27 de dez. de 2011

O Coração Desesperado

Texto: Eduardo Capistrano
Fotografias: Marco Novack*
* Estrelando: Carolina Fauquemont e Wagner Corrêa
Assistente: Nika Braun / Maquiagem: Andréa Tristão / Arte: Leonardo Goulart




Sou um amaldiçoado. A razão de minha maldição é o amor. Achei que não haveria prova maior dele. Hoje, sei que estou enganado. Como provar algo que não se compreende?
Eu gostaria, realmente, de poder descrever meu amor por Rebeca. Poderia dizer como a conheci, como nos apaixonamos, como ela é maravilhosa. Poderia tentar explicar como ela pareceu invadir minhas memórias de vida antes dela, como ela passou a fazer parte de cada plano meu para o futuro. Não sou capaz.
Posso dizer que ela tornou-se uma porção indispensável de minha vida. Depois de anos lutando contra o câncer, ele venceu. Os médicos estimaram que restava a ela um ano de vida.
A ela, e a mim.
Rebeca resignou-se e pretendia aproveitar da melhor forma que podia o tempo que lhe restava. Para ela, a morte parecia cada vez mais uma libertação de todo o sofrimento. Era para mim que a morte se anunciava horrorosa.
Minha existência tornou-se um suplício ímpar. Estava convencido de que o sofrimento só teria fim com minha própria vida, mas ao mesmo tempo tinha medo de fazê-lo, e me assolava a repugnância por minha própria covardia. Sentia-me acorrentado e sob tortura aplicada por meu próprio coração. “Ora”, fustigava ele. “Seu amor não é verdadeiro?”





Separava meu tempo entre testemunhar o definhamento diário de Rebeca e procurar escapatória, qualquer coisa, que pusesse fim ao sofrimento dela e ao meu. A certeza da impossibilidade, em vez de obstáculo, acabou quebrando obstáculos. Assim que cessaram todas as possibilidades médicas, científicas, racionais, transpus a barreira para o irracional.
Das falsas panaceias prometidas na forma de simplórios chás e misturas, cheguei aos ridículos rituais das simpatias, e delas às “operações” empreendidas por sacerdotes milagreiros, curandeiros e espíritos carnados e descarnados. O tempo passava e a cada fracasso a Morte se insinuava mais próxima. Aos meus tormentos somou-se a frustração com minha absoluta incompetência.
Rebeca parecia tão bem quando aquilo aconteceu. Lembrávamos com carinho de certo momento passado. Senti-me momentaneamente leve como antes de toda aquela dor. Ela sorria com tal brilho vívido nos olhos! Em menos de uma hora ela estava inconsciente no hospital, e eu estava coberto de sangue que ela vomitou sobre mim. Eu me lavava no banheiro do hospital, as palavras do médico ecoando em minha cabeça.
“Não passará de amanhã.”
Meus únicos pensamentos eram essas palavras e a velha questão que vinha fazendo ao longo daquele longo e excruciante ano. Como faria? Eu me enforcaria? Abriria os pulsos? Jogaria-me de um prédio, ou na frente de um carro? Entupiria-me de remédios? Estouraria os miolos?
Naquele momento, em que qualquer limite, qualquer tabu foi varrido do meu ser pela tormenta da fatalidade, minha visão caiu sobre um papel amassado que trazia no bolso, então sobre a pia do banheiro. De todas as minhas posses, apenas aquele pequeno pedaço de brancura não estava ensanguentado.
O anúncio de “Madame Rúbia” provocava. “Última Chance Para O Coração Desesperado.” Havia a visitado três vezes, e nenhuma das vezes ela me atendeu pessoalmente. Um assistente me trouxe em todas as vezes a mesma resposta lacônica. “Você não é um desesperado. Volte quando for.”
Talvez sinal maior de meu genuíno desespero foi ter deixado Rebeca moribunda no hospital em direção ao que podia ser mais uma charlatã, mais uma estelionatária com um pouco mais de talento teatral do que as outras, e que por uma grande sorte havia conseguido pôr naquele papel as palavras exatas para arrastar-me, em minha delirante confusão, para a madrugada mais escura de minha vida.
Assim, não era dono de perfeitas faculdades mentais quando me vi uma vez mais na ante-sala de Madame Rúbia. Assim que cheguei, contudo, não havia quem me recebesse. Entrei e avancei através de cortinas esfarrapadas até uma sala escura com uma mesa e duas cadeiras. Uma delas estava ocupada pela Madame. Não pude discernir suas feições nas sombras, apenas que era corpulenta, velha, feia e fumava um charuto.
Sentei-me diante dela. Em uma voz rouca e zombeteira, parando apenas ocasionalmente para soltar baforadas, ela descreveu como eu conheci Rebeca, falando nomes que só nós conhecíamos, com detalhes que só nós sabíamos. Em seguida riu de minha expressão de espanto e de lamentação. Descreveu então o dia de nosso casamento, para em seguida rir novamente.
Eu esmurrei a mesa, o rosto coberto de lágrimas. Ela parou de rir. Uma mão enrugada coberta de anéis e pulseiras surgiu das sombras, com dedos de unhas compridas empurrando um lenço branco em forma de coração.
Ela negou-me qualquer resposta, que não fosse narrar outro episódio de minha vida com Rebeca, escolhido para fustigar-me com o valor que tinha para mim. E a frase. “Um coração por um coração.”
A gargalhada da velha e a fumaça da sala expulsaram-me com o coração de tecido amassado em meu punho. Eu sabia o que a velha queria. Eu sabia do que ela precisava. Eu sabia, de alguma maneira, que funcionaria. Não era fato ou conhecimento algum que me fazia saber. Era o desespero. Eu chegara ao ponto de não-retorno. Eu faria qualquer coisa por Rebeca.
E o que tinha a perder? Eu já me considerava morto.
Voltei para casa e abri a funesta maleta que recheara com os possíveis instrumentos de minha própria morte. Em uma macabra antecipação de minha hora derradeira, havia em tempos recentes considerado esta ou aquela faca para abrir os pulsos, esta ou aquela corda com que me enforcar. Várias garrafas de bebida, vários frascos de remédios. E um revólver.
Saí às ruas, imaginando como faria aquilo. Algumas horas depois, bêbado e sedado com sabe-se lá que drogas correndo soltas por minhas veias, havia escolhido uma rua afastada e deserta. O torpor havia eliminado qualquer resquício de bom senso e humanidade que ainda restasse. Naquele momento, reduzido a um predador sem face nas trevas, pronto para atacar qualquer incauto que passasse, eu regozijava na perfeita perda de mim mesmo, e ao mesmo tempo, em algum recôndito superior, transcendental, imaculável de meu espírito, ocorria exatamente o oposto: eu finalmente me encontrava, revelava a verdadeira Rebeca, descobria meu amor por ela.
Ainda respirava pela boca quando uma vez mais fiquei diante da velha. Coloquei o pacote encharcado e rubro sobre a mesa na frente dela. Com a ponta dos dedos, ela removeu o pano e deixou seu mórbido conteúdo rolar pela mesa. Entregou-me o pano, pigarreando. “Ponha sobre o dela. Para o próximo sol ver.” Sua voz agora era solene, sem risos, sem zombaria. Ela não acreditava que eu seria capaz.
A manhã se aproximava, passava o torpor das drogas e a exaltação do crime, e a ansiedade pelo resultado impossível apenas multiplicava as angústias do arrependimento que já ameaçava me consumir. Eu mal lembrava direito quem havia sido minha vítima, mas em meus devaneios, imaginava que nada significaria, se Rebeca ficasse curada, feliz, sorridente. Viva.


