25 de jul. de 2012

A casa dos segredos

Ilustração: Theo Szczepanski
Conto: Rafael Pesce


Vum Vum Vum Tec Vum Vum Vum Tec Vum Vum Vum Tec...o barulho do velho ventilador o despertou. O quarto era mal iluminado, com apenas uma cama de solteiro coberta pelo pó. Ao lado, uma pequena cômoda com um telefone antigo. Uma televisão 14 polegadas, com alguns botões faltando, completava a decoração. Na porta, um chaveiro escrito HOTEL MIRANTE entregava o lugar em que acordara. Como ele havia chegado ali ainda era uma incógnita. No corpo, uma camisa de cetim, uma calça jeans desbotada e um relógio quebrado. No chão, um par de sapatos com as meias ainda dentro. Levantou da cama, ainda um pouco zonzo. Não fazia a mínima ideia de como chegara ali. Lembrava apenas do seu nome, Victor. Profissão? Família? Namorada? Nada, nada aparecia em sua mente, apenas um grande vazio preenchido por uma sensação de estranheza. Colocou as meias e o sapato, abotoou a camisa e ao se levantar sentiu um leve peso em um dos bolsos. Puxou um cartão. Nele estava escrito: NIX – CASA DE PENHORES – Rua Imperador de Jade, 14. Era uma pista, a única que tinha.

A cidade era desconhecida. Parecia grande, já que prédios pipocavam por todos os lados. Entrou em uma cabine telefônica em busca de uma lista. Procurou pelo nome da rua, mas ela não constava em nenhuma das 500 páginas. Olhou novamente o cartão para conferir se não havia se equivocado. Mas era isso mesmo, Rua Imperador de Jade, inexistente aos seus olhos. Caminhou por mais algumas quadras. Seguiu o caminho onde o cheiro era pior, parecia lógico para ele. Acabou em uma pequena travessa. Lá, mulheres dos mais diferentes tipos vendiam o corpo. Abordou algumas delas e perguntou se sabiam da existência da rua misteriosa. Todas foram unânimes em dizer que não, com uma convicção assustadora. Estava sem rumo. Resolveu sair daquele lugar, mas foi interrompido por um toque no ombro. A responsável foi Labelle, uma prostituta ruiva e obesa, que calmamente sussurrou nos ouvidos de Victor:

- Meu amor, todo mundo que vive no submundo sabe da existência dessa rua. Mas chegar até lá é algo que muitos têm medo... medo até de pensar. Querido, você me parece alguém que não vai desistir até encontrar o que procura. Por isso, pegue o metrô até a estação Policarpo, vá em direção à saída sul e ande três quadras. Lá estará o bar Potus, um lugar onde respostas podem ser encontradas...

Labelle piscou com o olho direito, deu um tapa de leve na bunda do rapaz e colocou algumas notas e moedas no bolso da camisa de Victor. O metrô demorou 15 minutos para chegar até o destino. A caminhada até o bar foi apressada. O estabelecimento era pequeno, podia passar despercebido pelos olhos mais desatentos. Na entrada, um letreiro em néon, mas apenas a letra P ainda exibia alguma luz. Desceu uma pequena escada que o levou até o leão de chácara, mal-encarado. Entrou sem pestanejar sob olhares desconfiados. No interior, uma dezena de pessoas se dividia entre o balcão e as poucas mesas. Ainda era cedo para um movimento maior. No palco, uma banda de barbados cantava uma versão arrastada de “Woman From Tokyo”, do Deep Purple. Sentou no balcão e pediu o drink mais barato do menu. O barman, um velho carrancudo com tatuagem do Charles Bronson no braço direito, o serviu. Com o copo cheio, Victor foi direto ao ponto: “Rua Imperador de Jade, 14”. O braço tatuado apontou para uma mesa localizada no canto mais obscuro do bar. Lá estava sentando um anão. Ele exibia traços asiáticos e vestia um terno e chapéu que pareciam saídos da Chicago dos anos 20. Cheng era seu nome. Duas loiras robustas, em vestidos mínimos, o acompanhavam. Compenetrado, Victor aproximou-se da mesa. O anão notou a expressão séria que o encarava e mandou as duas companheiras se afastarem.

- Rua Imperador de Jade, 14. O que você sabe?
- Calma garoto, calma. Informações como essa tem um preço. Você acha que é barato pagar por belezuras como aquelas duas? O que você tem a me oferecer hein garoto?!
- Isso!!!!!!

Victor desferiu um soco tão rápido que pegou Cheng sem nenhuma reação. O anão foi derrubado da cadeira, batendo a cabeça no chão. A confusão despertou a ira dos frequentadores do bar, que partiram para cima do brigão. Um a um foram caindo após sequências de chutes, socos, cabeçadas e voadoras. Com todos já sem capacidade de reação, Victor voltou a interrogar o charlatão:

- A rua, agora! Você tem três segundos para me dizer antes que sua cara fique tão feia que nenhum dinheiro no mundo vai fazer uma puta te aceitar...
- Calma, calma...calma garoto. Eu digo! Eu digo! Essa rua fica em um lugar onde ninguém vê, pelo menos não claramente. Vá até o centro da cidade, em direção à praça José Bonifácio. Procure pela Lavanderia Yin-yang, você encontrará o que procura lá... agora vá, me deixe em paz, por favor...

