Conto: Rafael Pesce
O microônibus da empresa Troma partia diariamente de São Horácio levando 12 trabalhadores para a fábrica de torneiras elétricas, localizada nas imediações do município vizinho de Nova Budapeste. Apesar das condições precárias da estrada de chão, os
O movimento entre São Horácio e a fábrica era escasso. Pouquíssimos carros passavam por aquela estrada, em sua maioria trabalhadores rurais levando produtos para vender nas cidades vizinhas. O microônibus seguia sossegado, sem ultrapassar a velocidade permitida. Seu Moacir, o motorista, era um homem precavido. Vangloriava-se do fato de nunca ter levado uma multa na vida. Prezava a segurança acima de qualquer coisa. Mas nem sempre isso é suficiente.
O veículo prosseguia normalmente, mas
após fazer uma curva relativamente simples se deparou com um carro funerário,
daqueles enormes, como se fosse da década de 20. Seu Moacir não soube de onde o
outro veículo surgiu. Em um momento a estrada estava livre, no outro, não. Foi
a última coisa que ele pensou. O microônibus, na tentativa de desviar rapidamente
do obstáculo, capotou. O choque foi violento. Gasolina vazava abundantemente.
Alastor olhou para o lado e viu companheiros de trabalho já sem vida. O metal
cortou algumas partes dos corpos. O cenário era de terror e o perigo de
explosão, eminente. Sem muito tempo para pensar, o operário conseguiu tirar o
cinto de segurança e sair daquele caos. Um minuto depois e.......BUUUUUUUUUUM!!!!!!
Fogo e cheiro de morte. Mas Alastor não tinha sido o único a escapar do
acidente. Norberto e Rebeca saíram ilesos das ferragens.
Poucos quilômetros separavam os
sobreviventes da fábrica. Os três trabalhadores iniciaram o percurso para pedir
socorro. Não deveria demorar muito tempo, o trajeto a pé levaria em torno de
duas horas. Passaram-se três horas e nada. A rota já não parecia a mesma.
Caminharam por mais meia hora até que se depararam com uma casa velha, quase na
beira da estrada. Acharam estranho, pois no trajeto diário nunca haviam visto
aquela moradia. Resolveram tentar a sorte e foram para lá em busca de ajuda.
O portão era antigo, de ferro, com
pontas afiadas. No centro, uma palavra talhada: JUDICARE. A ferrugem e
tipografia das letras denunciavam a idade do casarão. Os três entraram no
jardim um pouco receosos. Não foi preciso mais do que 15 passos para chegarem à
entrada. Uma argola de ouro servia como campainha. Norberto bateu cinco vezes,
sem resposta. Impaciente, Rebeca forçou a maçaneta e constatou que a porta não
estava trancada. Um enorme salão abriu-se à frente dos três sobreviventes.
Mobília antiquada, teias de aranha e quadros que pareciam retratar antigos
barões do café ornamentavam o local. As paredes estavam todas pichadas com palavras
sem sentido para os visitantes: ratio,
placitum, iudicium, decretum, consilium, censura e arbitrium. Rebeca aparentava estar assustada. Alastor estava calado,
apenas observava tudo. O afobado Norberto saiu bufando e gritando: “que porra
de lugar é esse, vou encontrar alguém nessa merda aqui é agora”. O chefe de
segurança subiu as escadas e desapareceu rumo ao segundo andar, antes que os
dois pudessem falar algo. No hall de entrada um detalhe chamava a atenção, quase
tudo parecia duplicado. Alastor esfregou as mãos nos olhos, mas era isso mesmo,
lá estavam duas mesas, duas cadeiras, duas estantes de livros, dois tapetes,
até mesmo dois telefones antigos, um ao lado do outro. Norberto estava demorando,
preocupando os demais. Resolveram procurar o colega, mas quando Alastor estava
prestes a dar o primeiro passo em direção ao degrau, uma menina apareceu. Ela devia
ter em torno de 11 anos e estava acompanhada por um gato cinza. Ouviu-se um
miado, e em seguida um grito. No flanco esquerdo da sala, Norberto jazia
enforcado. A garota desapareceu. Rebeca chorava compulsivamente e gritava: “nós
vamos morrer, nós vamos morrer”. Correu até a porta de entrada, mas estava
trancada. As janelas fecharam-se subitamente. Descontrolada, rumou em direção a
outro cômodo da casa. Alastor, nervoso, preferiu permanecer ali.
