31 de jul. de 2014

Dia de faxina

Conto: Luísa Bonin
Ilustração: Francisco Gusso



Me coçam as coxas graças às jeans úmidas que vesti de manhã. Estamos sem sol há dias e já preciso secar as calcinhas atrás da geladeira. Menti para Giana. A faxina é o que me sobra. Combinei com ela hoje, quarta-feira. Mora no centro. Com o tempo que gastaria no terceiro ônibus passo a roupa. Trintão a mais. Toco a campainha do vizinho pela terceira vez. Depois de apertar a dela umas dez vezes. Esse negócio é uma tristeza, ela diz. O prédio não tem elevador e as escadas de pedra têm aquelas fitas antiderrapantes mal colocadas e descolando. Tropeço duas vezes. Giana sobe na minha frente. Porta aberta. Um tapete, uma cadeira, um colchão e um cobertor. Hoje é meu último dia aqui, ela diz enquanto vem da cozinha com um balde e uma vassoura. Deixa o balde no chão e ascende um cigarro. Com fumaça na boca, tira um papel do bolso. Quadra 43, ela fala. Número 2, Cemitério Municipal. Sabe chegar lá? Pode ficar com o balde e a vassoura, ou jogar fora depois. É bom usar água sanitária, dilua um copo num litro d’agua. Não mais que isso. Passe o pano três vezes, por favor, com água sanitária nova. Na terceira, coloca a luva, e passa a água sanitária pura.  As chaves põe no vaso de flor, completa falando rouco enquanto me entrega o dinheiro e as chaves. Conto o dinheiro e tem os trintão a mais que combinei da roupa. Melhor não perguntar nada. Medo eu tenho de vivo, e uma lápide eu limpo rápido. Ainda volto pra casa a tempo de buscar meu filho no colégio e fazer almoço.
Saio do prédio e a chuva não para. Resolvo ir andando para o cemitério. Quadra 43. 5, 3, 2. Tá com a luz acesa. E é tudo menos uma lápide. Grande esse! Grita de longe o coveiro – eu acho. Mausoléu dos Bernini! Grita ele mais uma vez. Ficar cuidando de parente depois de morto só não deve ser pior porque ela tá me pagando para fazer isso. Abro a porta. Tem um metro quadrado do que eu chamaria de “antessala”, e a câmara principal com uns 5 metros quadrados, muitas velas derretidas e a parede e o chão verdes de mofo.
Água sanitária. Pano. Abstraindo o cemitério. Já tô acabando.  São 11h30min. Se eu termino rápido e faço bem são R$ 130 e ela pode me chamar de novo. É muito mofo. Vou demorar mais mas passo o pano pela terceira vez em tudo. Tá limpo mas tá sujo. Não faz sol. Vai continuar mofando. Já perdi a hora do colégio. Mas se eu sair agora chego a tempo de almoçar com meu filho. Deixo a chave do lado da porta, no vaso de barro. Mas agora tem uma flor no vaso. Duas. Olho pra trás e tem uma confusão de gente chegando perto de mim e colocando mais flores no vaso.
Foi ontem. Terça-feira. Ela escorregou na escada do prédio que morava. A chuva não para e nem os antiderrapantes deram conta. Giana morreu na hora, traumatismo craniano. Me contou a primeira senhora que colocou as flores no vaso. 


