Conto: Gustavo Ramos
Ilustração: Simon Taylor
Parte 1
Emílio acordou de sobressalto ao perceber que o gato branco que manchava aquela noite densa e escalava o teto de uma choupana do passeio público não era mais do que a lâmpada de um pequeno quarto, fustigando seu olhar adormecido, distorcida por um delírio febril. Sonhava estar ao relento, esquecido num frio congelante, imóvel num banco de madeira, mas percebeu-se ainda no mesmo quarto que há três anos recebeu para vigiar as madrugadas do parque curitibano.
Molhou o rosto na pia, tomou um gole
de café e saiu para mais uma ronda. Já quase no fim, quando voltava para seu
quarto, percebeu que mais um pavão havia desaparecido, justo aquele que possuía
as penas mais bonitas, do verde mais claro e frondoso, cujas intensas gotinhas
azuis pareciam querer escapar daquela imensa cauda.
Já
era o segundo que fora levado, e agora restava apenas mais um para acariciar os
olhares daqueles passantes curiosos que ali paravam todos os dias. Já imaginava
o pivete do Guadalupe que agora andava impune nas ruas da cidade, segurando a
linda ave pela cauda, rindo de seu sono e incompetência.
Não
havia mais o barulho dos carros, nem o ranger dos caminhões de lixo. Há duas
horas atrás os jovens ébrios da Trajano haviam passado, cantando suas tristezas
e angústias, mas agora o silêncio era seco, cortante. Aquela orquestra
silenciosa foi então interrompida por um grito desesperado, inconsolável e
breve, o grito de uma mulher que sofria, certamente dentro dos limites
gradeados do parque. Emílio deu a última volta, mas não achou a origem, nem o corpo, nem a alma
daquela voz atormentada.
Aquilo
gelou-lhe o estômago. Sacou o revolver, mas congelou seus braços no ar,
empalideceu diante do que viu no breu daquela noite de abril. Era a clara forma
de uma mulher desnuda, cor pura apenas manchada pelo sangue em sua boca. Os
olhos fechados dissolviam-se em gotas luminosas, que estrelavam aquele chão
coberto de sangue, jorrando de um imenso corpo, esvaindo seus últimos suspiros
naqueles rios vermelhos que bifurcavam desaguando por entre as frestas das
pedras do calçamento.
Ele
se aproximou vagarosamente e parou quando ela o olhou com profunda amargura. Ficaram
assim, enquanto o pranto cessava, a se olhar como se não existisse aquele corpo
sem vida, nem a enorme mancha de sangue, como se nada houvesse além do mistério
de dois olhos desconhecidos. Até que o pranto cessou de todo e o pavor que
antes o afligia deu lugar a um tenro sentimento de afeição.
Então
ela falou. Falou como quem não o faz há muito tempo, como alguém a quem as
palavras foram roubadas e de súbito reabilitadas. Ouviu a história de uma bailarina
que um dia floresceu nos palcos do Teatro Guaíra e de um maestro, um alemão
insondável de têmperas exaltadas, o mesmo que agora agonizava diante de seus
pés.
(Continua...)
(Continua...)
Gustavo Ramos
Nenhum comentário:
Postar um comentário