18 de fev. de 2012

Carnevale

Ilustração: Sueli Mendes
Texto: Simone Campos


A moça de cabelos de fogo ouve cada comentário da roda com uma expressão curiosa e íntima nos olhos e na boca, únicos traços visíveis sob a máscara columbina. O rosto se volta para cada falante no momento apropriado e com suavidade. Mas quando alguém no grupo parece prestes a indagar quem é ela – prestes a averiguar sua posição na sociedade, a penetrar o primeiro alfinete na asa da borboleta–, a moça sumiu. Não está mais lá.
Para a missão que um rosto bonito não resolve, ela precisa 1) fingir-se de jovem viúva recém-desenlutada, para não ser perguntada por um acompanhante e 2) misturar-se à multidão de alta sociedade de forma a parecer bem conectada à vista de todos; mas não demorando tanto em cada roda que tenha de dar explicações sobre si.
O truque está em chamar um certo tipo de atenção e não chamar outro. Claro, uma moça de corpo torneado, braços níveos e cabelos de fogo chama a atenção. Como uma joia, um possível troféu, ou uma rival a ser investigada e neutralizada. Mas não chama a atenção de um guarda-costas de Doge. Por isso fora a escolhida.
Ela se desvencilha de um comerciante de meia-idade que parara ao seu lado sem nem tentar disfarçar o intuito. Espera ele se apresentar, então exclama o nome da esposa dele como se a conhecesse; ele se encafifa, ela se escusa e muda de lugar. Da cortina que reserva um nicho do ambiente para uma curta biblioteca, ela observa. Dali pode ver a porta da cozinha, de onde flui o vinho, e o cantor de fama com o qual metade da festa, inclusive o Doge, estão entretidos. Ela já subornou um alcoviteiro competente para apresentá-la ao político, insinuando uma jovem viúva endividada requestando seus favores. Precisa apenas esperar. Afinal, a mente calculista do Doge certamente apreciaria o quão mais barata ela seria de manter do que suas habituais cortesãs de alto luxo. E o quão mais divertida. Ele olharia na direção dela. De longe, seria preciso passar a impressão de recato esperando para ser quebrado. Ele gostaria disso.
Enquanto isso, ela desliza a mão enluvada para sentir, com insistência, ora o corpo do punhal, ora sua ponta. Não sabe se vai agir ali, drogando sua bebida, ou se vai levá-lo para o quarto. Tanto faz. Vai se deixar levar pelas circunstâncias. Mas com rédea curta e em direção a um objetivo. Como sempre.

Sueli Mendes
Seus trabalhos podem ser visualizados no blog: 
bigandlittledreams.blogspot.com

Simone Campos
Mais sobre seus livros: simonecampos.net


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