Luísa Bonin

28 de jul. de 2014

Pedra lavrada

Conto: Dragomir Kephas
Ilustração: Rafael Pto



O viajante deparou-se com uma bela peça lavrada em pedra, na confluência da estrada principal e um caminho até então desconhecido, quase oculto pela relva crescida.  A tal escultura, um anjo melancólico, postado no remoto trajeto entre duas cidades do interior, certamente sinalizava a entrada de alguma propriedade. Revigorado pela surpresa, Getúlio tinha certeza de que ninguém lhe negaria um bom prato de comida e um canto para dormir.
Ele fazia sua jornada a pé, acompanhado por um cavalo magro, puxado pelas rédeas e incumbido da bagagem.  Depois de alguns minutos caminhando, foi possível avistar uma colina descampada e um casebre com a chaminé fumegante. Ainda seguindo a trilha, passou por um grande paredão rochoso, uma pedreira. Ao final desse trecho, após uma curva abrupta, o viajante estava aos pés da colina encimada pela choupana.
Getúlio prendeu as rédeas num arbusto e bateu palmas. Sem demora, um idoso apareceu na porta da casa e fez sinal para que o viajante se aproximasse.
O sujeito, cuja boca escancarada ostentava não mais que três dentes, ria com a satisfação de quem revê um ente querido. Os olhinhos brilhavam, espremidos, entre incontáveis rugas. Os cabelos eram brancos, esparsos e desgrenhados. Tinha a estatura de uma criança de dez anos. Apesar do aspecto frágil, o ancião apresentava muita vitalidade. Puxou um banco e fez sinal para que Getúlio sentasse à mesa, então serviu uma jarra de água, bananas, pão e um ensopado de carne. O anfitrião nada dizia, apenas produzia alguns sons guturais e gesticulava muito.
Getúlio não fez desfeita, alimentou-se com tudo que estava à disposição, demonstrando gratidão em cada gesto. Depois de saciado, puxou a carteira do bolso e ofereceu um pagamento pela comida, mas o idoso refutou enfático e sorriu dando tapinhas no ombro de seu convidado. Então, saiu do cômodo e retornou com lápis e papel e, colocando-os na frente do viajante, disse com dificuldade:
– Nome.
Getúlio escreveu seu nome no papel e depois, a convite, seguiu o idoso até os fundos do casebre. O local era uma espécie de ateliê, um pátio de terra batida coberto com telhas de amianto. Havia anjos de toda espécie, carrancas, capitéis, balaústres, colunas torneadas e todo tipo de artefato talhado em pedra. Orgulhosamente o artesão apontava para cada um dos trabalhos. Caminharam para fora da área coberta, chegando a um local onde havia dezenas de lápides, todas belamente trabalhadas.  As primeiras que Getúlio observou estavam deitadas no chão, ornamentadas com alto-relevos ao redor da face polida. Ao lado, fileiras de lápides dispostas perpendiculares ao chão, como em um cemitério, porém mais próximas umas das outras. Ele seguiu entre os estreitos corredores e percebeu que aquelas lápides possuíam nomes entalhados.
Getúlio virou-se para o idoso quando sentiu a lâmina penetrar suas costas. Ele caiu e teve a cabeça golpeada com uma espécie de tacape de pedra. O velho destrinchou sua carne, depositando-a numa bacia. Separou as vísceras e os ossos num saco de pano, que enterrou onde havia espaço para mais uma lápide.


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Dragomir Kephas 
Colaborador da revista Lodo, desde 1958.
revistalodo.blogspot.com.br

Rafael Pto

facebook.com/rafael.pto

23 de jul. de 2014

Tacale pau, Pancada! (parte 1)

Conto: Lielson Zeni
Ilustração: Sueli Mendes



(Parte 1)

Parece importante que a história comece assim: é noite, chove fino e o frio arrepia o pelo.

Uma hora atrás, em uma sala embaixo das arquibancadas do Estádio Anilado, Badanha e Cachoeira davam plantão na Agência de Detetives Beltrão. Cachoeira revirava as gavetas em busca de fósforos pra acender o cigarro quando o telefone tocou.

– Opa! Atende lá, Badanha.
– ADETBEL, boa noite./ sim.../ meeee, que louco!/ tá certo, então, pode deixar.
– Que que deu?
– O Nelsinho Coveiro do Jacutinga achou uns papel esquisito. É pra ir lá, Cachoeira!
– Péra, piá. Eu não saio daqui sem dá uma pitada.
– Sossega o facho que passemo ali no Gringo comprar um avio.

A chuva aumentou quando eles correram até o carro parado em frente a ADETBEL. Badanha guiou até a bodega do Gringo, onde pararam pra comprar fósforo e bolacha. Em seguida, tomaram o rumo, abaixo de muita água.

Badanha dirige e come bolacha, enquanto Cachoeira risca fósforos molhados que não acendem o seu cigarro. Depois de muito barro na estrada, chegam a uma igrejinha no Jacutinga, ao lado do cemitério da paróquia São Lázaro. 

