17 de dez. de 2011

Hotel Extraordinarium

Texto: Luiz Bras
Ilustração: Isaac Santos


Visto de fora, Extraordinarium parece uma estrela-do-mar. Porém essa forma pontiaguda raramente atravessa a lembrança de quem está dentro. Internamente o hotel-cidade parece mais a concha de um caracol caucasiano. Longos corredores em espiral sobrepostos vão do ponto menos nobre ao mais nobre. Num lugar como este não existe noite ou dia. A festa não tem hora pra começar ou acabar. Tudo é cinza como o crepúsculo ou o alvorecer. Faz dez minutos que estou na frente do espelho, catalogando as imperfeições da minha máscara. Eu já devia ter comprado uma nova há muito tempo. Mas até ontem ela não parecia tão surrada... Não deve ser fácil viver em Extraordinarium, as maneiras e os adereços da elite humilham demais a plebe. Ser pobre aqui é muito pior do que ser pobre em qualquer outro lugar. Sorte — sorte?! — que entre os ricaços e nós há essa classe intermediária, dos seguranças. Mas esses brutamontes geneticamente modificados trabalham sem rancor ou remorso, servem a seus senhores como se fosse a coisa mais natural e prazerosa do mundo. Parecem não se importar com as aflições da estratificação. Melhor pra eles. Eu me importo. Aborrece demais. Aqui nós somos lembrados o tempo todo que um pária impuro e desprezível não deve meter o nariz onde não é chamado.  O nariz, as sobrancelhas... Parecem um pouquinho tortos. Será? Ricalhões de merda. As drogas cem por cento livres de efeitos colaterais, os trajes suntuosos e a fala afetada não humilham tanto. É nas máscaras que o abismo social está todo concentrado. Faz dez minutos que estou na frente do espelho, cutucando as pequenas imperfeições. As do uso contínuo e as de fábrica… Até ontem essa cara quitada em doze prestações não parecia tão gasta. Pareço até um amanuense. Um contra-regra. A máscara dos seguranças de Extraordinarium é do tipo padrão das forças armadas. Resistentes e impessoais. Recicláveis. Precisam de pouca manutenção e não oferecem mais do que meia dúzia de expressões faciais. A máscara do secretário da gerência geral, por outro lado, é do tipo pomposo e descartável. Ele deve trocar dia sim dia não, por pura vaidade. O dispositivo que gerencia a interface raramente dá problema. Mas ainda é a máscara de um empregado do terceiro escalão. Dá pra notar a linha ao redor da cabeça, acompanhando a fronteira do cabelo, passando atrás das orelhas e do queixo. Uma ótima máscara social, como qualquer coisa nesta vida, custa caro. Dizem que o material não muda muito, que a diferença está somente no software e na qualidade das conexões neurais. Eu duvido. Fico só imaginando a máscara-de-mil-faces dos magnatas da primeira classe. Duvido que seja de látex ou silicone, ou que dê pra notar a linha ao redor da cabeça ou a retícula de micro-sensores. Não faz mal. Daqui a pouco nada disso fará diferença. Na festa de encerramento da convenção nacional dos mascarados a paz pacificará os ricalhões e os pobretões. Daqui a pouco. Quando eu detonar a bomba.


Luiz Bras 
Nasceu em 1968, em Cobra Norato, MS. Sempre morou no terceiro planeta do sistema solar. É de leão e, no horóscopo chinês, cavalo. Na infância ouvia vozes misteriosas que lhe contavam histórias secretas. Adora filmes de animação, histórias em quadrinhos e gatos. Acredita em telepatia e universos paralelos.
Já publicou diversos livros, entre eles a coletânea de contos Paraíso líquido, a coletânea de crônicas Muitas peles, os romances juvenis Sonho, sombras e super-heróis e Babel Hotel e, em parceria com Tereza Yamashita, os infantis A menina vermelha, A última guerra e Dias incríveis.
Mantém uma página mensal no jornal Rascunho, de Curitiba, intitulada Ruído Branco. Também mantém o blogue Cobra Norato:
http://luizbras.wordpress.com

Isaac Santos 
Seus trabalhos podem ser visualizados no site http://www.desenhoporcomida.blogspot.com

Um comentário:

  1. Que fantástico universo desvelado, rodei um filme inteiro em minha mente. Luiz Bras, sensacional!!!

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