Uma hora se passou. Nenhum sinal de
Rebeca. A casa repousava em quase completo silêncio. O único barulho presente era
do corpo de Norberto, ainda balançando. O cenário de solidão apenas se
modificou quando a misteriosa criança e seu animal de estimação apareceram
novamente. O operário abriu os olhos, assustado, e começou a persegui-la. A
brincadeira de pega-pega só terminou quando Alastor chegou a um banheiro. Mas,
ao invés de encontrar a menina, quem apareceu foi Rebeca, afogada em uma
banheira que mais parecia uma piscina de sangue. Espavorido, o trabalhador, aos
tropeços, correu para o primeiro lugar que o nariz apontou. Tentou novamente a
porta de entrada, mas ela continuava trancada. Chutou e esmurrou com toda força
as janelas, mas elas permaneciam imóveis. Resolveu subir para o segundo andar,
único lugar que ainda não havia tentado. Fez isso e correu para a direita, onde
avistou uma escada que parecia dar acesso a uma espécie de sótão, levemente
iluminado por uma luz amarela. Seguiu este caminho e chegou a uma sala verde.
Deu de cara com um piano enorme, e notou aquele mesmo padrão de objetos gêmeos.
O lugar parecia abandonado. Doce engano. De trás de uma das cortinas saiu a
menina misteriosa com seu gato. Uma luz irradiava da criança, mas a voz que conversou
com Alastor veio do gato:
- Quem entra nessa casa não pode
temer, pois o sol que ilumina a alma dos homens deve se apagar. Seja hoje ou amanhã,
isso não cabe a você decidir...
- Não tenho mais forças, pode me
matar – respondeu o operário conformado com o destino trágico.
- Cale-se! Quem é você para me dar
ordens? Matar ou não matar, isso não depende de mim. O veredicto foi traçado ao
longo da sua vida. Você não conhece a resposta? Pare de tremer e pense um
pouco. No seu interior você já sabe, é por isso que eu estou aqui para sentenciá-lo.
- Eu não sei de nada. Sou apenas um
trabalhador honesto, buscando uma vida melhor para minha família. Por que você
matou meus colegas? Por quê? Me responda...
- Quem disse que os matei?
Neste momento, uma menina igual a que
estava na frente de Alastor, saiu das sombras, permanecendo imóvel. A voz
continuou seu discurso:
- Homem, esta é a Casa do Julgamento.
A missão atribuída no casamento da luz e sombra é apenas uma: JUDICARE. Agora vá e volte para sua família, a porta
está aberta. Não tente retornar para esta casa nunca mais, pois encontrá-la
será impossível.
O operário saiu assustado do casarão.
Caminhou alguns quilômetros e dessa vez conseguiu auxílio facilmente. O
microônibus foi encontrado com os corpos carbonizados. Alastor foi o único
sobrevivente. Nos dias seguintes, a mídia começou a dissecar a vida dos
acidentados. Descobriu-se mais tarde que Norberto era o rosto por trás do
“Máscara de Ferro”, um Serial Killer de prostitutas procurado em toda região.
Rebeca era responsável por um esquema de propina que beneficiava a contratação
de trabalhadores indicados por vereadores da cidade. O dinheiro da fraude foi
encontrado em uma conta fantasma. Os políticos envolvidos no escândalo estão,
neste momento, em um microônibus, seguindo em direção a um escritório de
advocacia na cidade vizinha de Nova Budapeste.
Rafael Pesce
Nasceu em 1985 na cidade de Três Passos, interior do Rio Grande do Sul. Mudou-se para Porto Alegre em 2003, onde se formou em Jornalismo pela PUC-RS e mora até hoje. Em sua estante de livros Nick Hornby e J.R.R Tolkien brigam constantemente pelo maior espaço, mas agora ganharam a concorrência voraz de George R.R Martin. Devoto do gremismo, não dispensa um café ou um chimarrão bem quente.
Seus contos podem ser lidos em: http://contosdefleming.blogspot.com
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