Eles descem do carro e Badanha bate palmas na frente de uma casinha entre a igreja e o cemitério, enquanto Cachoeira cobre os olhos e o cigarro com a mão. Um homem de boné com cuia de chimarrão aparece na área da casa.

– Opa, não é que vieram? Vamo chegando!
– Estamos meio na correria aí, seu Nelsinho.
– Mas não querem chegar mesmo? Vão pegar gripe aí na chuva!
– Acho que entrar rapidinho não tem problema, ô Cachoeira.
– E como tá teu pai com os negócio dele lá, Badanhinha?

Cucas com chimia e rodadas de mate depois, Nelsinho causeia:

– Eu tava ali ó, naquelas quiçaça pra lá do potreiro, uns mil metro pra frente da igreja, cortando aquelas capoeira tudo, daí dei uma foiçada assim e TOC! parei pra ver que que era e vi umas latinha. Abri e tinha uns papel, esses daí ó. Queria que vocês dessem uma olhada pra ver como-que-é-como-que-não-é, como diz o outro.
– Me pinche esses papel aí, seu Nelsinho. Badanha, pega pra nós aquela lanterna lá no carro?
– Opa!
– Posso pitá aqui, seu Nelsinho?
– Decerto que sim!
– Pórco-di, molhou meu cigarro...
– Pére-lá!, e puxou uma palha do bolso, um pedaço de fumo e preparou um paeiro pro detetive.

Enquanto Nelsinho trabalha no seu próprio paeiro, Cachoeira acende o cigarro de palha no fogão à lenha e espalha a papelada em cima da mesa da cozinha. Analisa tudo e descobre que:

1) são diários, cartas, recortes de jornal e um atestado de óbito;
2) o atestado de óbito era de uma pessoa enterrada no cemitério;
3) os recortes de jornal falam de um tal PANCADA, que defendia os colonos de assaltos;
4) os diários são do PANCADA (ou tentam parecer que são).

Cachoeira conduz o papo com Seu Nelsinho, enquanto Badanha dá aquela olhada nos papéis pra se interar também do rolo.

– Seu Nelsinho, já ouviu falar desse um aqui, o PANCADA?
– Ouvi? Pfff, quem que não? Arrodiava tudo por aí uns ano atrás. Só que naquele tempo era Espírito o nome dele. Mas daí teve uns enrosco de direito autoral e mudou de nome pra PANCADA.
– E onde que fica esse túmulo, o 14-12?
– Hmm, é logo ali, na grutinha com grade de fronte.

A dupla caminha pelo pequeno cemitério até achar a gruta. Quando miram a lanterna no túmulo, veem que está aberto, e não enxergam mais nada.

Um homem grande desacordou os detetives com golpes na nuca, pegou o atestado de óbito e a chave do carro, anotou um bilhete, catou a papelada dentro do carro e entrou na igreja. O bilhete é este:

obrigado pelo meu arquivo
aquele abraço,
PANCADA

Ao acordar deram busca tudo em volta, na casa, na igreja e não encontraram nem sinal de nada, nem mesmo pegadas no barro — apagadas pela chuva. Ou seja, Cachoeira e Badanha tomaram na nuca, sujaram a roupa de lama e tudo que conseguiram foram algumas fatias de cuca e perguntas não respondidas: quem é o PANCADA? O que ele quer?

É, não dá pra se queixar de uma noite dessas na ADETBEL.


(Continua...)

Lielson Zeni  Afirma ter nascido em Francisco Beltrão, morado 11 anos em Curitiba e que estava em São Paulo quando tudo aconteceu. Diz trabalhar como editor e já ter escrito roteiros. Suas digitais não estão cadastradas no sistema. lielson.wordpress.com
Sueli Mendes

