automaticamente espia o próprio túmulo.  Ninguém mais lembra do Antero, somente a esposa. E faltam 15 minutos.
- O senhor – pergunta o rapaz. – não recebeu visita?
- É claro que recebi. – mente com o cacoete de quem morreu faz poucos anos. – Era um tal de gente que não parava mais. Muita ladainha pro meu gosto.
O garoto de vinte e tantos anos olha triste para a lápida vizinha, desprovida de flores e velas. E chega mais uma visita. O jovem sorri.
- Este fez faculdade comigo. Gente boa. Gente muito boa.
O ex-colega fecha os olhos diante do túmulo. O rapaz não ouve, mas entende. É saudade. O amigo volta a si, puxa um cigarro do bolso, acende, traga, oferece com um sorriso triste.
- Aceita, Nelsinho?
O moço sorri, acha graça. Antero pigarreia e tenta sentir o cheiro do tabaco.
- O que eu não daria por mais um desses. – diz o velho e coça a garganta.
Um gato cruza o corredor das lápides e arregala os olhos para Antero, saindo em disparada. O coveiro passa avisando aos visitantes que os portões vão fechar.  Antero dá de ombros.
- Foda-se. – resmunga. – Um dia ela estará aqui, do meu ladinho. 

(...)

Ruth seguiu a vida. Feliz com o marido? Era, mas este também era, e como dito, a vida seguiu. A viúva tem fé de que as pessoas de fato vão para um lugar melhor e aqui fica só o corpo, a ‘casca’, a roupa.
Por isso preferiu ficar na cama. E não sozinha. Osvaldo acende um cigarro, o que a incomoda.
- Meu marido ia fumar na varanda. – murmura.
- Quem? – fala Osvaldo, ainda anestesiado pelo efeito do orgasmo.
- Ninguém. – Ruth silencia. Sente então um calafrio que vem de dentro, um gelo que não saberia explicar. Cruza os braços, leva a manta até o pescoço.
- O que eu não daria por uma boa tragada. – diz o finado ao pé da cama, sem se fazer ouvir. Cai uma nesga de cinzas sobre o lençol manchado.
Ninguém mais lembra do Antero.


Gustavo Ramos

Diego Gianni
Nasceu em 1982, na capital de São Paulo. Mudou com a família para Curitiba ainda na infância e começou a escrever peças de teatro em 2.004. No período de seis anos, escreveu mais de cinquenta peças teatrais que foram apresentadas por diversas companhias de teatro em vários estados. Ganhou prêmios de melhor texto conferidos pela Cena Hum (Academia de Artes Cênicas) e também pela Fundação Cultural de Curitiba. 
Tem contos publicados em jornais e revistas e posta textos semanalmente em blog´s e sites, tais como tracasemcedilha.blogspot.com ; acontececuritiba.com.br. Lançou o livro "Dores crônicas que nem te conto". Atualmente cursa jornalismo.


2 de out. de 2014

Chaves Negras

Conto: Diego Fortes
Ilustração: Zansky

-  Argh! O hotelzinho em que eu me instalo é um muquifo. O colchão encardido encostado na parede amarelada é mais velho do que eu. Na televisão sustentada pelas teias de aranha do suporte enferrujado só pegam 3 canais: o primeiro com chuviscos e fantasmas, o segundo vem com o áudio de um terceiro e o último é um canal pornô com filmes dos tempos em que depilação era luxo... Preciso deste lugar apenas para dormir e guardar as minhas roupas.

-  Bam! Caio pranchado na cama. Estou exausto. Mal consigo desligar a TV e pego no sono. Não sei se foram os sons desconexos vindos do aparelho, mas tenho sonhos esquisitíssimos. Sonho que caminho de noite por um cemitério em frente ao mar, próximo a um bananal. Sou escoltado por um grupo de esqueletos putrefatos, mas muito educados que me conduzem pelo caminho tal como fossem lanterninhas num cinema. Há uma névoa de gelo seco de filme de terror que flutua por cima das cruzes e das lápides. Dois esqueletos apontam para uma delas. Leio o nome: "Lucky Strike” e embaixo uma inscrição: “Nós bem que te avisamos, filho da puta”. Quando acho que não posso me assustar mais, uma enorme mão rompe a terra sob meus pés e me derruba. É o próprio Juraci Esmaga-Crânio saindo da minha tumba com todo tipo de bicho asqueroso saindo do buraco do olho vazado que eu lhe dei. Ele grunhe, se arrasta por cima de mim e segura minha cabeça inteira com as mãos…

