22 de dez. de 2011

Annunciata

Texto: Simone Campos
Ilustração: André Ducci


Meu nome é Annunciata em homenagem a uma tia. Essa que passou agora, carregando a bandeja do peru; a tia Ciata, como todos a chamam.
— Tatá...
Tatá sou eu.
— ...vê se acaba logo com essa louça.
— Você diz pra acabar? — digo eu, fingindo jogar o prato no chão.
— Não, lavar.
Minha irmã não tem o mínimo senso de humor. É verdade que eu também só estou aqui por obrigação. Só mesmo os velhos é que parecem se divertir, de pé desde as oito, cozinhando. Mas não custa aliviar a coisa.
Natal aqui em casa é assim: minha mãe levanta e acorda minha avó, eu e minha irmã mais velha; marchamos em direção à cozinha, decididas a fazer o mínimo necessário: o peru, a rabanada e um tipo de bolo. Quando já estamos quase terminando, acorda meu pai e pede bolinhos de bacalhau. Depois acorda a Carol (só a mim deram esse nome estapafúrdio) e pede brigadeiros, na língua dela:
— Bigadeio!
Então cada uma resolve fazer questão do seu prato preferido. Nós nos esfalfamos na copa. Nisso chega o resto da parentada com outros tantos tipos de comida, algumas ainda não prontas.
Quando afinal o banquete está à nossa frente, todos respiram fundo. Com solenidade, o peru é cortado e começamos a comer, conscientes da empreitada coletiva de acabar com tudo aquilo. Cada um devorando a sua cota, inclusive o cachorro, sobra apenas o suficiente para alimentar um batalhão inteiro.

Agora que já nos conhecemos melhor, posso te dizer a minha idade. Tenho quase doze anos. Não parece? É, ainda mais com essa cara de criança que vejo no espelho, ninguém nessa casa desconfia que eu penso. Eu-a-precoce. É horrível.
Pois é, veja o meu dilema. Uso a força para o bem ou para o mal, Yoda? Às vezes caio em tentação. Às vezes essas pessoas passam dos limites e eu tenho que tomar providências. Às vezes eu sou pega e me põem de castigo.
Piedade... Eu nem chego a ser uma garota; eu sou uma garotinha! Ao menos já passei daquele estágio em que me chamavam de...
— Neném.
Esse que afagou minha cabeça e me chamou desse nome terrível? Papai.
Vou sentar naquela poltrona ali; não tenho nada para fazer, pego o jornal. A ladainha: movimento maior que o ano passado etc. Não dá pra prestar atenção, estou cansada.
Eis que vejo uma figura cartunesca no meu ombro. Um pequenino e vermelho ser, com seus dois chifrinhos e tridente. Ele saltita até a minha orelha e grita lá pra dentro.
— Hou!
Eu me assusto.
— Tá dormindo, garotinha? — diz minha irmã.
Tudo bem, estou acordada. Estou acordadíssima. Você vai ver como estou acordada.
Me encaminho à mesa. Esvaziei o olho. Olho enviesado. Me sinto má. Pior que a minha irmã, muito pior. Maravilhoso sentir-se má no Natal.
Então começa a comilança da qual já pus vocês a par. Este ano temos um novo conviva, é o meu primo de sete meses. Olha ele arrotando na mesa e todo mundo achando bonitinho.
Minha mãe agradece ao cunhado; não quer mais vinho. Ela não gosta mesmo de vinho. Sei que ela tem medo de perder o controle.
— Mãe, posso dar uma provadinha no vinho.
— Tá, pode.
É bom. Tomo mais. Mais um pouco. Virei. Acabou? Puxa, acabou. Minha mãe está distraída.
— Vó, posso provar esse vinho?
Reparou a dissimulação? Notou que pronunciei vinho e o apontei com um dedo como se me fosse um ente estranho?
— Tá — diz ela, me estendendo a taça.
No meio do terceiro gole a taça é interceptada pela minha mãe.
— Chega!
Ela perdeu o controle. Perdeu meu controle.
Tia Ciata nota e comenta:
— Ha ha ha! É a adolescência.
Eu não quero sentir isso; prefiro sentir que sou uma criatura isolada e incompreendida. Porém suspeito que eu e minha tia temos mais do que um nome em comum. Temos uma certa teimosia, um algo mais. Talvez seja o trauma do nome.
— Annunciata, tá com quantos anos?
Não! Não! Não olhem para mim! Olhem pra lá!
— Doze — respondo baixo.
— Vai fazer doze — corrige meu pai.
— Está uma mocinha!
— Mas ainda não está na idade de tomar vinho.
— Em Portugal, um vinhozinho de vez em quando...
— Na Itália...
Começa outra batalha entre o lado português e o lado italiano da família. Pronto, é isso: eu não tenho uma família; tenho um clã.
Enquanto isso, Carol, enfastiada com aquele bate-boca (toda conversinha amigável, no meu clã, vira bate-boca), levanta-se e diz:
— Tô cheia, tchau!
— Não, gracinha, não se diz “tô cheia” e sim “estou satisfeita”.
— E depois, “com licença”.
Odeio a etiqueta.
— Mais um pouco eu vomito.
Eu disse isso? Não é possível, isso não fui eu, foi o vinho.
Mas eles só estão rindo. Todos eles às gargalhadas com a imbecil da Annunciata.
Passa.
Já agora empilhamos pratos na pia. Esse hábito é repulsivo mas é compreensível. Afinal, todos estamos empanturrados; só queremos sentar.