bigandlittledreams.blogspot.com

21 de jul. de 2014

Morri pela beleza

Conto: Celly Borges
Ilustração: Johandson Rezende



– Ora, que patético você dizer isso.
– Como patético se é esta a única verdade, Joana?
– Emily, é provável que o fato tenha se dado de outra forma, mas ninguém tenha contato com os detalhes reais.
– Pois vou contar todos os detalhes e você que julgue como reais ou não.
“Aconteceu logo depois que eu entrei em casa. Voltava do chá da tarde com as madames do clube de leitura, que acontecia na casa de uma querida amiga, Mary. Apesar de ser boa com algumas pessoas, ela era arrogante com outras. Mas isso não vem ao caso.
Acontece que cheguei um pouco mais cedo do que o normal, pois o chá estava frio e as bolachas, amolecidas. Entrei em casa como normalmente fazia, pensando que estava só, pois meu marido trabalhava até tarde nas quintas-feiras, mas ouvi uma correria no andar superior e meu sangue gelou. Travei no chão e não soube o que fazer.
Fiquei ali, escutando a correria, quando alguém começou a descer as escadas...
– Oh, meu bem, não sabia que chegaria tão cedo – disse John, meu marido.
Por poucos minutos pude sentir uma alívio, mas logo algo apitou dentro de mim e percebi que John estava apenas de cueca e meias brancas, todo suado. Meus instintos apurados disseram que havia algo errado. Olhei para ele e logo para a escada. Quando ameacei subir, ele me segurou pelo braço. O olhei assustada com o gesto inesperado.
– Sente-se aqui. Já que cheguei cedo – disse-me ele, apontando a cadeira da mesa da cozinha –, vou preparar uma xícara de chá para nós.
Ele sabia que eu havia ido para o chá com as madames do clube. Estranhei ainda mais e disse que aceitaria sua oferta, mas que precisava tirar a roupa desconfortável.
John me olhou tenso, então eu passei por ele como um foguete e subi até nosso quarto.
Em nossa cama, onde tantas vezes trocamos carícias, juras de amor e muito sexo, estava sentada uma jovem. Ela era muito jovem. Sorriu, era linda. Nunca tinha visto tamanha beleza.
Ela me olhou e sorriu. Seu sorriso não tinha nenhum remorso, era falso, então eu voei sobre ela. Pulei em seu pescoço com a faca que havia pegado sobre a mesa lá embaixo, sem que John percebesse.
Quando meu querido e compartilhado marido enfim chegou em nosso quarto, sua bela amante estava no chão. Ao levantar seu rostinho desfigurado ele deu um berro de desespero, enquanto o sangue sujava todo o tapete.
– Sua louca– ele berrava. E eu estava estática. – Tirou dela toda a sua beleza! Acabou com a única mulher que eu amei em toda a minha vida infeliz ao seu lado!
Ele também trouxera uma faca”.
– Eu morri pela beleza de outra.
Então agora somos irmãs, em meio aos túmulos e lápides esquecidos.
– Neste ambiente que me causa repugnância. Até que o musgo cubra nossos nomes.


Celly Borges 
Nasceu em São José dos Pinhais, PR, onde sobrevive. É apaixonada pelos livros. Mantém há cinco anos o blog Mundo de Fantas no mundo dos livros (mundodefantas.blogspot.com.br). Autora de contos de horror e fantasia. Também escreve literatura infantil sob o nome Gisele Borges. Enfim, profissão: leitora.                 