-  Aaaaahhh!!! Acordo suado, preciso de um banho. Frio do cacete! Esse chuveirinho do banheiro não esquenta. Não tem box - um banho quase inunda o quarto todo. A toalha, além de secar, serve como esfoliante. A janela não abre até o fim. E tenho até medo de tocar nessas cortinas. Preciso sair daqui e ir para um ambiente menos infecto. Para onde? Me lembro dos esqueletos me mostrando o caminho. Me visto e decido ir para o Chaves Negras.
-
-  A senha?, o rapaz magro de óculos escuros sentado numa baqueta me pergunta. Do que tem medo aqueles que já viram o Diabo?, digo a ele. Esperto - a senha é uma pergunta. Uma pergunta sem resposta, inclusive. “Você pode entrar, ele me autoriza. Passo pela portinhola de mausoléu atrás dele - o rapaz me lembra um dos esqueletos do sonho. O Chaves Negras fica numa galeria comprida onde, lá bem no fundo, funcionava um cinema. A galeria abriga uma série de estabelecimentos sossegados: escritórios de contabilidade, farmácias de manipulação, lojinhas de produtos esotéricos fedendo a incenso, etc. Nem desconfiam que vizinham com um lugar escondido. Quando a porta se fecha, tudo fica escuro e você deve apenas seguir em frente sem conseguir ver um centímetro na sua frente. Depois desses passos cegos, alcança-se uma cortina de veludo que esconde um salão de iluminação aconchegante. Trata-se de um clube de cavalheiros. Eu sei que a nomenclatura soa mal, mas não se trata de uma casa de tolerância. Não. O Chaves Negras é uma charutaria exclusiva e secreta.

-  Quem é vivo sempre aparece! Alcebíades caminha em minha direção com os braços abertos. Quais são as novidades, Lucky?” “Ah, o de sempre... chantagens, assassinatos, prostitutas, sabe como é...”, digo. “Sei bem.O lugar reunia vampiros, lobisomens, adivinhas, detetives e outros tipos de seres. Eram bem-vindos aqueles que buscavam um espaço que não existia no mundo, mas em outra dimensão. “O Isidro está por aí?”, perguntei. Quem?” “Eu preciso falar com ele, com licença.” Ok, ok, a gente se esbarra por aí... No canto mais escuro do Chaves Negras, depois das mesas, do balcão do bar e da última fumaça do último cliente, encontro meu maior professor.

-  Isidro? “Lucky?” Toco sua mão. Isidro é cego. Nem sempre, mas é comum, o encontro sentado meditativo neste Q.G. de figuras excêntricas. Cognac na mão, permanece em silêncio com a postura impecável. Isidro não enverga. Deve ter uns 500 anos, sei lá. Sei muito pouco sobre ele. Quase nunca fala sobre si próprio. Apenas senta, escuta e, se for solicitado, aconselha. Nunca falha. “Nunca más vi tu cara feia por acá, Mr. Strike.” - Isidro brinca em portunhol. “Boa.” “Achaste?” “Achei o quê?” “Buena, mi piadita?” “Achei.” “Yo hice la misma piadinha sin graça en las últimas três vezes en que nos encontramos, Lucky.Fez? Sí, y en todas las veces, dijiste: Buena. Tu mente está turva. ¿Qué pasa contigo, mi amigo? Conto-lhe sobre a gangue dos lixeiros chantagistas, a prostituta assassinada no apartamento do cliente, o Juraci Esmaga-Crânio tentando me matar, conto até do sonho no cemitério
-
- “¡Joder! ¡Que fuerte! Pero la respuesta es muy simples...Observo seus finos cabelos brancos se movimentarem enquanto ele fala pausadamente. Simples? “Sí... Tienes que hacer lo que ellos hacen.Fazer o que eles fazem? Hacer lo que ellos hacen...Claro! Foi um erro tentar confrontar o Juraci, eu deveria ter feito o meu trabalho: investigar. Não sei onde eu estava com a cabeça! Estava com a cabeça entre os seios de Melinda. A reaparição daquela mulher realmente me deixou com o pensamento nublado. Ah, Melinda... quantos erros cometi com você...

-  Ops! Crashhh!!! Na parte mais iluminada do estabelecimento, Alcebíades derruba um copo de uísque no chão. Todos olham na mesma direção. O odor etílico se espalha pelo ambiente enfumaçado. Olho para o lado e Isidro não está mais ali. Ele faz dessas. Dá seu conselho certeiro e esvanece como o cheiro do uísque derramado. Sento em seu lugar. Acendo um cigarro. Peço uma cerveja escura. Conto o dinheiro. Não dá. Vou até o Alcebíades: “Tô meio curto de grana hoje, será que dá pra você acertar pra mim? Fico te devendo. Fica tranquilo, Lucky. A gente se esbarra por aí”, ele me diz com um sorriso embriagado. Gracias!, respondo eu com resquícios do meu encontro con el maestro.

