Conto: Luiz Bras
Ilustrações: Henrique Martins
Tenho medo.
Jurupari-mãozudo
gosta de carne podre. Suas garras cavam o solo do cemitério. Cavam de baixo pra
cima. Do fundo pra superfície. A terra treme, as lápides tombam.
Minha sombra
tem meia dúzia de contas secretas em bancos da Suíça. Minha sombra me traiu
& fugiu do país.
Tenho muito
medo.
Anhangá-bocarra
gosta de dentes velhos. De ossos porosos semeados no solo morto. Suas presas
rasgam o fundo dos túmulos. Trituram a madeira dos caixões.
Minha sombra
desviou seis milhões de reais do ministério da saúde. Minha sombra me traiu
& fugiu do país.
Tenho muito,
muito medo.
Abro os
olhos & volto a respirar. O cheiro de decomposição é meu pior pesadelo. O
cheiro da minha decomposição. Não
consigo mexer os ombros nem os joelhos, parece que meus ossos porosos foram separados da carne podre.
Não consigo enxergar nada, só a verdade: sou uma coleção de peças soltas &
estou preso.
Enterrado
morto, continuo vivo.
O pavor
aguça meu radar, Jurupari-mãozudo está chegando. Mentalizo, modelo na
imaginação um espaço a céu aberto. Uma praça pública. Não dá certo, o escuro
não brilha, não me teletransporto.
Anhangá-bocarra
está cada vez mais perto. Mentalizo, modelo na imaginação uma praia deserta. O
saguão de um shopping. Meu quarto. Não dá certo, o escuro não brilha.
Enterrado
vivo, continuo morto.
Virado do
avesso: órgãos do lado de fora, pele dobrada feito um casaco velho.
Jurupari-mãozudo
me alcança, devora minha carne podre. Anhangá-bocarra fica com os dentes
velhos. Com os ossos porosos.
Game over.
Minha sombra
me traiu? Minha sombra me prendeu em meu próprio delírio?
Tenho muito,
muito, muito medo.
Mentalizo,
modelo na imaginação uma saída desta armadilha. Uma passagem secreta através do
espelho.
Pra mim
chega, desliguem tudo. Eu quero parar.
Quero &
não quero.
Medo.
Tenho muito,
muito, muito, muito medo de acordar & descobrir.
Que jamais
acordei, jamais acordarei.
Que neste
jogo de um jogador só.
Minha sombra
& eu.
Jurupari
& Anhangá.
Somos o
mesmo morto-vivo.
O mesmo
vivo-morto.
Luiz Bras
Nasceu em
1968, em Cobra Norato, MS. Sempre morou no terceiro planeta do sistema solar. É
de leão e, no horóscopo chinês, cavalo. Na infância ouvia vozes misteriosas que
lhe contavam histórias secretas. Adora filmes de animação, histórias em
quadrinhos e gatos. Acredita em telepatia e universos paralelos.
Henrique Martins
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