17 de jul. de 2014

Destino

Conto: Marco Antônio Santos
Ilustração: Gustavo Ramos



Depois de virar mais uma noite limpando estações de ônibus biarticulados na avenida República Argentina, um homem de corpo e alma muito antigos começou a se dirigir à própria casa, no Centro. Os anos gritam, trabalhar é chato, e nenhuma grande emoção tinha lhe ocorrido naquele turno. O frio não fora intenso o bastante para merecer nota, os pixadores não tinham aparecido, e sequer os bêbados de sempre vieram enunciar suas histórias usuais de desgraças e danação, de onde quer que tenham vindo. Ele havia apenas ouvido música e caminhado de um lado para o outro para fazer correr o tempo - como se este fosse mesmo qualquer coisa mais que mera convenção imbecil.
Despertou na esquina entre a Avenida Água Verde e a Guilherme Pugsley. Julgou ter visto o tio Michel no banco de trás de um carro que passou muito rápido, a despeito do fato de que o tio Michel estava morto havia décadas. “Sono da porra”, pensou.
Tentou se recuperar do choque estalando os dedos das mãos enquanto atravessava a rua. Não funcionou. Levantou os olhos e viu uma senhora vestida de preto olhando para ele, na esquina do Cemitério. Ela sorria de forma sincera, e esperou ele se aproximar para emitir um pensamento, que nunca foi pronunciado com palavras, mas apenas com a sensação que ela provocou. Ela, monotonamente, para ele: “Já pensou numa mensagem final beeeem bonita? Eu sei que cê num perguntou o que eu acho, mas eu acho que você devia pensar nisso”.
E sumiu.
Deus se manifesta em tudo, por ser o Todo, claro, mas Ele aparece especialmente nas palavras e nas energias emanadas pelos atos daqueles que nos cercam. No entanto, Ele também se prova verdadeiro através da Própria Ausência, quando aqueles que não estão alinhados com Seus propósitos tomam o controle e passam a rondar os espíritos errantes que somos com suas vibrações estranhas. E aquela mulher, ou fantasma, não parecia alinhada com nenhum bom plano, do tipo dos que convidam os justos para o engajamento.
O velho sentiu o coração disparar e não se conteve. Recostou-se numa parede enquanto esfregava os olhos e tentava controlar a respiração. “Caralho”, disse pra si mesmo. Recuperou uma parte do próprio senso de realidade fitando as luzes dos farois de carros e ônibus na já movimentada Via Rápida, e também na lateral do cemitério, sempre tão caótico quanto o comportamento de uma nuvem interessante. Quando compreendeu, estava sentado nos bancos da praça mais próxima, ainda na mesma quadra, e dormiu.
Sentiu-se rodeado por vultos escuros, debaixo de um céu cinza e macabro. Não chovia nem ventava, mas ele sentiu o desconforto que estes fatos costumam trazer enquanto uma espécie de mantra era entoado por estes anjos maus que o circundavam, todos com as mãos direcionadas ao seu corpo. “Quem era aquela velha?”, pensava, e ela aparecia, de forma que buscou parar de trazer a imagem ao pensamento. Foi inútil. Há forças maiores que nós. Agora ele sabia. Viu o próprio corpo flutuando em cima da estrutura de cimento de um túmulo pobre e não sabia como havia parado ali. Tentou, de longe, ler as palavras do epitáfio, mas elas estavam escritas em alguma língua que ele não dominava.
Buscou recuperar as próprias funções corporais e as faculdades mentais, mas quando deu por si só conseguiu voar devagar em direção à velha e ao tio Michel, que estavam alguns metros a sua frente, dois metros acima do chão. Sentiu a mulher emanar as palavras “Vamo embora, que tamo cheio de notícia ruim pra dar ainda”. O tio Michel murmurou algo como “Eu sei”.
Não deixa de ser curioso que o senhor precisou morrer para encontrar algum tipo de conforto.


Gustavo Ramos

11 de jul. de 2014

Quatro Segundos

Conto: Santiago Santos
Arte: André Lissonger



- Já decidiu?
- Sim.
- Quando vai ser?
- No dia que eu morri. Ela só soube por que ligaram, né?
- Foi.
- E depois ela foi pra rua? Logo em seguida? Pra pegar o táxi pro hospital?
- Isso.
- Então. Esse dia. Antes disso. Pode ser a hora que ela foi no banheiro. Ou regar as plantas. Ou lavar a roupa. Vê o que fica melhor.
- Tá. Tu vai ter quatro segundos.
- Puta merda. Só quatro?
- Quatro. Teu filho trouxe nove galinhas pretas, não quinze, o sangue não era de bode, era de cabra, as velas eram pequenas, e teve que parcelar porque disse que tá pagando o teu funeral ainda.
- Eu sempre disse pra ele não gastar comigo.
- Ele gastou.
- Me tira daqui, vamos.

O homem ergue a tampa e a terra revirada escorre pra dentro do caixão. Estende a mão pro morto e puxa. Só vem o braço.

- Puta merda, caralho. Me puxa com cuidado, porra.

O homem levanta o cadáver como uma noiva e o coloca de pé na grama. Ali ele fica bambo, mexendo lentamente a cabeça, as pernas e o braço restante. Quando tem segurança suficiente pra andar, anda. O homem o segue em silêncio. No meio da tarde chegam na casa.

