Conto: M.D. Amado
Do tempo em que o tempo não fazia
diferença e o relógio era um luxo do qual poucos podiam usufruir. Em uma
comunidade perdida, esquecida... no tempo.
Filha de dois irmãos. O pai
demente, a mãe ninfomaníaca. Expulsos da família por se conhecerem
biblicamente, seguiram suas vidas desgraçadas, abraçadas a esperanças de dias
melhores, ou quem sabe, normais. Ela, deficiente. Nascera sem as pernas e sem o
braço direito. Oh, vida desgraçada!
E já em sua adolescência, ganhou
duas irmãs... ou seria uma? Mais uma vez o incesto que não deu certo. Oh, fertilidade
desgraçada!
Siamesas.
E ela, que não tinha pernas nem
braço direito, ganhara uma(s) irmã(s).
Oh, irmã(s) desgraçada(s)!
Do tempo em que os homens da
ciência tinham sede e fome de conhecimento a qualquer custo. Do tempo, assim
como em qualquer outro, em que notícia ruim e desgraça alheia corriam a galope,
como um raio, como um piscar de olhos igual
esse que você vai dar agora... piscou?
E ela, sem pernas, se arrastou
até a porta. Quem bate? Alguém que veio
para ajudar. E como se ajuda alguém desgraçadamente incapaz?
Ele, que poderia se chamar
Victor, mas não chamava, prometeu-lhe o mundo e um outro braço. Quem sabe até
um par de pernas. Pediu a ela que não desistisse da vida, pois no momento
oportuno voltaria com o seu novo mundo.
O que mais ela poderia fazer,
senão esperar? Se matar era uma opção, mas não o fez. Oh, curiosidade
desgraçada! Como seria esse novo mundo em que ela teria duas pernas e dois
braços?
E nove anos se passaram, de um
tempo em que mal se media. Ela já nem se lembrava das fuças do Doutor, quando as siamesas passaram
batendo cabeça para atender a porta. Quem
bate? Alguém que veio para juntar. E como diabos se junta algo que já se
despedaçou no longe de Deus?
Ainda em tempo, diga-se de
passagem, o demente do pai/tio morrera no ano anterior. A mãe/tia foi embora
com um saltimbanco. Desgraçada! Mas pelo menos ele não era parente... não muito
próximo.
Do tempo em que Mary Shelley
ainda nem tinha saído das fraldas, o Doutor, que não era Victor veio cumprir
sua promessa. Trouxe-lhes um mundo novo! E
que mundo mais desgraçado poderia ser dado àquelas irmãs?
Siamesas... triamesas?
E ela costurada. Acordou
desorientada, orientada apenas pelos gemidos em seu ouvido. Elas.
Costura bem feita, se
considerarmos a época.
Exausto, jogado na cadeira, o
nosso Victor que nem era doutor, admirava sua experiência. Admirava... Desfez-se
da empolgação inicial. Chorou... Oh, ideia desgraçada! Pernas pequenas demais.
Ao lado da cama, um braço
pequenino. Na cama, a aberração multiplicada.
Ela... elas.
Costuradas.
Ela agora tinha um braço direito
e três cabeças.
Elas agora tinham um corpo de
mulher, ou parte dele. Seios fartos e a inocência perdida.
Oh, Victor desgraçado!
Do tempo em que, como hoje,
aquele que errava ia embora, como se nada tivesse acontecido. O mundo novo ele deixou
lá, para quem quisesse explorar.
E mais um ano se foi. Não que
elas tivessem contado os dias, mas o tempo passou mesmo quando o tempo não se
passava. E lá estavam elas, irmãs, siamesas-triamesas,
filhas de dois irmãos, incestos que não deram certo, abandonadas e lésbicas.
E vocês nem imaginam a
dificuldade de locomoção.
Oh, infâmia desgraçada!
Pedro Giongo
Seus trabalhos podem ser visualizados no site: http://estudiotijucas.com
M.D. Amado
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Sr. Marcelo, acabo de ler o seu conto, muito bom, eu adorei, agora eu queria encarecidamente pedir que o Sr Visitasse o meu blog: (http://contosdesalomon.blogspot.com.br/)
ResponderExcluirTemos um gosto em comum...
Até mais.