- “Aê, tio, que tá fazeno aí? Fica quieto, moleque! Quem é você? “Eu sou o cara que você vai pagar pra ficar quieto.Putamerda, às vezes, parece que a vida é uma tremenda chantagem. Um chantageando o outro e assim por diante num círculo vicioso. O que faz o mundo girar não é o amor ou Deus ou qualquer coisa bela. É sempre a chantagem. Me ame que eu te protejo.Me ame ou você vai para o inferno. Me paga aí, senão eu saio gritando, ele me diz. Dou cincão pro lazarento e ele sai correndo com o dinheiro da minha passagem de volta. Vai ser uma longa caminhada até o Centro. É uma situação irônica: estou eu, investigando uma gangue de chantagistas, e sendo chantageado por um menino do Parque Stravinski - para onde eu voltei para investigar o lixo do Esmaga-Crânio.

-  Isso é nojento! O lixo. Aquilo de que não precisamos mais. Aquilo que não queremos mais. Aquilo do que nos desfazemos. Ou achamos que nos desfazemos. Pois, enquanto o seu lixo ainda é identificável como seu, ele diz muitas coisas sobre você: seus hábitos alimentares, o jornal que você lê, se você fuma, se você paga suas contas em dia, se você contrata prostitutas no fim-de-semana em que a sua mulher foi para a praia (como no caso do meu cliente). Entre os resíduos domésticos da lixeira atrás do esconderijo do Juraci, eu acho: curativos ensanguentados, dezenas de embalagens de Cup Noodles, uma garrafa de pinga de banana, vidros de café solúvel, adoçante... - até agora nada demais, a não ser que se ele não começar a cuidar melhor da alimentação, vai ter uma baita gastrite em breve. Mas então, estão lá: um recibo de estacionamento perto do parque (ele tem um Chevette marrom), várias notas fiscais do pedágio para as praias (ele vai para lá com frequência), que mais? Espera aí: a garrafa de pinga de banana... Antonina! O brutamontes tem ido a Antonina receber instruções e pagamentos do chefe desta gangue de lixeiros! Há também uns outros papéis dobrados... São letras de músicas religiosas. Deve ser um desses pastores de uma dessas igrejas de Antonina, mas qual? Lá tem mais igreja do que cachorro! Leio mais atentamente o papel: J.E.O.C. - Igreja Jesus É O Cara!

-  Claro! Agora tudo se encaixa: Amanda, com aquela conversa de que o Juraci a havia ajudado a se livrar das drogas - isso é papo de igreja. Não sei qual é a situação do meu cliente nesses dias, mas vou precisar de uma ajuda financeira para ir até o litoral. Levo quase duas horas para voltar a pé do parque até o meu hotel (se é que ele merece esse nome).

-  Ai, desculpa! Abro a porta do meu quarto, acendo a luz e encontro uma camareira vestindo uma das minhas camisas. Desculpa, ai, que vergonha... eu achei que o senhor só voltaria bem mais tarde... quer dizer, eu sei que eu não deveria ter provado as suas roupas, mas é que aqui no hotel nunca tem ninguém tão bem vestido como o senhor e, além do mais, essa roupa é tão perfumada...Não consigo dizer nada, ela desatina a falar descontroladamente. O que um homem como o senhor tá fazendo num hotel como esses? Ai, desculpa, não é da minha conta... Como é que o senhor mantém essas roupas tão bem guardadas? E tão cheirosas... Só consigo rir da ansiedade dela. O senhor é tão cheiroso...Ela me olha. Com a cabeça baixa, me espreita como um animal acuado. Ela é baixa, pele morena, lábios carnudos, cabelo encaracolado. Linda. Boa demais para ser verdade, inclusive. Eu vou deixar tudo como eu encontrei, juro!Ela passa a desabotoar a camisa. Ela usa um sutiã rosa-claro daqueles com lacinho no meio. Seus seios parecem firmes. Seu corpo é atlético. Olho tempo demais para o seu físico rijo. Ela nota meu interesse. “O senhor tá me achando bonita?Ela se aproxima...

-  Alto lá!, eu digo com firmeza. Ok, talvez não com tanta firmeza... Vacilo um pouco, mas a detenho. Aquilo tinha que parar naquele instante. Nos últimos meses, todas as mulheres que tiraram a roupa para mim, tentaram me matar. Verifico o quarto todo: debaixo da cama, dentro do armário, atrás da porta do banheiro. Olho pela janela, nada. Tirando algumas camisas esticadas em cima da cama, minha mala está como estava antes. Ela me olha assustada. “Não roubei nada, não...” Eu sei que não, digo. Não é isso que me preocupa... Como é seu nome? “É Kelly. Mas, por favor, não fala nada pro gerente. Eu não fiz por mal., implora ela agora só de saia e sutiãEu preciso desse emprego pra me manter, não sou casada, nem nada, tenho mãe em casa...Pensei numa solução prática:


- Tira a roupa! Falo com a cara mais séria do mundo. Ela sorri. Meu objetivo era conferir se ela não trazia nenhuma arma escondida, mas ela faz disso um show. Com o olhar fixo para mim, abre o zíper da saia. A calcinha azul de algodão não combina com o sutiã. Acho graça no trejeito pueril de Kelly. Abre o sutiã devagar. Baixa a calcinha até o joelho e empurra até o chão com a sapatilha que ela não tira. Tento manter a concentração: Tira a sapatilha também. “Quer que tire? Tem gente que gosta que fique... Você é garota de programa? “Não... Só gostei do teu cheiro mesmo, das tuas roupas... E você? Você gostou de mim sem as minhas? Ah, eu não aguentei, já eram meses de antecipação e, na hora, sempre alguém me dava uma porrada. Ela esticou seus braços morenos em volta do meu pescoço e passamos mais de uma hora nos beijando. As outras horas foram derivações bastante interessantes desse beijo inicial. Foi fenomenal! Mulher pequena... Fácil de erguer. Enfim, foi um dia produtivo! As coisas estavam começando a melhorar. 

Diego Fortes
É ator, escritor, tradutor e diretor. Nasceu em 1982. Bacharel em Comunicação Social, tem passagens pela Escola Técnica de Formação de Atores da Universidade Federal do Paraná, pelo Ateliê de Criação Teatral e entre diversos outros. Fundou A Armadilha - cia. de teatro em 2001, companhia pela qual montou os espetáculos Marias (2004), Café Andaluz (2005), Os Leões (2006), Bolacha Maria - um punhado de neve que restou da tempestade (2008) e Jornal da Guerra Contra os Taedos (2009). Em 2010, escreveu e dirigiu - com a colaboração da artista mineira Grace Passô - a peça Os Invisíveis, pela qual recebeu a segunda indicação à Melhor Direção do Troféu Gralha Azul. Mantém contato colaborativo com autores de outros países latinos.


Zansky

2 de set. de 2014

Passaúna

Conto: Detetive Linhares
Ilustração: Berje



Todo mundo na casa vendo filme e fumando maconha. Todo mundo sossegado quando alguém dá três batidas no vidro da porta de entrada da casa.

- Fica todo mundo quieto! Deve ser a velhota aí do lado.

Diz Bruninho que é o dono da casa.

- Todo mundo se esconde.

Grita baixinho e rindo a gostosa da Anita que não quer que ninguém saiba que ela está chapada.

Só que ninguém quer ver a velha. Ela tem uns noventa anos e manquitola pelo bairro apoiada numa bengala de madeira e quando ninguém atende a porta ela chora. A velha é bizarra.

não consigo respirar

- Porque não inventam um remédio que nocauteie a dor? Talvez a morte seja esse remédio. Talvez a morte seja um bom remédio pra esses velhos!

Filosofa Baltazar de dentro do armário.

o peito apertado

- Vocês deviam ter um pouco de pena da velhinha. O que que custa dar uma mão?
- Vai lá então, Robin Hood!

Noé estende bem o braço pra fora do banheiro e faz aquele sinal com o dedo do meio. Ele detesta quando o Zé o chama de Robin Hood. Pelo jeito ele está mesmo incomodado com a situação. Todo mundo se escondendo e ele vendo seus amigos fugindo do que ele imagina ser apenas uma tia qualquer que precisa de ajuda. Mas ele também não teve a capacidade de se mover. É outro pau no cu que só sabe reclamar e também não faz nada. Está lá escondido meio ressabiado e vai ficar no banheiro sem se mover pensando em coisas boas pra ver se o inesperado acontece.

PLAW!

Um barulhão vindo da porta.

Todo mundo bota as cabeças pra fora dos seus esconderijos. Um corpo entra na casa desabando pela porta e quebrando o vidro. Bem aos pés das bicicletas que estão amontoadas ali na entrada. E tudo em câmera lenta. O corpo que cai é muito magro e flutua na queda. Parece um travesseiro de penas de ganso estourando na nossa frente. O vento entra logo em seguida e levanta os cabelinhos. A boca aberta. Os olhos fechados. Os braços são dois tentáculos se abanando perdidos no espaço. A bengala vai dois metros à frente e quase acerta o Santana que está no sofá com a gostosa da Anita. O vestido preto com rendas esvoaçando. Os sapatinhos quicando e fugindo dos pés como se sapateassem no ar. E a cabeça branca quicando três vezes no assoalho de madeira antes de rachar na têmpora direita e inundar o chão de sangue.

- Ela tá morta?

Pergunta Baltazar.

- Não. Ela está invadindo a casa e vai nos assaltar.

Responde Santana.

- Ou isso também.

Grita Noé lá do banheiro.

- Caralho, gente! Tem uma velha morta dentro da minha casa! O que a gente vai fazer?
- Pelo menos ninguém viu, né?!
- A Anita tá certa.

Concordo.

A Anita tem medo que sua mãe descubra as merdas que ela faz e a mande de volta pro colégio interno.

- Você tá com medo!
- Cala a boca, Zé! Me ajuda com o corpo! Alguém pega uns panos na lavanderia e vai secando essa meleca antes que minha mãe chegue e pegue a gente fumando maconha com uma velha morta na sala e o assoalho pintado de sangue.
- A gente tem que enterrar essa velha.