- Explicou pro meu filho o que cê me disse? Que não há garantia pro que pode acontecer depois?
- Expliquei. A reação dele foi a mesma que a sua.
- É que a Maria era muito fácil de amar.

Entram na casa de jardim desgrenhado, empoeirada, entristecida. Vão até o quarto do casal. O morto para diante da cômoda, se olha no espelho, vê algumas tiras de carne grudadas no crânio, uma minhoca saindo pelo buraco onde antes havia um olho.

- É aí que vai ficar?
- Aqui mesmo. Ela sempre deixava o celular aqui.
- Quatro segundos. Se prepara. Ela tá na cozinha desfiando frango.
- Tá bom.

A casa rejuvenesce quando o homem bate palma. Os perfumes se materializam na cômoda, os livros, o celular. Segura o botão de desligar do aparelho.

Quando ligam pra dizer que o seu marido morreu num acidente de trânsito, o telefone não toca. Por isso Maria não chora ao pé da cama, não pega a primeira roupa limpa do armário, não sai esbaforida e com os olhos borrados de desgosto, não acaba debaixo das rodas do ônibus e depois na cova ao lado do amado. No fim da tarde, quando já desfiou o frango e terminou o jantar e espera a família voltar pra casa, nota ao lado do celular desligado a correntinha que o marido usa desde pequeno. Ele não a tira por nada no mundo.

Está suja de terra.




Santiago Santos
Começou a escrever cedo e nunca parou. Leitor compulsivo, tereréficionado e jornalista meia-boca. Atualmente reside em Cuiabá – MT, onde já se aventurou pelo mercado independente dos contos ilustrados e blogs abortados. Publica minicontos no Facebook, na página Flash Fiction:

9 de jul. de 2014

Jogo

Conto: Luiz Bras
Ilustrações: Henrique Martins



Tenho medo.
Jurupari-mãozudo gosta de carne podre. Suas garras cavam o solo do cemitério. Cavam de baixo pra cima. Do fundo pra superfície. A terra treme, as lápides tombam.
Minha sombra tem meia dúzia de contas secretas em bancos da Suíça. Minha sombra me traiu & fugiu do país.
Tenho muito medo.
Anhangá-bocarra gosta de dentes velhos. De ossos porosos semeados no solo morto. Suas presas rasgam o fundo dos túmulos. Trituram a madeira dos caixões.
Minha sombra desviou seis milhões de reais do ministério da saúde. Minha sombra me traiu & fugiu do país.
Tenho muito, muito medo.
Abro os olhos & volto a respirar. O cheiro de decomposição é meu pior pesadelo. O cheiro da minha decomposição. Não consigo mexer os ombros nem os joelhos, parece que meus ossos porosos foram separados da carne podre. Não consigo enxergar nada, só a verdade: sou uma coleção de peças soltas & estou preso.
Enterrado morto, continuo vivo.
O pavor aguça meu radar, Jurupari-mãozudo está chegando. Mentalizo, modelo na imaginação um espaço a céu aberto. Uma praça pública. Não dá certo, o escuro não brilha, não me teletransporto.
Anhangá-bocarra está cada vez mais perto. Mentalizo, modelo na imaginação uma praia deserta. O saguão de um shopping. Meu quarto. Não dá certo, o escuro não brilha.
Enterrado vivo, continuo morto.
Virado do avesso: órgãos do lado de fora, pele dobrada feito um casaco velho.
Jurupari-mãozudo me alcança, devora minha carne podre. Anhangá-bocarra fica com os dentes velhos. Com os ossos porosos.
Game over.
Minha sombra me traiu? Minha sombra me prendeu em meu próprio delírio?
Tenho muito, muito, muito medo.
Mentalizo, modelo na imaginação uma saída desta armadilha. Uma passagem secreta através do espelho.
Pra mim chega, desliguem tudo. Eu quero parar.
Quero & não quero.
Medo.
Tenho muito, muito, muito, muito medo de acordar & descobrir.
Que jamais acordei, jamais acordarei.
Que neste jogo de um jogador só.
Minha sombra & eu.
Jurupari & Anhangá.
Somos o mesmo morto-vivo.
O mesmo vivo-morto.