Assistimos tevê. Estou tensa. Sei que, a qualquer momento, meu tio, fantasiado de Papai Noel, surgirá na sala. Para alegria das crianças — refiro-me às outras crianças. O cantor na tevê joga rosas à platéia. As velhas estão felizes também. O resto sorri, tomado pelo espírito vinícola natalino.
— Ho, ho, ho.
Pronto, Ele chegou.
— Vai lá, Annunciata.
— Você diz, lá... — aponto eu — ...com as crianças?
Saindo do meu corpo e examinando esta cena por um momento, vejo-me largada numa cadeira, com cara de desprezo cínico, atenho-me no meio-sorriso, percorro até as mãos soltas sobre os braços da cadeira, sigo pelo carpete até os pés atônitos da minha mãe, enfiados numa sandália barata, identifico o rosto como o de alguém que foi ferido.
Volto, dando-me conta de que ela também saíra de si.
— Você bebeu mais? — tenta ela.
Imediatamente vira de costas e vai ajudar a retirar as barbas brancas do tio Noel das mãos fechadas do caçula. Afinal, deu mais uma espiadela na minha direção. Desconfiada.
Não quero ver isso.
Tia Annunciata está cantando. Baixo, junto com o homem da tevê.
Não quero ver isso também. A canção é sobre o outro esquecido da noite. Uma já basta.

Passa o tempo, e os velhos jogam cartas na saleta. Restam minha mãe e minha tia na sala de tevê. Eu, atrás da coluna, de ouvidos atentos.
— Francisca, entenda isso. A sua filha está crescendo.
Minha mãe faz cara de tragédia.
— Não faz essa cara.
Minha mãe faz cara de quem, no fundo, entende a situação de uma pessoa perdida no meio de uma família imensa. Quem sabe ela também...? Espere, tenho que ir. Estou enjoada.
Corro para o banheiro, sabendo que cumprirei a minha própria profecia da hora da ceia. É a vingança do vinho. É a hora do arrependimento. Nunca mais farei estas más cousas, prometo, enquanto eu viver.
Lavo o rosto. Estou tranqüila. Fui perdoada. Antes de ir deitar, me apóio no batente da porta e ouço tia Annunciata:
— Isso é só o começo.


André Ducci
Seus trabalhos podem ser visualizados no site http://abducci.blogspot.com/

Simone Campos
Mais sobre seus livros: http://simonecampos.net/

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