Diz a gostosa da Anita.

Todo mundo olha pra ela. Aí ela emenda logo em seguida

- E se a gente enterrasse essa velha lá no Passaúna?

Puta merda! Penso. Eu sou o único que tem carro e a velha vai viajar daqui até lá no meu porta malas.

- Porra, Anita! Enterrar a velha?! Você tá louca?!
- Dedé, não fala assim com ela.
- O namoradão vai defender a namoradona?! Logo você que sempre foi primeiro eu, depois os amigos, depois as namoradas!

Todos riem. Menos o Santana e a Anita que se olham e se abraçam. Ele são o mais novo casal da galera. Ele diz que gosta dela. Ela também. Mas na real o que ele gosta mesmo é dos peitinhos dela. Eu também. E acho que todo mundo também gosta. Eles são do tamanho de uma laranja madura. Cabe certinho um em cada mão. Foi o que ele disse depois de pegar pela primeira vez. Saiu falando pra todo mundo pra contar vantagem. Só ele não sabe que todo mundo já pegou a gostosa da Anita.

- Bem teu tipinho, né Santana?
- Agora vai bancar o namoradão!
- Hahahaha!!!
- Alguém me ajuda aqui com a velha

TRIIIMMM!!!

Todo mundo se arregala com o barulho da campainha. O corpo da velha cai pela segunda vez.

- Merda!
- Vai alguém lá na frente ver o que é!
- Porra, vai você, Zé!
- É, porra, você não tá fazendo nada aí!
- Caralho! Estamos fodidos!
- Puta merda que zona!
- Tira a mão daí, Santana!
- Daê galera!

Silêncio. Todo mundo olha pro buraco que a porta deixou.

- Uauuuu! Que é isso? Vocês pegaram um peixão e não me chamaram?! Safadinhos?!

O Gigante vai entrando. É muito comum isso entre nós. Um entrando na casa do outro sem pedir licença e fuçando na geladeira e mexendo nas coisas. Crescemos assim.

- Essa velha caiu morta aí pela porta faz meia hora.
- E porque vocês estão com ela aqui ainda?
- A gente vai levar o corpo no Passaúna.
- Pra que? Aquela porra já é um cemitério. Porque a gente não queima dessa vez?
- Porque não foi a gente que matou.
- E qual a diferença? Se a polícia chegar aqui agora vocês vão em cana.
- É verdade.
- E o que a gente faz?
- Vamos cavar um buracão e encher com aquelas coisas de pinheiro. Depois a gente taca gasolina. Aí jogamos umas madeiras velhas que tem aí na garagem por cima e ainda assamos uma picanhota. Pronto!
- Será?
- Pra que complicar, Zezé?
- Meu nome é Dedé.
- Foda-se você e esse teu nome de merda. Pega lá aqueles negócio do pinheiro e você aí vai cavando e não olha pra trás.

Gigante filho da puta. Tenho certeza que o Dedé pensou isso. A galera começa a se agitar e a fazer as coisas que o Gigante mandou. O Gigante vai pra cima da Anita e começa a dar uns amassos nela. O Santana não gosta muito e vai pra cima dele com a pá. Acho que nesse momento está passando pela cabeça dele dar uma pazada certeira no meio do crânio do Gigante. O grandão olha pra trás e o Santana fica paralisado. Não vai conseguir terminar o que pensou. Sorte dele. O gigante ia catar a pá da mão dele e ia quebrar ele no meio. Rio por dentro. Ia ser engraçado ver o Santana apanhando por causa da gostosa da Anita. Quando ele conhecer ela de verdade vai ficar de cara. Olha lá. Ele está paralisado de medo. Acho que vai ficar assim por uns minutos. Enquanto isso eu o Noé e o Baltazar fomos pegar madeira e aqueles negócios de pinheiro pra fazer o fogo. Nisso o resto da piazada já tinha feito o que tinha de fazer e estavam gritando lá no buraco. Voltamos correndo. A gente chega e a gostosa da Anita está dentro do buraco com a velha. O corpo dela parece que tinha sido dilacerado por um lobo-mamute. Ela está toda arreganhada e sangrando muito. Está morta. O Gigante não está mais ali. Sumiu. O Santana está com a pá apontada pro céu do mesmo jeito que ele ficou quando a gente saiu. Completamente congelado. Parece um zumbi. O negócio é encher o buraco com toda a madeira e cobrir com gasolina e tacar fogo o mais rápido possível.

- Joga bastante gasolina pra queimar rápido.

Não quero que a mãe do Bruninho chegue e pegue a gente queimando a velha da casa ao lado e a gostosa da Anita.