Luiz Bras
Nasceu em 1968, em Cobra Norato, MS. Sempre morou no terceiro planeta do sistema solar. É de leão e, no horóscopo chinês, cavalo. Na infância ouvia vozes misteriosas que lhe contavam histórias secretas. Adora filmes de animação, histórias em quadrinhos e gatos. Acredita em telepatia e universos paralelos.

Henrique Martins

5 de jul. de 2014

A Estrela Líquida (parte 2)

Conto: Gustavo Ramos
Ilustração: Simon Taylor 







Parte 2

Há quase uma década atrás, numa noite de estréia, o estômago da jovem se dobrava e se partia, sendo expelido aos poucos em vômitos convulsivos. A perfeita execução dos passos daquela coreografia eram antes de tudo a moeda que permitiria à jovem alçar voos em palcos internacionais. Ela no banheiro, em agonia. As altas autoridades do estado esperando aflitas o início da apresentação.
            Dez minutos se passaram do que deveria ser o início da dança, e surge na frente da moça, ainda contorcida no chão do banheiro, o maestro que tanto temia. Em sua mão enluvada portava um pequeno vidro escuro daqueles que se usam para conter remédios. Ofereceu a ela, que bebeu o num trago. A dor se foi e ela levantou-se rapidamente. Então, experimentou uma sensação de delírio maravilhosa, todo seu corpo era um só sentimento livre, uma vontade de levitar, de voar e cair com a leveza da pena de um pássaro.
            Ela enfim entrou no palco e dançou. Encantou aqueles olhares ansiosos, arrancou-lhes lágrimas. Não pensava mais nos passos da coreografia, mas naquele sentimento de puro êxtase causado pelo mover de seu corpo, pelo livre transito que sentia entre o palco e as almas daqueles que a assistiam. Ao termino da apresentação, as palmas duraram quase dois minutos. Não eram para a orquestra dedicada, nem para os outros componentes do balé, eram sim para ela, pois aquela plateia nada olhava a não ser o seu riso saboroso e seu vestido azul, salpicado de gotinhas brancas.
            Ao fim dos abraços e sinceros agradecimentos, ela adormeceu ali mesmo no teatro. Percebendo o profundo cansaço da jovem, o maestro avisou a todos que lá a deixassem, pois voltaria ao Teatro na manhã seguinte e poderia conduzi-la ao hotel próximo.
            Ela acordou e sentiu seu corpo envolvido por um grande véu suave, que acariciava lhe inteiramente. Pensava que aquilo não era mais do que a extensão do êxtase experimentado na noite anterior. Sorriu, e fechando os olhos lembrou-se daqueles olhares curiosos e maravilhados da plateia, até aperceber-se da imagem que figurava no espelho logo a frente. A imagem não mostrava seu corpo lânguido, nem o rosto doce, de bochechas sem vida e sorriso acalentador, tampouco seu grande olhar curioso. Tomada por um assombro horrível, viu a imagem de um pássaro de um bico fino e enorme calda verde. Seu pescoço era feito de um azul tão brilhante que parecia machucar seus olhos ainda sonolentos.
            O maestro alemão chegou sem que percebesse e contemplava a cena sem surpresa. Parecia estar há muito tempo ali, a deliciar-se com a beleza da ave. Sem delicadeza a colocou num pequeno cativeiro e a jovem, em sua bela e infame prisão de penas, passa o dia e a noite no claustro do porta-malas de um velho Sedan, e de madrugada é levada ao que deveria seu cativeiro eterno, no Passeio Público, junto a tartarugas e outros pavões.
O pouco sabor da vida reduzia-se a encantar os olhares dos transeuntes, principalmente das crianças, que sempre lhe sorriam com sincera alegria. Era numa sensação parecida àquela encontrada no palco de um grande teatro. Com frequência recebia visitas do maestro, que nada a dizia, que nada lhe dava, apenas a olhava, absorto, compenetrado.
A última visita do maestro acontecera naquela noite. Ele pela primeira vez quis tocá-la. Embalou-a em seus braços e beijou sua cabecinha. Mas ela, tomada por um desejo feroz mergulhou seu bico no peito do velho maestro, com força que não acreditava ter, conseguindo perfurar sua pele e penetrando o interior das cavidades daquele coração amargo.

