27 de abr. de 2012

Títere (V)

Texto: FMAN
Ilustração: Isabele Linhares




2012
Entre o palco e a janela, ele. De cima para baixo, seus olhos. Respira. A proeminência laríngea, lentamente. A garganta seca. Abre uma gaveta, retira um espelho e um pino. Sobre o espelho, despeja o conteúdo do pino. Com um cartão, ele faz do pó uma fileira organizada. Engole em seco. Usa um canudo cortado para inalar. Funga ruidosamente, apertando uma das narinas. Pra lá do palco, o garoto falando. Não ouve.
Ele respira fundo. A barriga infla/desinfla. Estrala os dedos unindo as duas mãos. Um dos bonecos está pronto, sob o tablado de madeira que compõe o palco. Tira o cinto, arria as calças até os tornozelos e senta-se em uma cadeira em frente ao tablado. Retira da gaveta uma seringa, uma ampola e pequenos pedaços de tecido. A seringa fere o bico da ampola. Enquanto o líquido sobe, sua cabeça ergue-se junto. A boca aberta. Poucos miligramas. Segura o pênis com a mão esquerda e, com a direita, penetra a injeção lentamente no corpo cavernoso. Nem uma gota de sangue.
Os pedaços de tecido revelam-se indumentárias permeadas por fios. Ele amarra os fios em um pedaço de madeira em forma de cruz. O pênis começa a enrijecer-se até alcançar o máximo de sua capacidade. Da mesa, ele pega um jogo de lápis especiais para maquiagem. Sua cabeça pende de um lado a outro, suavemente. Seus olhos estreitam-se enquanto maneja os lápis. Empurra a cadeira para frente, ajeitando os membros inferiores por baixo do tablado. Traz o pênis ao palco através de um orifício circular presente no lado direito do tablado. Por fim, coloca a indumentária, escondendo a glande com a cabeça de uma lagarta feliz. Murmura baixo:

“Você está velho, Pai Joaquim, disse o jovem,
E seu cabelo está ficando branquinho,
Mas você ainda planta bananeira,
Você acha, que na sua idade, isso está certo?3

 Manipula os fios. Sua cabeça balança de cima para baixo. Ele solta a cortina que separa seu tronco do palco. O segundo boneco está pronto.          
O palco ocupa um amplo espaço, limitado em distâncias equidistantes à esquerda e à direita das paredes laterais do quarto. É ligeiramente elevado em relação ao chão. Todo feito de madeira polida. Ele mesmo fez. Uma cortina preta cobre a extensão do espaço em que se desenrola a ação. A cortina é puxada para cima, por uma mão que surge e some, rapidamente, de/por cima do palco.
- Até que enfim! – o garoto está sentado em uma cadeira de plástico branca. Pernas magras, ossudas. Os joelhos estão colados e as tíbias balançam. A bermuda ergue-se quase até o meio das coxas.
A primeira marionete é um boneco articulado, usado geralmente como material de desenho. A lagarta está dormindo. O boneco aproxima-se sorrateiramente, pé-ante-
-pé, em cadência. A cabeça sem rosto vira-se. A lagarta está dormindo. Que tal acordarmos ela?
- Ah, que bobo! – o garoto levanta os braços e os deixa cair.   
            O boneco estremece. Mas a lagarta ergue-se, em todo seu esplendor, curvada para trás. Possui bracinhos ao longo de todo o corpo. É azul. As rugosidades de seu corpo quase somem quando está completamente esticada. Sua voz é poderosa e retumbante: Quem vem lá que me acorda, a esta hora, em meu domínio, eu, Poderosa Lagarta de Onã?
            O garoto franze o cenho.
            Passam-se alguns segundos. O boneco, antes curvado e sem vida, levanta e vira apenas a cabeça. Murmura. Ei, ele está falando com você! Não deixe a lagarta brava, garoto, por favor!
            O menino inclina o tronco para trás. Arregala os olhos. O espetáculo dura cerca de quarenta minutos.
           