O sol surgiu. Rebeca demonstrou desde o primeiro dia melhoras incríveis. Os médicos ficaram atônitos. Em uma semana ela saiu do hospital. Recuperou o peso, o tom de pele, o ânimo. Seus cabelos, seus lindos cabelos estavam de volta, ao redor de seu olhar e de seu sorriso. Viajamos em uma segunda lua-de-mel para comemorar. Ela retornou ao trabalho, revigorada. A doença, e a verdadeira causa de sua recuperação, pareciam apenas lembranças ruins.

Um ano se passou. Um ano de vida, de felicidade. Um filete de sangue do canto da boca de Rebeca, um ano depois. Ela retornou aos médicos, e a doença estava de volta, exatamente como estava há um ano atrás.
E eu também retornei, através de cortinas esfarrapadas, ao quarto escuro, onde Madame esperava. Eu gritei em desespero que tudo estava de volta, que não havia dado certo.
Madame descreveu nossa segunda lua-de-mel, coisas que só eu e Rebeca sabíamos. Tonto e nauseado, ouvi a velha gargalhar, vendo seus dedos velhos empurrando para a luz um lenço branco em formato de coração.


Marco Novack
Publica suas imagens no site: http://www.marconovack.com.br/


Eduardo Capistrano
Nasceu em Curitiba, Paraná, no ano de 1980. Contista desde 2002, é autor de "Histórias Estranhas" (2007) e "A Quarta Dimensão" (2011). Saiba mais em http://edcapistrano.blogspot.com.

5 comentários:

  1. Como sempre os trabalhos do Marco são maravilhosos.

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  2. Cada noite vai ficando mais interessante! Todos os textos e as imagens estão muito bons . Estão todos de Parabéns ! Boa proposta, boa equipe, Curti!

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  3. Nossa! Não consegui parar de ler... muito bom!!!!

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