Ela deu seu ultimo grito de ave, sentindo um frio imenso tomar seu corpo, pois aquele envoltório de penas azuis ia desmanchando-se aos poucos. Percebia vagarosamente a volta da sua nudez de menina, aquela mesma menininha que um dia brilhou nos palcos do Guaíra. Ela então chorou novamente o líquido branco e brilhante, a única herança da maldição do maestro. Chorou, pois talvez não desejasse matá-lo. Talvez o amasse, por ter permitido a vida naquele claustro delicioso de olhares infantis e penas maravilhosas.
Emílio ouviu a história inerte. Mal percebia que o sol quase desabrochava do horizonte. Ele a ajudou a enterrar o maestro no gramado em frente ao cativeiro e a limpar as manchas de sangue. Ainda com as mãos cheias de terra o guarda olhou para o lado, para despedir-se da moça, mas já não encontrou ninguém. Ela se desmanchou no ar e desapareceu como a lua, naquela manhã de abril.

(Fim)
           


3 de jul. de 2014

A Estrela Líquida (parte 1)

Conto: Gustavo Ramos
Ilustração: Simon Taylor



Parte 1

Emílio acordou de sobressalto ao perceber que o gato branco que manchava aquela noite densa e escalava o teto de uma choupana do passeio público não era mais do que a lâmpada de um pequeno quarto, fustigando seu olhar adormecido, distorcida por um delírio febril. Sonhava estar ao relento, esquecido num frio congelante, imóvel num banco de madeira, mas percebeu-se ainda no mesmo quarto que há três anos recebeu para vigiar as madrugadas do parque curitibano. 
Molhou o rosto na pia, tomou um gole de café e saiu para mais uma ronda. Já quase no fim, quando voltava para seu quarto, percebeu que mais um pavão havia desaparecido, justo aquele que possuía as penas mais bonitas, do verde mais claro e frondoso, cujas intensas gotinhas azuis pareciam querer escapar daquela imensa cauda.
            Já era o segundo que fora levado, e agora restava apenas mais um para acariciar os olhares daqueles passantes curiosos que ali paravam todos os dias. Já imaginava o pivete do Guadalupe que agora andava impune nas ruas da cidade, segurando a linda ave pela cauda, rindo de seu sono e incompetência.
            Não havia mais o barulho dos carros, nem o ranger dos caminhões de lixo. Há duas horas atrás os jovens ébrios da Trajano haviam passado, cantando suas tristezas e angústias, mas agora o silêncio era seco, cortante. Aquela orquestra silenciosa foi então interrompida por um grito desesperado, inconsolável e breve, o grito de uma mulher que sofria, certamente dentro dos limites gradeados do parque. Emílio deu a última volta, mas não achou a origem, nem o corpo, nem a alma daquela voz atormentada.
            Aquilo gelou-lhe o estômago. Sacou o revolver, mas congelou seus braços no ar, empalideceu diante do que viu no breu daquela noite de abril. Era a clara forma de uma mulher desnuda, cor pura apenas manchada pelo sangue em sua boca. Os olhos fechados dissolviam-se em gotas luminosas, que estrelavam aquele chão coberto de sangue, jorrando de um imenso corpo, esvaindo seus últimos suspiros naqueles rios vermelhos que bifurcavam desaguando por entre as frestas das pedras do calçamento.
            Ele se aproximou vagarosamente e parou quando ela o olhou com profunda amargura. Ficaram assim, enquanto o pranto cessava, a se olhar como se não existisse aquele corpo sem vida, nem a enorme mancha de sangue, como se nada houvesse além do mistério de dois olhos desconhecidos. Até que o pranto cessou de todo e o pavor que antes o afligia deu lugar a um tenro sentimento de afeição.
            Então ela falou. Falou como quem não o faz há muito tempo, como alguém a quem as palavras foram roubadas e de súbito reabilitadas. Ouviu a história de uma bailarina que um dia floresceu nos palcos do Teatro Guaíra e de um maestro, um alemão insondável de têmperas exaltadas, o mesmo que agora agonizava diante de seus pés. 

(Continua...)


Gustavo Ramos