            A lagarta está inerte. Seu tamanho e esplendor sumiram, suas glórias são finitas. Puniram ela. Bateram nela, tiraram-lhe toda a vida e todo o vigor. A lagarta prezava a Beleza. Esse foi seu único pecado.
            - Eu não vi ninguém bater nela! – brada o garoto.
            A voz surge atrás do palco.
            - Bom, isso aconteceu depois. Eu não contei. Mas aqui está ela, veja. Venha dar uma olhada de perto.
            O garoto levanta-se da cadeira e anda até o palco. O boneco articulado está caído no lado direito do tablado.
            - Olhe. – os fios da lagarta erguem-se, balançam, mas ela está enrugada. Pende de um lado a outro. – Viu? Pegue.
            O garoto estende a mão. Uma lufada de ar, vinda de cima, percorre seus dedos. No momento em que sua mão engloba a lagarta.
            - Ele é um boneco bem mole!
            - Ele não é um boneco, meu rapaz. É uma lagarta.
            - Mas agora ela não fala mais! Você é que faz ela falar! Faz ela falar de novo. É apenas um boneco sem vida!
            Mais uma lufada de ar atravessa os dedos do garoto. Ele olha para cima. Seus olhos encontram-se.
            - Ela não quer falar. Esta lagarta está muito solitária. Puniram ela. Bateram nela. Ninguém mais quis brincar com ela.
            - Por que ela foi punida, então?
            Ele funga. Seu maxilar cerra-se.
            - Isso não importa agora.
            - Ela morreu?
            - Oh, não. Ela só está triste e sem forças. Ela precisa que alguém faça carinho nela. Tua mãe nunca te ensinou o que é carinho?
            - É claro que eu sei. É assim. – com as costas da mão, ele roça a lagarta, suavemente. Ela estremece levemente.
            - Não, ela está muito triste... isso não bastará para que ela volte a falar com você! Você tem de segura-la, firme, sacuda ela, para cima e para baixo. Sim! Isso, desta maneira, veja como ela já está acordando!
            O garoto sorri.
            - Ah! Ah! Ah!
            Um pingo de suor cai sobre o tablado. A lufada de ar na mão do garoto torna-se mais forte e frequente.
            - Fala! Fala!
            Oh, sim, garoto! Já posso sentir as forças voltarem! Faça mais forte! Eu voltarei!
            A lagarta volta a ter seu tamanho normal. Seu corpo não está mais enrugado. O garoto usa as duas mãos. Pra cima, pra baixo. Sorri. A ponta de sua língua surge entre os lábios.
            Você me ajuda, garoto! Você está cheio de beleza, você me preenche!
            - Ah! Ah! Ah!
             As lufadas de ar começam a fazer barulho.
            Eu estou viva. Eu estou viva, oh Deus... oh, Deus...
            Mais pingos de suor caem sobre o tablado. O garoto olha para cima. O rosto do homem está elevado. Os olhos estão fechados. A boca está aberta, úmida, o lábio superior ligeiramente à frente do inferior. Algumas bolhas de suor entre a boca e o nariz.
            Estou viva, es... Ahh..ah..
            - Você está bem?
            Sim, es-, estou bem, continue, garoto, continue!
            O menino larga a lagarta. As mãos estão ainda dentro do palco.
            - Ei, moço, eu não quero mais brincar.
            O rosto elevado baixa os olhos. Ainda geme. Suas sobrancelhas assumem a forma de um “v”. Abre os olhos. Seus lábios alongam-se. Seus dentes estão cerrados.
            - CONTINUE!
            O garoto recua. As íris azuis ligeiramente úmidas. Refletida na pupila, uma sombra vaga contra alguma fonte de luz indistinguível. A esclera, em intervalos irregulares, ora para a direita, ora para a esquerda, rapidamente.
            Suas mãos estendem-se novamente para a lagarta.
            Ahhhh, sim, sim, deus...você é poderosa, e o inferno desabará sobre aquele que te enfrentar!
            A expressão de seus olhos, quando vista em conjunto, revela aguda tensão dos supercílios em sentido inferior.       
            Os gemidos intensificam-se.
            Não há elevação do sulco palpebral superior.
            A lagarta contorce-se. As mãos do menino estão encharcadas. O líquido escorre por entre seus dedos.
            A poderosa lagarta agradece, pois o espetáculo da Beleza está vivo e continuará apreciado e vivo. E se retira.
            O homem pega, com uma das mãos, ambas do garoto, que as mantém esticadas. Em silêncio, ele conduz o menino até o banheiro.
Lá, ele lava suas mãos.


3 Alice no País das Maravilhas.


FMAN
Filippo Mandarino nasceu em Brasília em 1983, mas desde os três anos de idade mora em Curitiba. Já teve publicado um poema na revista Ideias e outros em jornais acadêmicos. Cursa Letras na UFPR e hoje tenta sobreviver como revisor, apesar de dizer a si próprio todas as noites antes de dormir que sua profissão é "Escritor". Blog: http://filippomandarino.blogspot.com

Isabele Linhares
Seu portfolio online: isabelelinhares.daportfolio.com



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