Victor surrupiou o dinheiro da carteira do anão e saiu do bar. Pegou um táxi e rumou até o centro da cidade. Desceu perto de um calçadão e começou a procurar pelo estabelecimento. Não demorou muito e encontrou a lavanderia. Ela ficava em um local pouco visível, em uma rua secundária. Victor parou em frente à porta. Nenhuma luz aparente. Tentou a maçaneta. A porta estava aberta. Entrou no lugar e...

...lá dentro não havia máquinas de lavar roupa, nem secadoras, nada. A entrada dava acesso à outra rua. Imperador de Jade, apontava a placa. Lateralmente vislumbrou mais de uma dezena de portas. Procurou pelo número 14 e lá estava, NIX – CASA DE PENHORES. A porta era de madeira, antiga, com alguns buracos denunciando a ação do tempo. Entrou sem bater. Caminhou por um pequeno corredor até chegar ao que parecia ser uma recepção. No balcão, uma senhora idosa, certamente com mais de 70 anos. Ao fitar Victor, os olhos dela arregalaram-se. Começou a tremer e a gritar: “Meiying, Meiying, Meiying”. De uma ante-sala saiu uma mulher, mais jovem. Igualmente assustada, balbuciou uma indagação:

- Não...n-n-não funcionou senhor? O que você faz aqui? – As palavras saiam tremidas, quase incompletas.
- Como assim? Do que você está falando?
- Você não lembra? – a voz agora aparentava uma maior calma.
- Acordei em uma pocilga, sem lembrar de nada, apenas com este cartão no meu bolso. Que diabos aconteceu comigo?
- Senhor...é melhor me acompanhar.

Victor dirigiu-se com as duas mulheres até uma pequena sala. Lá, um velho ancião estava sentado no chão com os olhos fechados, entoando cânticos em uma língua estranha. Ao lado, um pequeno fogão improvisado esquentava uma chaleira com água. Ao perceber movimento, o anfitrião levantou as pálpebras.

- Hum...você voltou! O trabalho não funcionou?
- Ele não sabe o que aconteceu, está desnorteado. Procura respostas, urgentes. Parece que não vai desistir até as encontrar – respondeu a mais jovem das mulheres.
- Hum...e você meu jovem, tem certeza que quer descobrir o porquê de tudo?
- Vamos velho, me fale logo o que aconteceu comigo!
- Bem, como você já deve ter percebido essa não é uma Casa de Penhores. De segredos, talvez. O conhecimento da existência desse lugar é privilégio para poucos. Mas bem, o que eu faço aqui meu jovem, é uma arte há muito tempo esquecida, uma arte que é passada de geração a geração. Neste recinto, os segredos das pessoas são guardados, muitas vezes até esquecidos. O fruto desse abandono é o alimento da nossa casa.

Victor não se sentia completo desde que acordara. O vazio interior crescia assustadoramente a cada segundo. Transtornado e sem ter certeza do que estava pedindo, deixou as palavras fluírem:

- Você tirou um segredo. Pode colocá-lo de volta?
- Hum....tem certeza que é isso que quer?
- Ou é isso ou é o fim da linha para mim, sinto um abismo se abrindo dentro da minha cabeça.
- Tudo bem meu jovem, sente-se aqui.

Victor acocorou-se ao lado do ancião. A água que estava esquentando, a essa altura já estava fervida. O velho pegou uma caneca e colocou algumas ervas dentro. Sovou todo conteúdo e misturou com o líquido.

- Agora beba, isso é tudo que precisa fazer.

Tremedeiras, suor excessivo, barulhos estranhos...tudo começou a girar. Victor pensou que estava morrendo, mas a visão que teve era pior que a morte. Tudo estava preto e branco. Um a um seus demônios interiores foram aparecendo. Vidas passadas, há muitos séculos esquecidas, foram desfilando na frente de seus olhos. Em meio a um assombroso passado, reis, rainhas, bruxas e criaturas da noite ganhavam contornos sanguinários. O protagonismo da mão que empunhava os instrumentos da morte era sempre de Victor. As imagens percorreram o caminho do tempo até chegarem à década atual. O panorama continuava o mesmo, apenas com uma gama diferente de vítimas. Pouco mais de 20 minutos de um tormento quase insuportável se passou. Victor levantou-se, agora com a convicção de quem realmente era, e saiu daquele lugar. Três corpos foram deixados para trás, com a certeza de que certos segredos não devem ser nunca esquecidos.

Rafael Pesce 
Nasceu em 1985 na cidade de Três Passos, interior do Rio Grande do Sul. Mudou-se para Porto Alegre em 2003, onde se formou em Jornalismo pela PUC-RS e mora até hoje. Em sua estante de livros Nick Hornby e J.R.R Tolkien brigam constantemente pelo maior espaço, mas agora ganharam a concorrência voraz de George R.R Martin. Devoto do gremismo, não dispensa um café ou um chimarrão bem quente.  
Seus contos podem ser lidos em: http://contosdefleming.blogspot.com

Theo Szczepanski
Suas ideias e referências podem ser visualizadas no tumblr: http://opustheo.com e seu portfolio online em: http://cargocollective.com/opustheo

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