Berje

Detetive Linhares

29 de ago. de 2014

O cemitério de ideias

Conto: Rafael Pesce
Ilustração: Hafaell Pereira


O ano era 2556. O clima na sala do Imperador Drextos II era de tensão. À frente do trono, cravejado por diamantes roxos, estava uma mesa redonda, onde os mais importantes generais, cientistas e conselheiros imperiais estavam sentados. A ausência de som foi quebrada quando o Imperador levantou-se. O ouro da extravagante túnica chacoalhou, interrompendo o mórbido silêncio. Foi o sinal que todos esperavam. Em um grito uníssono todos bradavam com a mão em sinal de continência: Vida longa ao Imperador! Vida longa ao Imperador! Vida longa ao Imperador!

- Quietos! Já chega seus vermes! Já faz quase um ano que estamos no meio dessa guerra contra essa horda de rebeldes que insiste em não reconhecer o meu poder absoluto. Convoquei essa reunião para acabar de vez com a baderna que insiste em atrapalhar meus planos. Eu exijo uma solução imediata para este problema!

O primeiro a se levantar foi o General Horxos, responsável pelo comando de todas as tropas imperiais. Entre uma gaguejada e outra encontrou coragem para se manifestar:

- Oh co-co-comandante supremo. Eu, eu...já não sei mais o que fazer. Mando diariamente nossas tropas combaterem esses insurgentes, mas quanto mais lutamos mais o inimigo parece se fortalecer. Não importa o que façamos, os rebeldes parecem sempre estar um passo a nossa frente. Eles não têm medo, não desistem nunca. Usamos toda nossa força, todo nosso arsenal e parece que nada os faz desistir. Eles não são simples homens, não sei o que os faz continuar.

- Tolo! – respondeu o Imperador. Eu não convoquei esta reunião para escutar desculpas. Estou aqui para ouvir uma solução. Se eles não entendem por bem a necessidade de nossos altos impostos, que entendam por mal. Saia daqui, insolente!

Horxos não teve tempo suficiente para abandonar o recinto. Um gesto foi suficiente para que dois soldados, que até então permaneciam imóveis na entrada, atravessassem suas lanças laser nos pulmões do agora ex-general. As risadas de Drextos II ecoaram sozinhas pela sala. O encontro então prosseguiu:

- Trevor, você era o segundo em comando. O controle de nossas tropas agora está em suas mãos. O que você pretende fazer para retomar a ordem?

O novo General em nada lembrava seu antecessor. Era uma pessoa confiante, que não demonstrava medo e não evitava o olhar penetrante do Imperador.

- Grato pela oportunidade de mostrar o meu valor, oh grande Imperador Galáctico! Como todos sabem, temos um arsenal muito mais forte do que aqueles pobres rebeldes. Eles parecem um bando de ratos. Esmagamos um, mas no lugar desse, aparecem dois. E isso tudo porque eles têm uma ideia coesa por trás. Seus líderes conseguem manter o que, inicialmente pode parecer uma multidão desorganizada, em uma forte arma de repressão. Enquanto não exterminarmos essas cabeças, não acabaremos com a força por trás desta ideia absurda de rebeldia.

O Imperador sentou-se no trono e pareceu intrigado com a afirmação de seu novo general. – O que nos impede de terminarmos de vez com essas patéticas vidas?

- Infelizmente essa corja rebelde desenvolveu um escudo defletor capaz de bloquear qualquer ataque proposto por nossas tropas. Existem apenas cinco desses escudos, e eles estão justamente divididos entre esses líderes. Ainda não conseguimos descobrir uma maneira de furar esse bloqueio.

- O Imperador Drextos II se levantou exaltado. – Não acha que é muito cedo para vir com desculpas? Já disse que exijo soluções, SOLUÇÕES!

Antes que Trevor pudesse responder, uma voz, um pouco trêmula, e já entregando a idade, pediu a palavra. Era o Dr. Strengler, um velho cientista que estava no canto mais distante da mesa.

- Caro Imperador, general e demais presentes. Não precisamos necessariamente matá-los. Como Trevor bem disse antes, sem um ideal a tentativa de revolta estará morta. Tudo o que precisamos é estancar de vez esses poços de ideias.

- E como isso será possível? – indagou Drextos II.

Calmamente o cientista respondeu. - Há anos venho trabalhando em um projeto secreto que recentemente viu a luz do dia. Estava esperando a oportunidade certa de usá-lo. – O cientista puxou de dentro de uma bolsa o que aparentava ser um pequeno rifle laser. – Isso, meus caros, não é o que parece. Em uma primeira olhada pode dar a impressão de ser uma arma letal, dessas que desintegram o inimigo. Mas não, não é isso que ela faz. Ela é o que eu chamo de Nápad. E qual sua utilidade, vocês me perguntarão. Respondo: Ela extrai ideias.

Todos os presentes na sala de reunião arregalaram os olhos. Um burburinho de palavras indecifráveis se criou no ambiente. SILÊNCIO!!! – gritou o Imperador. Continue a sua explicação Dr. Strengler.

