Conto: Claudio Eduardo Rubin
Ilustração: Ibraim Roberson
"Todos os cinocéfalos vorazes
Cheiram seu corpo. Á noite, quando sonha,
Sente no tórax a pressão medonha
Do bruto embate férreo das tenazes."
(Augusto dos Anjos)
Temi que o pior pudesse acontecer
nesse momento, sem perceber que as insólitas consequências do acontecido já
estavam, inexoráveis, na minha frente, desde o começo. Há horas, encravado no
canto do quarto, imóvel, me mantive à espera dos acontecimentos sobre os quais
eu mesmo tinha certa responsabilidade e que pareciam não se resolver de nenhuma
maneira. A criatura se contorcia com os braços (braços?) apoiados na mesa,
balançando o que indicava ser a cabeça.
Mas isso não era o que mais me apavorava, já que era um gesto que ela vinha
fazendo desde o início. Era o ruído, que emanava das suas mandíbulas
sobressalentes, que me lembravam vagamente um inseto de tamanho de uma pessoa
-considere quem lê estas linhas que meu estado mental não era muito lúcido naquele momento como
para discernir si se tratava de este ou outro tipo de inseto- proferindo uma espécie
de chamado -fiquei com essa impressão pelo tom lamurioso e sua insistente e
monocorde repetição- o qual pronunciava olhando fixo na minha direção com olhos
rubros hipertrofiados. "Aaaddllmmee..." "Aaaddllmmee..." Essa espécie de cântico inumano tinha se
tornado, nos meus ouvidos, a pior evidência
do espanto que a criatura produzia
na minha alma aterrorizada. Eu, paralisado depois da ferida na perna
direita, não conseguia sair do quarto. Como um raio, cruzaram pela minha mente
a série de eventos que tinham me depositado nesse lugar imundo, aquela noite de
agosto (a saída apressada de casa, a procura de refúgio na casa da serra,
propriedade de um amigo que se encontrava de viagem no exterior e por fim, os eventos
que propiciaram a irrupção da criatura naquele lugar, no meio das sombras da
noite sem que eu atinasse a impedi-lo, por um misto de curiosidade e espanto, e
que derivou na insuportável situação em que me encontro desde então).
"Aaaddllmmee...", "Aaaddllmmee..."... Era o único som que
preenchia o quarto, fora a minha respiração entrecortada produto da dor da ferida e o terror que essa
figura deforme produzia em mim. De repente, como se o que estava prestes a acontecer pertencesse ao que tinha temido
desde o início , a criatura se ergueu da mesa, vindo em minha direção,
arrastando as duas patas sobre as que se sustentava seu corpo esverdeado e
apavorante, pingado de manchas cinzentas. Me arrodeou com os braços (braços?) e começou a sussurrar no meus ouvidos
"Aaaddllmmee..."
"Aaaddllmmee..." enquanto apertava meu tronco contra seu
organismo. Senti um sufoco antes de desmaiar. Quando acordei, algumas horas
(dias?) depois, o cenário não podia ser mais desolador. A criatura jazia aos
meus pés, prostrada, e com o que parecia ser sua barriga (ou algo semelhante)
com um inchaço que não tinha percebido ao longo do tempo da sua estadia na
casa. Parecia exaurida, e sem condições de se movimentar de forma alguma, ainda
que se encontrava com vida. Apesar da intensa dor que a ferida da perna me
provocava, entendi que era a única chance para me livrar desse pesadelo que se
desenrolava na frente dos meus olhos. Me arrastei até o
quartinho onde meu amigo costumava guardar entulhos velhos e ferramentas
e procurei uma pá. Saí por primeira vez da casa em não sei quanto tempo,
e com as forças que me restavam -estava praticamente sem comer e beber o mesmo
lapso de tempo que fiquei preso com a criatura- cavei uma fossa de bom tamanho,
arrastei ela até a beira do buraco e a empurrei, sem encontrar resistência de
sua parte. Cobri com pedras e terra a
improvisada cova, e apoiando-me na pá, à maneira de uma bengala, me afastei do
lugar, até chegar a uma estradinha próxima, cuja localização tinha decorado na
viagem de ida para a casa. O que tinha acontecido depois de desmaiar é algo que
evito ainda hoje pensar. Não quis voltar nunca mais ao lugar onde a criatura se
encontra enterrada, nem relatei para pessoa alguma este episódio. Às vezes, em pesadelos que se repetem de forma
intermitente através dos anos, a figura ominosa da criatura abraçada ao meu
corpo, retorna como o lampejo de uma atrocidade que não me atrevo nem sequer a
cogitar. É melhor que tudo isso fique assim, no esquecimento de um evento que
nunca deveria ter acontecido. Solicito a quem por acaso possa estar lendo estas
linhas, me conceda a dádiva de nem ousar pensar, nem sequer por um instante, o
que há tanto tempo, pode ter ocorrido naquela habitação tenebrosa naquela noite
de agosto. É a única coisa que peço.
Ibraim Roberson
Claudio Rubin
Fantástico o desenho do Ibraim. Abraço. Claudio Rubin
ResponderExcluirPerturbador. O que é bom. Me vi dentro deste sonho com o monstro e depois também no lado de fora. Do conto.
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