Conto: Eduardo Capistrano
Ataulfo aguardava. “O filho do meu pai
não esmorece”. Com seu chapéu preferido na cabeça, resmungava sozinho enquanto
cofiava o frondoso bigode, sentado na rede, na varanda de casa. Os pés não
tocavam o chão, apenas as solas dos chinelos, arrastadas pra frente, pra trás,
pra frente, pra trás.
Não era papudo. Não era “ligeiro”. Não
era, enfim, qualquer uma das coisas que o Zé Pitoco estava falando dele.
“Desgranhado filho de cachorro com bode”.
A Diocleciana falou que ele é quem devia
ter começado. “Como sempre”, ela gralhou, quando ainda achava que era só uma
briga de boteco. Passa um tempo na vida de um homem sem briga, sem sangue, e o
povo pensa que ele murchou. Até a mulher de um homem pensa que ele não é de
nada e acha de zombar dele. Mas o que se pode fazer? Um homem não caça mais.
Não volta com sangue e carne nas mãos. Um homem não precisa mais matar pra
conseguir uma terra ou uma casa. O homem de bem trabalha e consegue tudo o que
precisa. Aí vem outro e pensa que ele é um fracote. “Meu pai não teve filho
fracote”.
A mulher não gralhava mais quando tocou
ela de casa. Chorava e gritava, enquanto Ataulfo enfiava ela e os filhos na
picape do cunhado. Agora não precisava provar nada, não é? “Entra no carro.
Fica quieta”. E pro primogênito: “você é o homem da família agora”. Sapecou um
beijo na testa dele. Era o primeiro beijo que dava no filho. O guri tinha
acabado de fazer dez anos.
Pela terceira vez pôs na boca a garrafa
vazia de pinga. A bolota de líquido acumulado no fundo virou, de novo, uma gota
que escorreu pelas paredes da garrafa até seus lábios. Largou a garrafa dentro
da rede, com as outras duas também vazias. A visão estava agradavelmente turva.
O corpo, confortavelmente amortecido.
Divisou o Zé Pitoco quando o chapéu despontou
na subida da estrada que chegava nas suas terras. Aí apareceu a cabeçorra sobre
o corpo magro, com as orelhas de abano e aquela cara de rato com os olhos
apertados, o bigodinho ralo e os dentes tortos pra fora naquele sorriso
estúpido e zombeteiro que não saía do rosto. Vinha andando do seu jeito
desengonçado. Parecia que mal aguentava com o peso do corpo, quanto mais da
carga que trazia.
Parou na porteira. Lá na estrada, à
distância, estavam os outros. O cunhado de Ataulfo e mais alguns. Não estavam ali
pra interferir. Só pra ver e contar depois.
O Zé Pitoco abriu a porteira já cuspindo
xingamentos. Ataulfo se ergueu da rede, a espingarda nas mãos, devolvendo
impropérios. Não precisavam ouvir as ofensas que estavam trocando. Nem
conseguiriam, se quisessem. Ambos tinham plena certeza da opinião que tinham um
do outro. O Zé Pitoco mostrou o peito com a mão, gritou, apontou as
testemunhas, chamou Ataulfo de covarde. Na outra trazia um facão. “Meu pai não
criou covarde”.
Ataulfo deixou a espingarda e foi pra
cima do Zé com a própria faca. Menor, mais rápida. O rato era traiçoeiro. O
tiro da garrucha dele pegou na coxa de Ataulfo. Estava tão bêbado quanto ele.
Ataulfo deixou a faca nos buchos do Zé, mas o magro pareceu não sentir. Seu
facão entrou no braço de Ataulfo como se fosse a cana que costumava cortar.
Ataulfo colheu com a mão ilesa o pescoço do Zé e procurou com a mão ferida uma
arma. Achou as garrafas vazias na rede, quebrou uma na cabeça do Zé sem
largá-lo, empurrou-o sobre a rede. Enfiou a garrafa quebrada uma, duas, três
vezes na cara dele, enquanto enrolava as cordas da rede ao redor do pescoço do
Pitoco.
A cara de rato, ensanguentada, mudou de
cor. Ataulfo somou o peso do próprio corpo ao do Zé. Ele se debateu, se
contorceu, mas logo parou de se mexer. O olho que não foi vazado pela garrafa
quebrada parecia querer pular pra fora da órbita, como a língua pra fora da
boca. Só então Ataulfo desvencilhou-se dele, direto pro chão. Agarrou o cabo do
facão do Zé. Estava enterrado no meio do próprio peito. O cunhado e os outros
chegaram bem nesse momento. Ouviram as suas últimas palavras, cuspidas com
sangue, depois dele tirar o facão das tripas.
“O pai do meu filho não é covarde.”
Eduardo Capistrano
Nasceu em Curitiba, Paraná, no ano de 1980. Contista desde 2002, é autor de "Histórias Estranhas" (2007) e "A Quarta Dimensão" (2011).
Saiba mais em http://edcapistrano.blogspot.com
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