- Com sua licença, oh grande Imperador. Tudo o que preciso é programar o dispositivo para extrair toda e qualquer ideia relativa à rebelião. Como ela não é uma arma de ataque, garanto que não há escudo no mundo capaz de impedir a sua funcionalidade. Basta apontar, apertar o gatilho e pronto. O pensamento será apagado da mente do inimigo e a possibilidade de regenerar tal ideia ficará impossibilitada, graças aos efeitos do Nápad.

Em meio às gargalhadas eufóricas o Imperador repetia: - Ótimo doutor, ótimo, ótimo! Dessa maneira iremos aniquilar para sempre essas ideias ridículas.

- Meu caro Imperador, ideias não podem ser destruídas. Como eu disse anteriormente, o meu aparelho as extrai, não as elimina. Uma vez arrancada ela tomará uma forma física e ficará retida nesta cápsula redonda. Não se engane com o tamanho, se este aparentemente inofensivo receptáculo for perdido, as ideias poderão retornar para seus donos. Para evitar o pior, sugiro a criação de uma sala blindada, com toda a segurança necessária para que esses pensamentos jamais voltem a ter vida.

Drextos II finalmente sorriu aliviado, esvaziando a tensão que ainda preenchia o ambiente. Olhou para todos e falou: - Um cemitério de ideias...gostei! Construam essa tumba de aço imediatamente!


Rafael Pesce 
Nasceu em 1985 na cidade de Três Passos, interior do Rio Grande do Sul. Mudou-se para Porto Alegre em 2003, onde se formou em Jornalismo pela PUC-RS e mora até hoje. Em sua estante de livros Nick Hornby e J.R.R Tolkien brigam constantemente pelo maior espaço, mas agora ganharam a concorrência voraz de George R.R Martin. Devoto do gremismo, não dispensa um café ou um chimarrão bem quente.  
contosdefleming.blogspot.com

 Hafaell Pereira
flickr.com/photos/hafaell

28 de ago. de 2014

Zumbi colega é uó

Conto: Paco Steinberg
Ilustração: Gihad Hak



“Quieta! Fica quieta! Olha que eu te mato! Vou te foder, sua piranha, e é melhor você ficar bem quieti... mas que porra é essa?”

-Você tá brin-can-do que ele foi grosso desse jeito?
-Pois é. 
-Amiga, como assim? O cara não viu que você tava se transformando? Ui, homem é muito devagar, né. Lua cheia, a louca entupida de pelo uivando pra lua, ele acha que é o quê? Tpm?
-Ai, zumbizete, fica quieta, deixa ela terminar de contar.
-Então. Eu dei uma torturadinha antes de matar, né? Quebrei uns dedos, furei os dois olhos, arranquei um braço, básico. Ele sangrou um monte, ui que nojo. Ainda levantou e saiu correndo! Acredita?
-Gente. Tô passada.
-Tá nada, esse seu lençol tá um horror! Fantasma neoclássica é uó.
-Ei, não fala assim da Mary Antonieta! Olha o bullying! Deixa eu falar?

CON-TA! CON-TA!

-Então... aquele tarado fajuto começou a correr que nem um desesperado, gritando muito! Medo! Acho que ele era de Sagitário, ui, odeio gente exagerada. Corri demais atrás dele.
-Ai, que fim de carreira. Eu nem me dava o trabalho.
-Pra você é fácil, né, querida, pega a vassoura, dá uma voadinha e pronto! Além disso, eu tinha acabado de fazer as unhas da pata! Ui, que ódio.
-Ai você fez francesinha dourada! Que tudo!
-Pois é, vim retocar. Gentem, deixa eu falar! Então, quase desisti de correr atrás daquele infeliz, mas com o tanto de carne que ele tinha, não podia deixar passar.
-Amiga, sério, eu jamais comeria um cara que quisesse me estuprar.
-Lógico né, zumbizete. Você come cérebro, eu como carne! A carne não tem pensamentos.
O salão de beleza de criaturas rompeu em gargalhadas.
-Ui, que cadela burra. Para de pintar esse pelo de loiro, hein?
-Você que fez minhas mechas, fica na sua. Mas hein, deixa eu contar... fiquei com tanta raiva por ter estragado a minha unha que antes de matar, arranquei o pau dele e deixei correr mais uns 400 metros.
A zumbi colega se rachou de rir.
-Tá certa, amiga, tortura boa é quando a pessoa acha que vai sobreviver.
-Ah, eu ia torturar mais, sabe, gosto de começar a comer a pessoa ainda viva.... mas o retardado começou a chorar, daí a carne fica dura, né!
-O sofrimento me excita.
-Credo, você tem que se reinventar, amiga! Vampiro tá off.
-Se liga, zumbizete! Vampiro é que nem estampa de oncinha, tem desde a antiguidade e sempre volta pras prateleiras!
-Sabe tudo, a bafo de urubu! E você, hein... loba má! Nem lembra das amigas! 
-Como não, flor? Olha aqui, trouxe a cabeça dele pra você!  
-Humm, delícia! Ih, meninas, olha lá na porta, tem um mané de sobretudo preto nesse calor dos infernos! Deve ser parente da bafo de urubu...
-Não fala assim do meu irmão! E para de me chamar assim!
-O salão é meu e eu falo como quiser!
-Ah, é?

