27 de fev. de 2012

O bloco da meia-noite

Arte: Isabele Linhares
Texto: Daniel Russell Ribas



Era o ano de estreia do bloco. Poderia ser apenas mais um entre as dezenas de aglomerações festivas ilegais que brotavam das ruas da cidade a cada carnaval, como as latas de cerveja esmagadas e a urina onipresentes. Ao contrário da maioria, saía do cemitério, na terça-feira, à meia-noite. Depois, dava uma volta no quarteirão e retornava à concentração.
Achamos tão estranho que era imperdível. Que tipo de mulher teria por lá? Nunca tinha "pegado" uma gótica antes. Devia ter alguma gostosinha. Mas, novamente, a gente falou Vamú lá, que vai rolá! e fomos. Àquela altura, tínhamos uma média de cinco a seis blocos por dia, duas mulheres por bloco de ficação, três para ralação séria; às vezes apenas cada um com sua garota, em outras, dividindo entre a gente.
A concentração ficava quase na entrada da cidade, perto da zona portuária. O ar pesava em maresia e podridão. A mistura da poluição das águas com a imundície daquela parte negligenciada do município, ainda mais evidente pelos efeitos legados por foliões relapsos, torna a atmosfera sufocante. Mas não era só isso. Havia mais um odor no ar. Fino, delicado, porém determinante. Era dez para meia-noite. O bloco, em breve, sairia e arrastaria a todos em ritmo de batida e pecado.
Porra, se lembra onde estacionou o carro? Não vejo nada nesta merda, tá escuro pra caralhooooo! Amanhã, cedinho, é Cordão, no Centro! Uhú, dormir é para os fracos! O bloco já saiu do cemitério?! Porra, mal passou de meia-noite! Se liga, tá logo ali, tou ouvindo a bateria!
Os quatros jovens correram, trôpegos pelo cansaço e embriaguez seguidas durante o feriado. Como o bloco estava entrando na esquina, alcançaram-no sem problemas. As ruas estavam desertas e um breu dominava o ambiente. Se não fosse a música alegre, alguém poderia confundir aquela passeata como algo mais obscuro e sinistro. Eles chegam pulando, abraçados e exibindo disposição para festejar.
Não é que o maluco não tava mentindo? Tem mulher nessa porra! Mulher boa! Só não tou vendo ambulante. Foda-se, trouxemos gummy pra encher a cara de geral aqui! Se você fosse sincera! Ôôô!
Os amigos estavam com um objetivo claro em mente: sexo. Conheceram um rapaz em um outro bloco, que os alertara para a estreia do Bloco da Meia-Noite. Após o estranhamento inicial, perguntaram se mulheres estariam. Cara, garanto: vai ter de tudo.
Pra chegar em mulher, tem que ser direto. Em bloco, não pode perder tempo, cara. Perdeu, playboy, já era, parte pra outra. Mulher não falta. A gente foi lá sem muita expectativa, mas a mulherada nos deu a maior moral! Um pôs o braço em volta da morena, e foi! Outro chegou, cantou a marchinha no ouvido e terminou na boca. O cara veio com uma cantada podre, a garota riu e, no final, tavam os dois rindo juntos, abraçados. Eu também me dei bem, uma lourinha que não parecia ser daqui.
O bloco deu a volta no quarteirão. Seguiu sua trajetória sem intervenções problemáticas. Nada de vendedores interrompendo a passagem, moradores reclamando do barulho ou briga no meio. Aos beijos, tudo isto pouco importava aos amigos. O tempo para eles estava acabando e eles pretendiam aproveitar ao máximo. Afinal, já era quarta-feira de cinzas!
Cara, nem notei quando entramos no cemitério! O bloco tava tocando e as garotas na maior disposição e a gente sem conhecer porra nenhuma daquele buraco onde tinha se enfiado. "Vamos pra dentro?" "Só se for agora!", resposta geral. À medida que a música se distanciava, maior era o calor. "Muito quente, não tá a fim de tirar essa blusinha?" Nessa hora, não tem frescura. Pegamos as piranhas no chão mesmo! Chão, chão, chão! Podia ouvir os colegas gozando alto. "AAAHHH!" É que digo: quanto mais longe da cidade, melhor pra pegar mulher. Aqui, não tem frescura pra dar, não!
Quando o último dos amigos finalizou a relação sexual, ele percebeu o sangue. Por um instante, pensou que tivesse rompido o hímen da jovem. Mas uma gota caiu em seu pênis, de cima para baixo. Depois, outra. E outra. A mulher permanecia na mesma posição, sem mexer. Deitada de barriga para baixo no mármore, a cabeça escondida pelas trevas. De onde vinha o sangue? Ele cutuca a jovem, que não responde. Após mais algumas tentativas frustradas, o garoto a puxa pela perna até que todo o seu corpo, dos pés ao pescoço cortado, ficasse visível ao luar. Antes que pudesse gritar, sentiu a pedra pontiaguda abrir caminho entre sua coluna cervical, coração e peito, descansando assim que chegara ao outro lado. Desabou e notou a cabeça de companheira também no chão.
A cabeça sorria.
Enquanto o gosto doce de álcool e sangue inundava sua garganta, poderia jurar que via um desfile de corpos nus e mutilados abrirem as alas do cemitério. Uma das garotas, a morena, pulava, nua, em direção ao grupo. A cada movimento para cima, vermes caíam de seu cabelo cheio de terra. Ela segurava o que parecia ser um braço humano mastigado, parte já no osso. Seria do...
O bloco de assombrações comemorava o último dia da festa da carne antes de retornar ao inferno. Bebida, música e muito churrasquinho até a aurora. Afinal, já era quarta-feira de cinzas!

Isabele Linhares
Seu portfolio online: isabelelinhares.daportfolio.com

Daniel Russell Ribas
Foi criado no Rio de Janeiro. É formado em Jornalismo pela PUC - Rio. Fez roteiros, matérias e contos. Ele participa do grupo "Clube da Leitura" no sebo Baratos da Ribeiro, no Rio de Janeiro (www.baratosdaribeiro.com.br/clubedaleitura), é editor da Editora Oito e meio (www.oitoemeio.com.br) e escreve um blog desatualizado (dribas2.blogspot.com). Também participou da antologias "Clube da Leitura, modo de usar, vol. 1" e "Caneta Lente Pincel" (ed. Flanêur) e escreveu para o catálogo da mostra "David Lynch - o lado obscuro da alma". Recentemente, organizou com Flávia Iriarte a coletânea "A Polêmica Vida do Amor" (ed. Oito e meio). 

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