Conto: Gustavo Ramos
Ilustração: Simon Taylor
Parte 2
Há quase uma década atrás, numa noite de estréia, o estômago da jovem se dobrava e se partia, sendo expelido aos poucos em vômitos convulsivos. A perfeita execução dos passos daquela coreografia eram antes de tudo a moeda que permitiria à jovem alçar voos em palcos internacionais. Ela no banheiro, em agonia. As altas autoridades do estado esperando aflitas o início da apresentação.
Há quase uma década atrás, numa noite de estréia, o estômago da jovem se dobrava e se partia, sendo expelido aos poucos em vômitos convulsivos. A perfeita execução dos passos daquela coreografia eram antes de tudo a moeda que permitiria à jovem alçar voos em palcos internacionais. Ela no banheiro, em agonia. As altas autoridades do estado esperando aflitas o início da apresentação.
Dez
minutos se passaram do que deveria ser o início da dança, e surge na frente da
moça, ainda contorcida no chão do banheiro, o maestro que tanto temia. Em sua
mão enluvada portava um pequeno vidro escuro daqueles que se usam para conter
remédios. Ofereceu a ela, que bebeu o num trago. A dor se foi e ela levantou-se
rapidamente. Então, experimentou uma sensação de delírio maravilhosa, todo seu corpo
era um só sentimento livre, uma vontade de levitar, de voar e cair com a leveza
da pena de um pássaro.
Ela
enfim entrou no palco e dançou. Encantou aqueles olhares ansiosos,
arrancou-lhes lágrimas. Não pensava mais nos passos da coreografia, mas naquele
sentimento de puro êxtase causado pelo mover de seu corpo, pelo livre transito
que sentia entre o palco e as almas daqueles que a assistiam. Ao termino da
apresentação, as palmas duraram quase dois minutos. Não eram para a orquestra
dedicada, nem para os outros componentes do balé, eram sim para ela, pois
aquela plateia nada olhava a não ser o seu riso saboroso e seu vestido azul,
salpicado de gotinhas brancas.
Ao
fim dos abraços e sinceros agradecimentos, ela adormeceu ali mesmo no teatro.
Percebendo o profundo cansaço da jovem, o maestro avisou a todos que lá a
deixassem, pois voltaria ao Teatro na manhã seguinte e poderia conduzi-la ao
hotel próximo.
Ela
acordou e sentiu seu corpo envolvido por um grande véu suave, que acariciava
lhe inteiramente. Pensava que aquilo não era mais do que a extensão do êxtase
experimentado na noite anterior. Sorriu, e fechando os olhos lembrou-se
daqueles olhares curiosos e maravilhados da plateia, até aperceber-se da imagem
que figurava no espelho logo a frente. A imagem não mostrava seu corpo
lânguido, nem o rosto doce, de bochechas sem vida e sorriso acalentador,
tampouco seu grande olhar curioso. Tomada por um assombro horrível, viu a
imagem de um pássaro de um bico fino e enorme calda verde. Seu pescoço era
feito de um azul tão brilhante que parecia machucar seus olhos ainda
sonolentos.
O
maestro alemão chegou sem que percebesse e contemplava a cena sem surpresa.
Parecia estar há muito tempo ali, a deliciar-se com a beleza da ave. Sem
delicadeza a colocou num pequeno cativeiro e a jovem, em sua bela e infame prisão
de penas, passa o dia e a noite no claustro do porta-malas de um velho Sedan, e
de madrugada é levada ao que deveria seu cativeiro eterno, no Passeio Público,
junto a tartarugas e outros pavões.
O pouco sabor da vida reduzia-se a encantar os
olhares dos transeuntes, principalmente das crianças, que sempre lhe sorriam
com sincera alegria. Era numa sensação parecida àquela encontrada no palco de
um grande teatro. Com frequência recebia visitas do maestro, que nada a dizia,
que nada lhe dava, apenas a olhava, absorto, compenetrado.
A última visita do maestro acontecera naquela
noite. Ele pela primeira vez quis tocá-la. Embalou-a em seus braços e beijou
sua cabecinha. Mas ela, tomada por um desejo feroz mergulhou seu bico no peito
do velho maestro, com força que não acreditava ter, conseguindo perfurar sua
pele e penetrando o interior das cavidades daquele coração amargo.
Ela deu seu ultimo grito de ave, sentindo um frio
imenso tomar seu corpo, pois aquele envoltório de penas azuis ia
desmanchando-se aos poucos. Percebia vagarosamente a volta da sua nudez de
menina, aquela mesma menininha que um dia brilhou nos palcos do Guaíra. Ela
então chorou novamente o líquido branco e brilhante, a única herança da
maldição do maestro. Chorou, pois talvez não desejasse matá-lo. Talvez o
amasse, por ter permitido a vida naquele claustro delicioso de olhares infantis
e penas maravilhosas.
Emílio ouviu a história inerte. Mal percebia que o
sol quase desabrochava do horizonte. Ele a ajudou a enterrar o maestro no
gramado em frente ao cativeiro e a limpar as manchas de sangue. Ainda com as
mãos cheias de terra o guarda olhou para o lado, para despedir-se da moça, mas
já não encontrou ninguém. Ela se desmanchou no ar e desapareceu como a lua,
naquela manhã de abril.
(Fim)
Gustavo Ramos
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