SEPARAAAAAAAA

Paco Steinberg
Nasceu em 1979. Bacharel em Letras pela UFPR, tradutora, crítica de arte, bicho urbano. Gosta de fumaça, solidão, polêmica, observar humanos e piadas infames. Sua cor preferida é o sangue. Tem medo de aranha, de escuro e de gente muito feliz. Autora dos livros Persona (2003), Vem Cá que Eu te Conto (2009) e Jack & Bob (2010). Inspiração: rodas de conversa no café com muitas risadas e sustos. Método de escrita: atrás da porta.

26 de ago. de 2014

Regras do empresário do circo

Conto: Assionara Souza
Arte: André Coelho



Se encontrar um homem nu vadiando entre as tumbas do velho cemitério, leve-o para o campo de experiências e faça com ele todos os procedimentos necessários à conversão

Em primeiro lugar, adormeça o homem nu até que nele se desenvolvam sonhos. Enquanto ele dorme e sonha, implante as hastes de penas por todo o corpo e comece a descrição para que ele reconheça a si mesmo como a um artista

descreva a pele os olhos descreva dentes descreva a língua em movimento quando se formam as palavras descreva a textura da voz que ousou sair de dentro do corpo quando era somente incômodo do sentir e forçou-se por vontade sair expressar-se descreva as unhas coladas aos dedos descreva as marcas digitais

o homem nu acorda sozinho dentro da sala com paredes de espelhos, dispara do teto um jorro de luz e mil imagens se projetam multiplicadas dentro da consciência do homem nu, ele pode mirar apenas uma delas

no centro do quarto com paredes de espelho, o homem nu aproxima-se de uma das imagens (angustia-se por ter abandonado todas as outras – algumas o ferem no centro oco de quando se deu a primeira compreensão do que era dor) os olhos miram os olhos perscrutam deslizam pelo rosto comandando a boca a abrir-se pronuncia-se uma palavra:
a g o n i a

agora, observe se ele já se acostumou à falsa liberdade de ser um artista, interrogue-o


-há uma simplicidade do lado de fora, não prefere ir lá? do lado de fora não há paredes de espelhos porque o corpo de um será o espelho do corpo do outro, o que assusta?, o julgamento o assusta?, o julgamento como um mapa que foi entregue ao outro para que domine os territórios extraordinários da percepção, salas escadarias quartos sofás puídos cartas escritas para ninguém, venha, antes que acabe, antes que fique frio e o corpo paralise, antes que fique escuro e os olhos não enxerguem, antes que a vigilância dos pensamentos diga que tudo é mal e que dever ser evitado

o homem nu diante do espelho o corpo coberto de penas vê pelo reflexo aproximar-se uma criança, não somente por ser uma criança – o que já seria suficiente para causar espanto – mas trata-se de uma criança doente que sorri, a doença está dentro da criança desde que nasceu. Faltou oxigênio, o parto foi muito demorado e faltou oxigênio. Isso mexeu com as funções motoras, hahaha, dela, e por isso ela, hahahaha, adoeceu assim

o homem nu teme que a criança caia e se machuque, observar fraqueza ou força espanta em igual proporção, o riso da criança ecoa dentro do quarto de espelhos, ela está brincando com a ideia de ainda existir precariamente, o corpo pende ao trocar dos passos, as imagens do homem nu voltam-se para a apreciação da criança

o homem nu vê a criança afastar-se e pensa que não compreender faz todo o sentido, esse será o primeiro aprendizado, depois disso as lembranças do sonho se encarregarão de erguer paredes altas para o labirinto ficar mais acolhedor a quem desejar manter-se lá dentro e criar estruturas incríveis aos olhos dos seres comuns


Se for necessário, extirpe os olhos. São os olhos que o afastam da compreensão:

1. Espere que ele adormeça novamente e que sonhe novamente
2. Arranque delicadamente os olhos
3. Retorne novamente ao cemitério para que ele, ainda que cego veja-se como um verdadeiro artista, e aprenda a sobreviver entre cadáveres.

o homem nu dentro do quarto de espelhos adormece, o corpo mergulha em sonhos extravagantes, sonha universos simbólicos intraduzíveis, aos poucos a claridade é substituída por uma escuridão fria




Assionara Souza
Escritora radicada em Curitiba. Publicou em 2005 o livro de contos Cecília não é um cachimbo, 7letras/RJ e é também autora do recente “Amanhã. Com sorvete!” (7Letras/RJ, 2010).   Assionara é doutoranda em estudos literários na UFPR, com estudos na obra de Osman Lins. 
cecinest.blogspot.com